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João Pedro Morais/Observador

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António Maçanita, o enólogo do vinho que foi proibido: "Não acredito em más castas"

Da infância passada nos Açores aos vinhos criados no arquipélago, até os mais controversos como "Isabella, A Proibida". À conversa com o enólogo, Maçanita recorda o percurso, as teimas e as polémicas.

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A mãe é alentejana e o pai açoriano. António Maçanita, de 40 anos, até pode ter nascido na capital, mas foi sobretudo nas terras de origem dos pais que encontrou o terroir de eleição para produzir vinhos, uma aventura que começou em 2004 e que dificilmente terá fim à vista — produz vinho em cinco regiões diferentes, criou três projetos de produção própria e apoia mais de 10 produtores através da sua empresa de consultoria. É o homem do “Fita Preta”, do “Sexy” e do “Isabella, A Proibida”, todos nomes que correm o risco de soar ligeiramente familiares.

Caça submarina, ginástica artística, bodyboard e râguebi. Tudo isso veio antes do vinho, uma carreira que já deu frutos: foi considerado o “Enólogo do Ano 2018” pela Revista de Vinhos e, no mesmo ano, levou para casa o prémio “Singularidade” da Grandes Escolhas. Em entrevista ao Observador — uma conversa que se estendeu ao longo de três horas e que teve como objetivo conhecer os novos rótulos alentejanos, monocastas vindos da vinha Chão dos Ermitas —, Maçanita recorda o percurso profissional, as teimosias que o levaram, em 2000, a plantar uma vinha num local ermo dos Açores, experiência que correu mal, ou a apostar num vinho que viria a ser retirado do mercado.

Sem medo de dar opiniões controversas — “O palato dos açorianos é Portugal há 10 anos” — ou de investir em castas de, ao início, se torcer o nariz — como Isabella ou Terrantez do Pico —, garante em entrevista que raramente bebe os próprios vinhos e que a melhor forma de aprender, além da humildade, é mesmo ir provando às cegas tanto quanto o possível.

"Resisti sempre à tentação de contar uma história romântica de que isto deu nisto, mas a verdade é que a minha mãe chegou a comentar: "Que engraçado teres ido para o vinho, a nossa casa foi uma casa onde sempre se bebeu muito vinho, em que o vinho fazia parte das refeições". Mas não posso dizer que cheguei aos 18 anos com isso na cabeça. Eu não bebia vinho aos 18 anos."

No universo dos vinhos, o nome António Maçanita já é bastante conhecido. Sempre disse, no entanto, que não tinha qualquer ligação ao vinho, à exceção, talvez, de quando era pequeno participar nas vindimas na zona de Santarém. De quem eram as vinhas?
A minha prima Mimi, prima da minha mãe, casou com um Ribatejano de Alpiarça e, por isso, tem uma quinta onde íamos passar tempo. Lembro-me que o meu pai, que é professor catedrático de Química, era o químico de serviço na vindima. Mas trabalho não fazíamos nenhum, era mais acompanhar os vindimadores, provar uvas, acartar um ou outro cesto… Foi assim entre os 4 aos 10 anos.

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Ajudava a recolher as caixas de uvas?
Não ajudava nada. Ajudava como os meus sobrinhos ajudam, apanham cinco cachos e já estão focados noutro tema. A coisa mais gira é irmos com as uvas no atrelado e estarmos dentro do lagar a pisar uvas.

O negócio da prima Mimi era vender uvas a granel?
Vendia sobretudo uva e fazia um bocadinho de vinho para consumo em casa.

Tem noção de quando terá provado o primeiro vinho?
Não sei… Diria que desde miúdo que provava um bocadinho. O pai do meu tio Costa era um dos sócios e enólogo nas Caves Império, na Bairrada. Ele era grande amigo do meu pai, eram amigos de república. O meu pai é açoriano e ele da Bairrada. Em Lisboa viveram juntos e bebiam muito Caves Império. O pai diz uma coisa muito engraçada: que começou a beber vinho porque não gostava da água de Lisboa. Esse meu tio tinha, portanto, uma boa garrafeira…

Garrafeira que partilhava com os amigos?
Sim. E abria muita coisa. Resisti sempre à tentação de contar uma história romântica de que isto deu nisto, mas a verdade é que a minha mãe chegou a comentar: “Que engraçado teres ido para o vinho, a nossa casa foi uma casa onde sempre se bebeu muito vinho, em que o vinho fazia parte das refeições”. Mas não posso dizer que cheguei aos 18 anos com isso na cabeça. Eu não bebia vinho aos 18 anos.

O António cresceu em Lisboa?
Sim. Em frente ao El Corte Inglés, estudei na Marquesa de Alorna [escola básica] e depois fui para a Filipa de Lencastre [escola secundária].

Cresceu também com as duas irmãs, Joana e Ana — uma é enóloga e trabalha consigo e outra teve um percurso de sucesso no desporto. Quem é o mais velho?
A minha irmã Ana.

Ela tem que idade?
41. Nós somos todos seguidos: 41, 40 e 39. A minha mãe… [bate as palmas].

O enólogo produz vinho em cinco regiões do país

João Pedro Morais/Observador

“Aos 20 anos tentei enxertar um vinha nos Açores. Não correu muito bem”

Regressando ao que nos traz aqui hoje: a Oceanografia e a Biologia vieram primeiro do que o vinho. Isso tem que ver com uma infância ligada ao mar?
Desde os seis que todos os anos as férias são nos Açores. Usávamos as férias todas em casa dos primos, era a loucura total. Isto em S. Miguel. O meu pai tem três irmãos e uma irmã, há uma catrefada de primos diretos, quase todos nos Açores. Era a galhofa total. Toda a família está ligada à caça submarina. Quando os meus tios começaram a ficar mais velhos já era pesca de corrico. Mas são todos do “Big-game fishing”, os grandes atuns, os grandes marlins… Os momentos que passei com o meu pai — que não foram no enquadramento pai e filho — foram na caça submarina. Como saíamos de madrugada, nós [os miúdos] íamos à frente a ver se havia troncos na água. A esta ligação ao mar juntou-se uma coisa que começou a rivalizar com caça submarina: o bodyboard.

