Quando Ivan Hasek desligou o microfone da conferência de imprensa de antevisão do Portugal-República Checa, a frase que mais ecoava na sala era esta: “Já sabemos que se nos limitarmos a defender e não praticarmos um futebol ofensivo, não teremos hipóteses”. A mensagem era daquelas que deixa o sobrolho franzido e por isso, horas depois, o Observador tirou a dúvida com Roberto Martínez, na questão feita na conferência de imprensa. O selecionador nacional acreditava mesmo numa República Checa ofensiva, aberta, sem cautelas, ou era apenas fumaça, o chamado bluff?

O técnico luso foi pela primeira. Respondeu que acreditava numa equipa checa sem receios, ao ataque, a jogar para ganhar. No final, enganaram-nos a todos. Ivan Hasek pegou no seu 3-5-2 (a maioria do tempo mais um 5-4-1), trancou a porta e ainda pôs uma cadeira tombada a prender a maçaneta. Legítimo. Estratégico. Realista. Apesar do futebol cínico que os checos praticaram hoje, a verdade é que pôs a nu um problema recorrente na Seleção: contra adversários com blocos baixos, Portugal tem dificuldades em encontrar espaços, em ultrapassar a muralha defensiva.

Roberto Martínez ainda surpreendeu e levou a jogo Nuno Mendes como central mais à esquerda. Antes do apito inicial, justificou dizendo que o lateral do PSG já ali tinha jogado, frente à Suécia, e que a posição era importante para a equipa. Perdeu-se em construção em detrimento de Gonçalo Inácio, ganhou-se em verticalidade e velocidade, com Nuno a subir frequentemente. Aliás, tanto Nuno Mendes como Rúben Dias, centrais à esquerda e direita, foram subindo e deixando Cancelo e Dalot muitas vezes a jogar por dentro. Portugal foi aparecendo assim, mas a esbarrar sempre na muralha.

Só depois do minuto 20′ é que a Seleção conseguir abrir algum espaço, também fruto da velocidade e criatividade de Rafael Leão — que foi de mais a menos da primeira para a segunda parte. Aos 24′, Bruno Fernandes tentou à lei da bomba, mas boa defesa de Staněk. Três minutos depois, inverteram-se os papéis: Bruno cruzou e Leão devia ter deixado as unhas por cortar, porque não chegou por milímetros. Depois foi Ronaldo, por duas vezes. E a primeira era bola de golo, aos 32′ minutos. Isolado, atirou para grande defesa de Staněk, mas nunca contaria, por estar em fora-de-jogo.

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E a República Checa? Defendia. Ao intervalo, Portugal tinha 46 ataques e 4 ocasiões de perigo. Os checos tinham apenas sete ataques. Não foi por isso surpresa que bem cedo na segunda parte Roberto Martínez tenha posto gente a aquecer. Nélson Semedo, Diogo Jota, Danilo, António Silva e João Félix saltaram do banco assim que a segunda parte começou, mas destes, só dois iriam entrar (e bem). E por falar nisso, mexidas precisavam-se urgentemente. Ainda que o início do segundo tempo tenha sido um pouco mais do mesmo, Portugal travou. Menos criativo, mais entupido e os checos a gostar claramente confortáveis. Apesar da água que caía, era preciso fogo.

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De repente, começaram a surgir uns “flashes”. Relâmpagos vindos do céu, iluminavam um jogo sem luz. Relâmpagos não. Raios, golo da República Checa! Aos 62′, Provod provou que não é preciso carregar para marcar e um tiro de fora da área bateu no poste e entrou. Soaram os alarmes e Martínez foi à Sala da Situação. O selecionador colocou então Gonçalo Inácio como central mais à esquerda e puxou Nuno Mendes para a ala, mas o ponto forte do central do Sporting — as bolas longas — eram anuladas pela retaguarda tão baixa da República Checa, que aqui defendia ainda mais, com a retirada de Kuchta, ficando apenas Schick lá na frente. Também Leão, tão bem na primeira parte, desapareceu na segunda. Foi o momento mais difícil do jogo para a Seleção e Martínez tardou em mexer.

Também, acreditamos, fruto da felicidade: Staněk não segurou uma bola vinda pelo ar e Hranáč fazia autogolo aos 69′ minutos. Vitinha ainda foi no embalo, mas não bateu de fora da área o guarda-redes checo, numa das poucas vezes que Portugal tentou de meia-distância. Jota ainda vez um mini-terramoto ao fazer o 2-1 aos 89′, mas o golo foi anulado por posição irregular. O jogo fechado gritava por alterações, mas o som da chuva fazia com que Martínez não ouvisse. Só aos 90′ (!) é que o selecionador nacional mexeu… e foi na mouche. Normalmente, quando há água, não vale a pena pôr fogo. Mas uma brasa não é bem fogo. Muito menos um espalha-brasas. Francisco Conceição anulou os elementos da natureza e ficou “on fire”. Um minuto depois de entrar, aproveitou o cruzamento de Pedro Neto — cortado — para atirar na recarga para o golo.

O grito ouviu-se até Berlim, com os adeptos portugueses a serem sempre mais barulhentos do que os checos, apesar de estarem em minoria — mas ainda precisaram de um empurrão de Ronaldo aos 60′ minutos, que pediu ainda mais barulho. Chico furou os decibéis e ajoelhou-se no relvado, junto à bandeirola de canto. Todos saltaram para cima do jogador do FC Porto e só o voltámos a ver em tronco nu, com a camisola a servir para limpar as lágrimas. Apesar da chuva, não há medo de constipações, porque hoje ficou provado: não há água que apague esta brasa, ou quem a espalha.

A pérola

  • Vitinha, Vitinha, Vitinha. Perante o muro checo, foi sempre o homem mais esclarecido, prático e aguerrido. Teve 95% de acerto no passe e passa a ser dono da posição. Mister Roberto, tem de ser Vitinha e mais dez. Nota ainda para o bom início de Bernardo Silva ao meio, onde tem mais espaço para pensar. Não teve pernas para uma segunda parte que também não lhe deu espaços.

O joker

  • Obviamente Francisco Conceição. Entrou, marcou e deu três pontos à Seleção na estreia no Euro 2024. A substituição só pecou por tardia, porque bem mais cedo se percebeu que Portugal precisava de um agitador e de alguém que arriscasse mais. Com esta formação, e com Bernardo no meio, pode haver mais espaço para ele na ala e reflexão para titularidade. E não só por este golo.

A sentença

  • Portugal ganhou, ganhou bem, justamente, mas é claro que faltam ideias quando há blocos mais baixos pela frente. No futebol é preciso tempo, paciência, como num jogo de xadrez, mas também é preciso correr riscos. A Seleção correu poucos, perante um adversário que não correu nenhum.

A mentira

  • Ivan Hasek prometeu uma equipa ofensiva, mas a única ofensa que demonstrou foi perante o seu avançado. Patrick Schick foi sempre um homem só, à espera de um milagre, numa equipa que esteve sempre à espera de um erro de Portugal. É legítimo, mas vai totalmente contra o que disse o selecionador checo na conferência de imprensa. O bluff quase resultava.