Há uma parte importante da minha vida que, por acaso, nunca abordo: dos 6 aos 16 sou ginasta (ginástica artística). Fui número dois nacional durante uns bons anos, representei Portugal nos Iberoamericanos. Aquilo é uma dedicação total. Os três estávamos metidos nisso, eu e as minhas irmãs. Aos 16 anos é o meu momento de transição, de saída da ginástica — a ginástica é quase um culto, são 4 ou 5 horas por dia mais os fins de semana, mais os campeonatos, mais os estágios… Portanto, eu saio da ginástica e vou para o râguebi e, mais ou menos na mesma altura, começo a fazer bodyboard.

Com que idade começou a praticar bodyboard?
Tinha 13, 14 anos, mas acho que é aos 16 que entra mesmo o bicho. Mas a Oceanografia vem do “Baywatch: Marés Vivas”. Lembro-me que estava a ver o programa e, num episódio, há uma personagem australiana que diz que vai estudar Oceanografia. Pensei: “Brutal, estudar os oceanos!”. Era da área de ciência, tinha notas razoáveis mas que não davam para Medicina, por isso ou ia para área da Biologia ou…

É aí que o aconselham a seguir um caminho diferente?
Sim, o reitor da universidade do Algarve à época era um amigo do meu pai. Eu já me tinha candidatado e fui alterar a minha candidatura. Ele disse-me: “António, se queres isto deves ir para uma universidade focada nas ciências, por isso tens de ir para a universidade técnica. Os primeiros três anos vão ser só Química, Biologia, Física, ficas com a base boa e, a partir daí, se queres ir para Oceanografia ou Biologia Marinha… é mais uma questão de como é que te especializas”.

E depois há aquela história de que se enganou a preencher o formulário para a Faculdade…
Fui trocar a minha candidatura para Engenharia Agronómica mas, não sei como, vou parar a Engenharia Agro-industrial. Enganei-me nos códigos.

Qual é a grande diferença entre as duas coisas?
Os primeiros três anos são quase iguais. O Agro-industrial está na transição da agricultura para a transformação. Essa é a grande diferença.

"O meu tio achou que eu um era maluco que tinha convencido mais dois malucos a virem aos Açores, para um sítio onde só se pode aceder a pé debaixo de chuva cerrada, enxertar novas vinhas, fazer montes, trazer terra... Aquilo era uma parcela pequenina, demorou uma semana. O que é que aconteceu? Não correu muito bem."

E quando é que começa a estudar viticultura?
Acho que é no terceiro ano de faculdade. Entrei em 1997 e em 2000 vou para os Açores.

O que vai fazer aos Açores?
Tentar plantar uma vinha. Isto no contexto do curso. Fiquei entusiasmado com o vinho, com o professor Rogério de Castro. O meu tio, com quem vou à caça, fica com uma vinha nos Açores como resultado de uma dívida — uma parcela de terreno que fica na Rocha da Relva, num sítio completamente surrealista. É uma escarpa sobre o mar que só dá para aceder a pé, de burro ou através do mar. Ele ficou com um pedaço de terra que tinha vinha Isabella. Disse-lhe: “Tio, se calhar eu podia enxertar aí uma vinha, levo umas varas do continente”. Assim foi, convenci dois colegas de faculdade, o Tito [Frederico Vilar Gomes, enólogo e consultor] e João Palhinha [atualmente trabalha nas vendas no Esporão no Brasil].

Como foi a experiência de plantar a vinha nos Açores?
Foi exigente. O meu tio achou que eu era um maluco que tinha convencido mais dois malucos a virem aos Açores, para um sítio onde só se pode aceder a pé debaixo de chuva cerrada, enxertar novas vinhas, fazer montes, trazer terra… Aquilo era uma parcela pequenina, demorou uma semana. O que é que aconteceu? Não correu muito bem. Enxertar é uma atividade muito… é preciso ter alguma experiência, não é qualquer pessoa que o pode fazer. Já tinha feito na faculdade, mas… [risos] Mesmo assim pusemos vários garfos, mas estava tudo errado. As varas que eu tinha escolhido tinham Cabernet Sauvignon, Petit Syrah… tirei das vinhas da universidade. A enxertia correu bastante mal. A pior coisa que existe nos Açores é o que nós chamamos de tempestades secas. Se tiveres o mar a bater, cria uma nuvem atomizada de sal com vento e queima tudo. Foi o aconteceu. Queimou folhas, queimou flores. Eu quero acreditar que estava a pegar bem… [risos] Mas aquilo dizimou uma grande parte. Entretanto o tio vendeu a parcela.

Li que encarou essa tempestade como um sinal para voltar mais tarde para os Açores.
Tenho duas pessoas dentro de mim, uma que é só ciência, como o meu pai, e uma que, como a minha mãe, é mais metafísica, no sentido em que há certas coisas que acontecem por uma razão. Cruzamo-nos com as pessoas por uma determinada razão…

No decorrer da entrevista, no restaurante Tasca da Esquina, foram apresentados três monocastas alentejanos, todos eles quase a chegar ao mercado

João Pedro Morais/Observador

“Tenho um histórico de confrontos gigante”

O que acontece depois de abandonar esta parcela?
Cria-se um grupo de pessoas que começa a fazer disto de provar vinhos um hábito. Um deles tinha um apartamento em Telheiras. Fizemos um grupo de estudo: estudávamos para os exames juntos e íamos ao supermercado comprar vinhos de dois, três euros. Cinco euros era a loucura.

Tem que idade nesta altura?
Estou com 20.

E já sabe que quer fazer vinho?
Ainda não. Um amigo vai fazer um estágio na Califórnia e fala-me a mim e ao Tito do estágio, diz-nos que há um programa em que se pode ir à Califórnia estagiar numa adega. Candidatei-me. O meu pai estava completamente contra. Como é um académico, sempre teve o receio que eu passasse depressa demais para a parte prática, por isso não me apoiou. Vou, então, estagiar para Napa Valley, numa adega que se chama Merryvale Vineyards e que tinha tido um grande momento porque tinha ganhado com o 97 o oitavo melhor vinho da WineSpectator. Vou para lá em 2001 e foi muito engraçado. Foi como se tudo o que tinha aprendido tivesse sido posto em causa.

Porquê?
Acho que as civilizações avançam quando leem bem sobre as anteriores. Califórnia e [a Universidade de] Davis mudaram a forma como se faz vinho no mundo, na Borgonha, em Bordéus… Influenciou o entendimento de maturação, o entendimento de uma enologia limpa, influenciou uma quantidade de coisas. E também há uma forma anglo-saxónica de explicar as coisas que é menos mística, mais prática. Na Califórnia encontrei uma abordagem direta na forma de fazer vinho e, depois, uma forma de fazer bem diferente.

É aí que acontece o shift?
Aí fico completamente apanhado porque isto é infinito, nunca se sabe [tudo] sobre vinho. Nunca.

"Ou nós temos uma atitude completamente humilde de estar sempre a olhar para o mundo, de estar sempre a aprender, ou... Nunca bebi tantos vinhos internacionais numa adega como nos Estados Unidos. Uma vez por semana, duas vezes, estava a provar vinhos franceses, italianos, etc... Estava constantemente a aprender, a provar com um olhar crítico, não era só contemplativo. Isso dá uma humildade gigante: ver como é que os outros fazem e tentar sempre fazer melhor."

E é isso que o fascina?
Sim. Fascina-me. Alguém dá um passo ao lado, muda de região ou muda de casta, e ficamos a zero outra vez.

O estágio na Califórnia foi de quanto tempo?
Foram mais ou menos quatro meses. Foi em 2001. Na altura dos atentados [11 de setembro] eu estava na Califórnia.

A essa distância que críticas fazia ao sector em Portugal?
Zero. Zero porque também não tenho uma verdadeira imagem do negócio em Portugal. Acho que esse é o meu talento e o meu defeito. Nunca fiz esse trabalho do que se faz em Portugal. Fui para a Califórnia e pensei “tenho de voltar”.

Faz ainda estágios na Austrália e em França. O que se ganha com essas experiências? Que ideias traz consigo?
Que não somos os maiores, nem os Estados Unidos o são. Ou nós temos uma atitude completamente humilde de estar sempre a olhar para o mundo, de estar sempre a aprender, ou… Nunca bebi tantos vinhos internacionais numa adega como nos Estados Unidos. Uma vez por semana, duas vezes, estava a provar vinhos franceses, italianos, etc… Estava constantemente a aprender, a provar com um olhar crítico, não era só contemplativo. Isso dá uma humildade gigante: ver como é que os outros fazem e tentar sempre fazer melhor.

Já em Portugal, é conhecido que a Herdade da Malhadinha Nova tem um papel importante no seu percurso. Quer recordar a história?
Há uma altura em que envio currículos para tudo o que havia de estágios em Portugal. Soube que ia abrir uma adega de uns tipos que tinham umas garrafeiras — ainda não havia nome Malhadinha —, pelo que nós [os colegas de faculdade] enviámos o currículo. Isto em 2003. Quem é chamado é o Tito. “Que escândalo, então não me chamaram a mim?”, disse. Também não chamaram uma amiga minha e nós decidimos ir os dois com o Tito à Malhadinha [produtora alentejana]. Fomos no mesmo carro. Queríamos aproveitar para conhecer um projeto novo. Claro que fomos todos entrevistados. Eles acharam-nos imensa graça. Havia lugar para um e ficámos os três. Surreal.

O que ficaram os três a fazer?
Participámos na primeira vindima. Fizemos um bocadinho de tudo, desde instalação a acompanhamentos de maturação. Foi uma fase super gira. Vínhamos com muita escola das nossas viagens. Mas a forma de aprender, no final do dia, é sempre provas cegas. Sempre. Garrafas para cima da mesa. A casa [da Herdade da Malhadinha Nova] tem uma sala de refeições onde fazíamos as provas e onde jantávamos todos juntos.

Houve alguma vez em que tenha ficado surpreendido pela negativa com um vinho em prova?
Tenho um histórico de confrontos gigante. Porque sempre disse só o que achava em cegas. Um dia cheguei a comentar: “Como é que é possível um enólogo estragar estas uvas?”. Estavam dez vinhos na prova, só havia um produtor de um dos vinhos, calhou ser ele… Foi uma cena…

Ele reagiu?
Reagiu, reagiu. Correu muito mal.

Dão-se bem hoje em dia ou nem por isso?
Não. [risos] Mas também não há razão para nos darmos porque eu continuo a achar a mesma coisa. Mais tarde, fomos lá almoçar. Eles quiseram fazer uma brincadeira e fizeram umas cegas e escolheram vinho do mesmo produtor — provei e comentei “Este é lá do vosso amigo”.

Ainda hoje faz provas cegas com regularidade?
Sempre, sempre. Eu nunca bebo vinhos meus.

Em casa não tem vinhos seus?
Tenho algumas coisas na cave. Mas tenho que ir com esforço buscar. Não são colheitas atuais. São vinhos que quero guardar.

Alicante Branco é uma das novidades, resultante da vinha Chão dos Ermitas, vinho debaixo do chapéu "Fita Preta"

João Pedro Morais/Observador

“Era mesmo boi para palácio”

Quando é que negócio do vinho começa a arrancar?
A Malhadinha Nova é o meu primeiro momento de conexão com a indústria e permite-me meter o pé no Alentejo. Percebo que quero aprender mais sobre vinhas — era mesmo boi [a olhar] para [um] palácio. Aprendi viticultura, mas olhava para uma vinha e não sabia se era boa ou má. Pensei: “Ou vou estudar viticultura ou arranjo um viticultor”. Lancei o desafio a alguns viticultores para lhes fazer sombra. Ninguém quis até o David Booth aceitar.

Quem era o David Booth?
O David era viticultor consultor. Quando o conheci já estava a entrar para o projeto Terras d’Alter. David era um militar inglês com um percurso muito engraçado. Foi um oficial de cavalaria que decidiu passar para infantaria… É um bocadinho de cavalo a burro. Mas ele queria passar para a ação. Quando há a hipótese de renovar [o contrato], ele diz que vai viajar. O pai dele morre aos 40 anos com um problema de coração e o David tem, de raiz, uma forma de estar com a clareza de que a vida pode acabar aos 40 anos. Então, ele vai para África trabalhar para uma associação de desminagem. Depois faz proteção de vida selvagem no Quénia, regressa para Moçambique e aí conhece a Madalena Roquete, que acaba por ser a mulher dele.

O David já morreu. Conhece-o tinha ele que idade?
Exatamente a minha idade agora, 40.

Porque é que acha que ele decidiu ajudá-lo?
Todas as pessoas que conheceram o David num período diferente ao meu disseram uma coisa muito gira… Cuidado que eu posso começar a chorar… O David acreditava muito nas pessoas. “Tu és o maior”, “Espetacular!”, isso era o David. Ouvia muito e dava esse feedback.

Eu tinha acabado de chegar, tinha ausência de filtro — ainda tenho bastante —, dizia mesmo o que pensava. Então, em conversa, ele pergunta: “Não achas que o grande problema de Portugal é a viticultura, que tem de melhorar?”. E eu respondo: “Não, o problema são os consultores”. [risos] E ele: “Ok…” [imita sotaque britânico]. Expliquei que isto de passar fórmulas e receitas às pessoas e depois desaparecer foi bom para ir de fraquinho para bonzinho, mas que era um bloqueio para crescermos. Óbvio que era o desabafo de um jovem enólogo. Ele sorriu e disse: “Fiz imensos erros na minha carreira, mas fui aprendendo com os clientes. O bom de ser consultor é que trabalhas com imensos clientes ao mesmo tempo”. Depois perguntou-me o que é que queria fazer e respondi: “Quero ser consultor”. [risos]

"Esses seis meses são várias coisas. O David traz-me uma introdução direta na indústria. Estamos a falar de alguém que consulta uma data de clientes que são futuros produtores de vinho. E não passei indiferente porque, mais uma vez, pensei que quando perguntavam "O que achas do vinho?" que estavam a pedir pela minha opinião. Dava sempre a minha opinião..."

Durante quanto tempo trabalhou na sombra do David?
Mais ou menos seis meses.

Como é isso funcionava? Onde é que dormia?
A casa dele ficava em Evoramonte, tinha um anexo onde fiquei durante a primeira semana. Depois fiquei na Quinta do Mouro, já em Estremoz. Financeiramente foi exigente para mim. O meu pai é ao cêntimo… Ia com a minha Citroën Dyane para o Alentejo… Era um processo. Tive de devolver tostão por tostão com juros.

Esses seis meses são várias coisas. O David traz-me uma introdução direta na indústria. Estamos a falar de alguém que consulta uma data de clientes que são futuros produtores de vinho. E não passei indiferente porque, mais uma vez, pensei que quando perguntavam “O que achas do vinho?” que estavam a pedir pela minha opinião. Dava sempre a minha opinião…

Acha que os produtores têm pouca sensibilidade para receber críticas aos seus próprios vinhos?
Acho que mudou muito. Em 15 anos a indústria mudou radicalmente. Acho que as pessoas entendem que o mundo é infinito, que não há fórmulas certas e que há mil tipos de consumidores.

“Ainda estás na fase da metralhadora, podes disparar as balas que quiseres”

O primeiro vinho, o Preta, é feito com o David?
Sim. É com o David. Estamos em 2004 e eu estou a trabalhar com o David. Chegou uma altura em que disse que estava a pensar em produzir o meu próprio vinho. Perguntei se queria entrar comigo e ele disse que não porque já tinha o projeto Terras d’Alter. E eu também era novo. Ele estava a fazer o papel dele. Ficámos amigos. Continuava a acompanhar o David quando, um dia, a bebermos uma cerveja no castelo de Evoramonte, ele perguntou-me se a minha oferta ainda estava de pé. Respondi que sim. E ele usou esta expressão: “Ok, ainda estás na fase da metralhadora, podes disparar todas as balas que quiseres. Eu já estou na fase da carabina, tenho dois filhos, uma casa por pagar, tenho quase 40 anos e tenho de escolher muito bem os projetos em que me vou meter, mas este é um projeto em que me quero meter”. Assim foi.

Com que uvas foi produzido este vinho?
A partir do momento em que tomámos esta decisão fomos à procura das uvas para o projeto, andámos à procura de solos que naturalmente fizessem retenção de água, o que são sobretudo xistos. Encontrámos uma vinha que até estava no primeiro ano de produção, plantada há dois anos. Usámos essa vinha e uma outra que fazia parte de um projeto de consultoria dele.

Preta, de 2004, foi o primeiro vinho criado pelo enólogo

O Preta foi o primeiro vinho de assinatura?
Não diria de assinatura, é o primeiro vinho. O logótipo são duas pessoas. A nossa ideia era mesmo esta: um viticultor e um enólogo sem quinta, sem capacidade financeira. Eu arranjei 30 mil euros e ele arranjou 20 mil.

Esses 30 mil euros foram emprestados pela família?
Sim, 15 mil do meu tio dos Açores, 10 mil do meu pai e 5 mil da minha mãe. Foi isto. E foi um esforço. Eu sabia que o meu tio tinha emprestado 15 mil ao meu pai e não a mim. Fazemos o primeiro vinho na Malhadinha Nova.

Porque é que se chama “Preta”?
Sempre quis que fossem nomes curtos. Não quero quintas, não quero herdades [nos rótulos], nada disto. Quero uma comunicação clara e que transmita tanto quanto possível o que está dentro da garrafa. A empresa tinha ficado “Fita Preta”, que é o local onde passo férias nos Açores. Já não dava para ser outro nome. Hoje, honestamente, acho que é irrelevante os primeiros nomes das empresas. Gasta-se tempo demais [a pensar nisso].

Depois de vários nomes para a frente e para trás, a minha tia diz "Sexy". O meu amigo gostou logo. Começou a desenhar e fez uma composição fúcsia. Lembro-me de olhar para aquilo e de pensar "Indiferente não é". Liguei para o meu pai a contar. "Sexy? Isso não faz sentido nenhum", respondeu. "Que parvoíce". Foi quase uma desilusão: "O meu filho vai para o mundo dos vinhos... e...". Perdeu-se o charme todo. Mas gostei da ideia. O maior risco que tínhamos era ficarmos presos na prateleira.

Quando é que o vinho “Sexy” entra na equação?
A minha ideia era fazer um “Preta” e um “Palpite”. “Palpite” é um nome que vem da filha do David. Um dia estávamos os dois a conversar como 2004 foi um ótimo ano. A Sophie ouviu-nos e disse “Foi um palpite”. Sorrimos porque meteu-se de forma engraçada na conversa. Então, a ideia era fazer dois vinhos, mas esse segundo vinho não tinha o patamar [suficiente] para ser o “Palpite”. Era um vinho engraçado. Era guloso. Um dia, desafiei um velho amigo meu, que não tem nada que ver com o vinho, para ir às Azenhas do Mar, onde costumava surfar. Desafiei-o para ir a casa da minha tia para fazermos um brainstorming — ele era designer autodidata. Depois de vários nomes para a frente e para trás, a minha tia diz “Sexy”. O meu amigo gostou logo. Começou a desenhar e fez uma composição fúcsia. Lembro-me de olhar para aquilo e de pensar “Indiferente não é”. Liguei para o meu pai a contar. “Sexy? Isso não faz sentido nenhum”, respondeu. “Que parvoíce”. Foi quase uma desilusão: “O meu filho vai para o mundo dos vinhos… e…”. Perdeu-se o charme todo. Mas gostei da ideia. O maior risco que tínhamos era ficarmos presos na prateleira.

Não teve medo que o nome “Sexy” pudesse ser visto como muito disruptivo?
Se calhar por não estar dentro da indústria… Sempre que senti que a indústria me incomodou, isolei-me. Mas nessa altura nem sequer sabia o que era a indústria, nem sequer estava dentro do meio, não conseguia sentir a ofensa. Achava mais importante o vinho ser disruptivo do que ser mais um monte ou mais uma quinta.

O vinho Sexy pretendeu, desde logo, ser disruptivo

Hoje olha com orgulho para esse vinho?
Completamente. Estou orgulhoso do que meti nas garrafas. E em consultoria são 150 vinhos diferentes por ano. É uma batelada de vinhos. Digo sempre às equipas com que trabalho que a nossa responsabilidade máxima é no momento de engarrafar — o vinho tem de cumprir a promessa. Em determinados meios, do ponto de vista estratégico, separámos o “Sexy” de outras marcas. Numa primeira impressão, fui entendendo que tendo uma garrafa de “Sexy” na mesa era impossível conversar sobre outra coisa. Sofreu disto e sofre ainda. A primeira pergunta que quase todos os entrevistadores portugueses me fizeram até agora é sobre o “Sexy”: perguntam se a minha enologia é marketing. Foi sempre o tom, com a expetativa que eu me descartasse da marca.

Maçanita iniciou-se nos vinhos em 2004, no Alentejo. O primeiro vinho foi o "Preta"

João Pedro Morais/Observador

O “Sexy” — que custa entre 8 e 9 euros — é um vinho com uma faturação de 500 mil euros ao ano. Explicou num debate promovido pela “Revista de Vinhos” que é um vinho que não precisa de ter um comercial associado porque se vende sozinho. O “Sexy” vem para o mercado todos os anos?
Sim, são mais ou menos 100 mil garrafas por ano.

É um vinho que escoa facilmente?
Diria que é um projeto que precisa de amor. O que quero dizer com isto é que não posso estar satisfeito do ponto de vista comercial. É um projeto que foi e que é importante. É um projeto que tem mais liberdade, está preocupado mais com o sabor do que se veio do Alentejo — é do Alentejo —, mas não é esse o tema. “Is it delicious?”.

É um vinho que pode ser mais facilmente associado a uma brincadeira?
Sim, claro. Mas acho que o posicionamento de preço filtra um pouco a brincadeira.

Este pode ser, de alguma forma, o seu Mateus Rosé ou o seu Casal Garcia?
Já não é o vinho que vende mais.

Qual é?
O vinho que vende mais é o “Fita Preta” tinto. É um vinho que deve raspar as 80 mil garrafas. Hoje em dia, os vinhos dos Açores já ultrapassaram o “Sexy”. O Douro está praticamente a ultrapassar. O projeto “Sexy”… não tive motivação ou foco… ele ficou estático. Tenho vontade de baralhar e voltar a dar, porque acho que há tanta coisa gira para fazer solta.

Atualmente tem projetos próprios no Alentejo (“Fita Preta”), nos Açores (Azores Wine Company) e no Douro (vinhos “Maçanita” feitos juntamente com a irmã Joana), além do projeto de consultoria que abarca ainda Algarve e Lisboa. O que veio primeiro?
O “Fita Preta” é o primeiro projeto de todos. Nessa altura ganho de certa forma a confiança do David que me recomenda a alguns dos seus clientes, como o James Frost [Quinta de Santa’Ana, Lisboa] que é um antigo colega do exército de David. Em 2005 estou com “Fita Preta”, “Quinta de Santa’Ana”, “Herdade do Arrepiado Velho”, “100 Reis” e “Albergue do Bonjardim” (biológico). Em 2006 crio a empresa de consultoria. Estamos com três consultores para 11 clientes.

“O palato do açoriano é Portugal há 10 anos”

Quando é que os Açores arrancam?
Quando sou convidado [pela Escola de Formação Turística e Hoteleira] para dar formação de vinhos nos Açores, em 2007. Dei-me bem e fui convidado para dar uma formação anual sobre harmonização de comida e vinhos para cozinha, para chefs. Nesse processo tive de passar muito tempos nos Açores. Tive oportunidade de ver o que havia de vinhos e de visitar produtores.

Foi aí que ficou interessado em fazer vinhos nos Açores ou já havia essa vontade antes?
Sempre quis. Dar-me ao luxo de fazer 600 quilos nos Açores é uma coisa que só se pode fazer depois de se ter dinheiro suficiente para pagar a pessoal, para conseguir ter rendimento. As coisas arrancaram quando tomei consciência que havia um processo de recuperação de uma casta, o Terrantez do Pico. Houve um programa nacional para recuperar a casta e colocá-la em campos de conservação. Ninguém sabia o que se ia fazer depois com o Terrantez do Pico, mas se se conservasse pelo menos havia futuro. Tomei conhecimento disto e lembro-me que me disseram: “Se calhar há uma razão porque esta casta desapareceu… não se consegue fazer grande vinho com ela”. Para mim foi um clique Um desafio.

"Dar-me ao luxo de fazer 600 quilos nos Açores é uma coisa que só se pode fazer depois de se ter dinheiro suficiente para pagar a pessoal, para conseguir ter rendimento. As coisas arrancaram quando tomei consciência que havia um processo de recuperação de uma casta, o Terrantez do Pico."

Encarado como um desafio, o que se segue?
Lanço um protocolo, porque é um projeto dos Serviços Agrícolas de S. Miguel… Fiz uma proposta na altura ao diretor dos Serviços Agrícolas e ele aceitou o desafio. O desafio foi tentar fazer um vinho com a casta e eu ficaria com 80% do vinho para engarrafar e usar do ponto de vista comercial e promocional, o que quisesse. O objetivo era testar o potencial da casta nas suas várias vertentes. No primeiro ano fiz um Terrantez do Pico só a tentar fazê-lo limpo.

Foi esse vinho que foi feito numa adega de 50 metros quadrados?
Sim, dá-me ideia que o desengaçador nunca tinha sido desmontado. Havia umas roscas que dobravam por dentro. Tivemos de ir buscar um serralheiro e, então, era “nhanha” que saía de dentro… Não há milagres. Disse ao Filipe Rocha, na altura diretor da Escola de Formação Turística e Hoteleira (EFTH), que não estava a conseguir manter os vinhos na temperatura de que precisava. Disse-lhe que precisava de gelo, de 500 quilos por dia, caso contrário o vinho subia de temperatura. Ligou-me de volta a contar que tinha ligado para a lota do peixe… foram-nos lá entregar gelo 1h30 depois.

O primeiro Terrantez do Pico é de 2010. Que outras colheitas foram feitas?
Os primeiros quatro anos foram dentro do protocolo. Depois, eles fizeram uma coisa muito engraçada: está testado, há uvas disponíveis, então há um leilão a carta fechada todos os anos. Este ano nós arrematámos por 7,90 euros o quilo.

Isso é bastante…
É uma loucura. É Champanhe.

As uvas dos Açores são as mais caras de Portugal?
Sim, são as mais caras de longe.

O Terrantez do Pico é o primeiro vinho da sua autoria feito nos Açores. Que outros vinhos se seguiram?
A terra vale muito dinheiro. Ainda hoje, tirando nós, 99% dos vinhos dos Açores são vendidos nos Açores. O palato do açoriano é Portugal há 10 anos. Um grande branco dos Açores no arquétipo da cabeça de um açoriano é um Chardonnay 100% madeira com 15% de álcool, salvo seja. Além disso, é capturado pela restauração para ser um entrada de gama. Os custos de produção são absurdos. O branco mais caro dos Açores devia custar 6 ou 7 euros na prateleira e este vinho é lançado a 25 euros [em 2010] e lançado com uma lógica de imprensa especializada — um bocadinho em Lisboa, em Bruxelas, Nova Iorque… Pequenas drops.

Em 2013 sou convidado para dar outra formação. Foi um workshop de três dias no Pico. Foi muito intenso no início. Fizemos muitas provas, os produtores trouxeram vinhos, discutimos, senti que havia uma boa vibe. Decidi lançar um desafio para fazer três projetos: um de pesquisa histórica sobre qual é a verdadeira história do Pico; um de pesquisa genética e um projeto de horas de consultoria grátis. Esse projeto foi recusado por todos os produtores, exceto um, o Paulo Machado, que na realidade foi o único que não esteve lá. Era, na altura, o presidente da CVR dos Açores. Ele disse que sim. Em 2013, fazemos juntos o primeiro teste da casta Arinto dos Açores. Demo-nos super bem.

"A terra vale muito dinheiro. Ainda hoje, tirando nós, 99% dos vinhos dos Açores são vendidos nos Açores. O palato do açoriano é Portugal há 10 anos. Um grande branco dos Açores no arquétipo da cabeça de um açoriano é um Chardonnay 100% madeira com 15% de álcool, salvo seja. Além disso, é capturado pela restauração para ser um entrada de gama. Os custos de produção são absurdos."

Sai para o mercado em que ano?
2014. O Filipe Rocha juntou-se a esta aventura.

Paulo Machado, Filipe Rocha e António Maçanita = Açores Wine Company?
Sim, os três decidimos que podíamos fazer mais do que apenas um vinho.

Quantas referências tem a Azores Wine Company?
Posso contar? Arinto, Verdelho, Terrantez do Pico, Arinto “sur lies”, Vinha Centenária, Verdelho 10 Anos, Da Pedra se fez Espumante, Isabella, Saborinho, Rosa Vulcânico, Branco e Tinto Vulcânico. 12.

Doze referencias desde 2014?
Certo.

Além dos projetos próprios, dá consultoria a uma dezena de clientes

João Pedro Morais/Observador

“‘Isabella, A Proíbida’. Fui um bocadinho mais naive do que isso”

“Isabella, A Proibida”. E a polémica. No comunicado de imprensa está escrito que o vinho chegou a ser retirado do mercado. Como estão as coisas?
É uma boa pergunta. O vinho não está de volta porque isto vive num limbo. As castas híbridas foram proibidas em Portugal em 95, acho eu.

Isso é uma diretiva da União Europeia?
Certo. Herdada de uma diretiva francesa dos anos 30.

A Isabella é a uva Morangueiro?
Sim, é o Morangueiro.

Que é a uva americana?
Na realidade é um híbrido. É um cruzamento entre a Vitis vinifera x Vitis Lambrusca. Na realidade, a Isabella foi criada em Filadélfia porque tudo o que se tentava plantar lá de vinhas morria. Então, fez-se um híbrido. Quando surgem os problemas do oídio e da filoxera, a Isabella acaba por ser grande parte da solução que se encontrou. O oídio entra nos anos 50, nos Açores em 53 [século XIX]. O oídio tem impactos diferentes dependendo da região. Nos Açores, por exemplo, em 9 anos passámos de 10 milhões para 25 mil litros. É o arrasar total. Depois, trazem-se os híbridos para tentar resolver o problema e vem a filoxera.

A filoxera surgiu com a vinha americana e foi solucionada com a vinha americana?
E o próprio oídio também. A filoxera surge 15, 20 anos depois do oídio. A filoxera é um inseto, o oídio é um fungo.

Do que li, há quem alegue questões de saúde para proibir a Isabella, há quem alegue questões políticas…
Temos de pensar que a Europa, à data, enfrenta um grave problema de produção. Coloca, então, estas castas híbridas em conjunto com uma quantidade de outros híbridos que são inventados no mesmo período. O híbrido é um cruzamento interespecífico, é pegar em duas subespécies diferentes e cruzá-las. Uns são trazidos, outros são criados. Descobre-se a enxertia, resolve-se o problema da filoxera colocando o porta-enxerto americano e faz-se a enxertia por cima, que é o que se passa hoje em dia. Passa a existir um excesso de produção na Europa, sobretudo em França, e também nas colónias (sobretudo na Argélia). À medida que isto vai avançando, temos de nos ir colando à história: há a primeira guerra mundial, depois uma pré-segunda guerra e não se conseguiu pegar no assunto.

Há excesso de vinho. O vinho nunca teve preços tão baratos e a qualidade nunca foi tão má. Decidiu-se, então, reorganizar o sector e dá-se início ao processo de classificação das DOC [Denominação de Origem Controlada] ou das AOC [Appellation d’origine contrôlée], o que se pode e não se pode plantar. Decidiu-se a proibição de sete castas, que eram as castas mais plantadas na Argélia. Esta foi uma decisão para reduzir importações. Proibiu-se, entre outras castas, a Isabella. Isso aconteceu em França e, mais tarde, algumas dessas medidas foram implementadas pouco a pouco na União Europeia. Foram fenómenos sociais. Os mais velhos têm memória de pessoas a arrancar vinha. Mas obrigadas à séria, com polícia… O movimento da altura tem duas dimensões: por um lado, estas castas não convinham nada às empresas de químicos, isto em período pós-guerra, porque são muito resistentes; por outro, devido ao excesso de produção havia interesse em bloquear importações.

Não é legal o consumo do Morangueiro, apesar de ser muito produzido nos Açores?
É o vinho de cheiro. O regime de exceção existe para os Açores. Quem aplica a legislação é o Governo Regional, então existe. Que há vinho de cheiro nos Açores é uma evidência. A cooperativa deve fazer para aí 150 mil litros. Nos Açores há cerca de 400 hectares de vinha. É perceber a dimensão agrícola que existe disto.

Há 400 hectares de Morangueiro nos Açores em quanto no total?
Tem vindo a reduzir imenso. De vinifra [uva europeia] devemos ter 1000 hectares, mas antes era o contrário.

E quantos hectares produtivos existem nos Açores?
1400… Produtivos é um termo diferente, não é muito claro.

Já conhecia as restrições desta casta quando fez o “Isabella, A Proibida”?
Fui um bocadinho mais naive do que isso. Em 2004 provei um vinho destes bom e disse “Uau”. Falei com o Paulo Machado e ele disse “O meu é melhor”. [risos] Então, fui provar o dele. Ele tinha 4 cubas de mil, escolhi uma e fizemos o primeiro Isabella 2014. Tranquilo. Chamei-lhe mesmo “Isabella, A Proibida”, não tinha nada disto [refere-se ao nome “Isabella” riscado no rótulo]. Na minha cabeça era “A proibida” mas não era “é proibida”. [risos] Podes fazer desde que não levantes muito a cabeça. E quando se fala sobre questões de saúde é um absurdo. Isto é legal no Brasil, nos EUA, é com isto que se fazem sumos de frutas para crianças…

O que é que aconteceu depois?
No nosso caso, já depois de o vinho estar esgotado, em 2016, recebemos uma carta do IVV [Instituto do Vinho e da Vinha] a dizer que tínhamos uma semana para retirar o vinho do mercado — 5 ou 4 dias, uma coisa qualquer dessas —, à qual respondi “O vinho chama-se Isabella porque é uma homenagem à Infanta Isabella que casou com o duque de Borgonha e foi ela a responsável pela colonização dos Açores. É uma homenagem e não pode ser um híbrido porque os níveis de metanol são mais baixos do que os vinhos do Alentejo e para além disso também não acusa Malvidina Di-glucósido, que é o que identifica os híbridos. Só posso assumir que não é mas, de qualquer forma, peço desculpa pela confusão com o nome, vou retirar já do mercado”. Não retirámos porque acabou. Lançámos só “A proibida”, já não incumpre com a legislação, não diz Isabella.

"Fui um bocadinho mais naive do que isso. Em 2004 provei um vinho destes bom e disse 'Uau'. Falei com o Paulo Machado e ele disse 'O meu é melhor'. [risos] Então, fui provar o dele. Ele tinha 4 cubas de mil, escolhi uma e fizemos o primeiro Isabella 2014. Tranquilo. Chamei-lhe mesmo "Isabella, A Proibida", não tinha nada disto [refere-se ao nome "Isabella" riscado no rótulo]. Na minha cabeça era "A proibida" mas não era 'é proibida'."

Mas é a mesma casta?
Isso agora não sei, não faço ideia, são vinhas velhas… [risos]. Este esteve no mercado para aí dois anos. Depois apertaram connosco lá. Um conjunto de produtores que não está de acordo fez um manifesto, um protesto. Um dos produtores foi para a comunicação [social] e houve uma resposta muito agressiva. Ficámos com vinhos apreendidos. Sentimos que havia muitas guerras para travarmos ao mesmo tempo e que o risco é real, isto depois de nos consultarmos com advogados. O risco pode ser fecharem-te o armazém, dá até dois anos de cadeia. O que é que fizemos? Não parámos aqui, continuámos o nosso trabalho, incluindo entender verdadeiramente quais são as castas que estão plantadas nos Açores. Estas vinhas velhas têm 150 anos. Acho que devia ser morto é quem quisesse arrancar uma vinha de 150 anos… são peças lindas. São 150 anos.

Mas consegue-se sempre perceber que castas compõem uma vinha velha se se fizer um estudo…
… genético. Fizemos.

No caso de “A Proibida”… nas vinhas velhas não há uma grande percentagem de Morangueiro?
A palavra Morangueiro não me diz nada. É um termo popular, para um tipo de aroma.

Não é um nome para uma casta em particular?
Não. São castas com influência lambrusca. O que é engraçado é que depende um bocadinho de como Portugal quiser olhar para isto.

A uva híbrida Isabella está em reapreciação

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Ao Observador, o porta-voz dos assuntos de agricultura da representação da Comissão Europeia em Portugal, Daniel Rosário, explica que “em junho de 2018 a Comissão Europeia apresentou um conjunto de propostas no âmbito da reforma da PAC (Política Agrícola Comum). Uma dessas propostas incide sobre a Organização Comum de Mercado (OCM) do vinho e, entre outras coisas, propõe que a decisão final sobre a manutenção ou levantamento das restrições em vigor relativamente a um conjunto de variedades de vinha (entre as quais a Isabella) seja entregue a cada Estado-Membro. Estas propostas estão agora a ser discutidas pelos co-legisladores (Parlamento Europeu e Conselho). Brasil e Suíça estão entre os países onde se produzem vinhos a partir desta casta”.

Num segundo momento, pós-entrevista, o enólogo António Maçanita acrescentou a seguinte informação: “Está em cima da mesa um movimento mundial de re-autorização destas castas por serem, por um lado, parte da cultura e história de muitas regiões, por outro são castas mais resistentes a doenças por isso precisam de menos tratamentos fitossanitários. Recentemente uma consciencialização aconteceu e os produtores açorianos querem sair deste limbo do “pode-se mas não se pode fazer” e querem também que o IVV [Instituto do Vinho e da Vinha] introduza na [lista das] castas autorizadas algumas castas que não são interditas na União Europeia. O Governo Regional já tomou posição sobre o tema e está a fazer um esforço para que mude”.

Este é um assunto que está a ser reapreciado?
Sim, mas os produtores estão contra. Há várias formas de olhar para isto: o que é que está nas mãos da União Europeia e o que é que está nas mãos de Portugal. Mas nas mãos da UE, e isso tem de ser decidido na UE, é alterar as castas que são proibidas. Agora, as castas autorizadas dependem única e exclusivamente do IVV [Instituto do Vinho e da Vinha]. Hoje em dia não posso usar algumas castas híbridas nos Açores porque não fazem parte das listas das castas autorizadas em Portugal.

Não estamos a propor que se plante, estamos a propor que se conserve. É difícil encontrar em Portugal vinhos com uma profundidade tradicional como o vinho de cheiro; ele faz parte de todo o receituário dos Açores, faz parte das festas de S. Cristo e das de Espírito Santo, celebra-se com vinho de cheiro, cozinha-se com vinho de cheiro. O mais engraçado disto tudo é que é bom, eu gosto deste vinho. É do século 22, é um vinho que tem pouco álcool, tem muita fruta, é fresco, tem tanta acidez como os brancos, é um tinto que tem um público… Há um livro que é do melhor sommelier da Bélgica que diz “365 vinhos para beber antes de morrer” e um deles é a Isabella. Temos duas estrelas Michelin em Chicago a trabalhar com a Isabella.

"Ficámos com vinhos apreendidos. Sentimos que havia muitas guerras para travarmos ao mesmo tempo e que o risco é real, isto depois de nos consultarmos com advogados. O risco pode ser fecharem-te o armazém, dá até dois anos de cadeia."

Fora da UE é permitido?
Permitido. E comercializável e comercializado. Somos provavelmente o único produtor satisfeito com o Brexit. Estou a brincar… [risos]

Se de hoje para amanhã as coisas mudarem está preparado para voltar a trabalhar a Isabella?
Eu continuo a trabalhar a Isabella porque vendo para o Canadá, para os EUA e para o Brasil.

Tem como uma espécie de missão trabalhar castas em vias de extinção ou menos disseminadas. Terrantez do Pico e Isabella são exemplos disso. Esta é uma das suas assinaturas enquanto enólogo?
Cheguei aos Açores e quis saber quais eram as castas daqui e no que é que davam. Este exercício podia ter corrido mal. Não acredito em más castas. O sentido estético é discutível. Quando estou a tentar que um Fernão Pires se pareça com um Arinto, sim é uma má casta, não tem acidez, é aromática. É mais numa lógica de expressar o que é que cada sítio dá. Óbvio que há castas que gosto mais de trabalhar do que outras. A maior parte das castas desaparecidas que fui descobrindo adaptam-se felizmente a um momento do mundo.

E que vinhos temos hoje em cima da mesa?
Três vinhos do Alentejo, tudo da mesma vinha, Chão dos Ermitas, que é no sopé da Serra D’Ossa. De uma vinha plantada em 1970, faz 50 anos este ano.

Monocastas Tinta Carvalha, Alicante Branco e Trincadeira das Pratas…
Sim, depois temos Castelão, Alfrocheiro, é o encepamento antigo. Este é muito provavelmente o encepamento original do Alentejo. Não digo estas três castas, são estas castas e outras que existiram. O que é que temos aqui nestes três vinhos? Isto põe em causa o que eu sempre achei que o Alentejo tinha sido. Prova-se a Tinta Carvalha… esta casta foi sangrada para ficar concentrada. Isto não fui eu a tentar fazer um vinho mais claro. Tem metade da cor do Castelão. O Tinta Carvalha pode ser vinho regional, mas não pode ser DOC, apesar de estar em região DOC. Chumbou três vezes porque não se enquadra no perfil da região. Eu liguei para eles [Comissão Vitivinícola Regional Alentejana] e disse: “Estou cansando de estar em guerra com vocês”. O Castelão nunca passou. É vinho de mesa.

São todos colheita de 2018 e são os primeiros da sua espécie…
Sim. Vão ser agora lançados.

Num debate promovido pela Revista de Vinhos, protagonizado por si e pelo produtor Dirk Niepoort, este argumentou: “Gostava que houvesse mais Maçanitas”. Como é que interpreta essa mensagem?
É uma super elogio. Eu e o Dirk não temos numa intimidade à priori. O Dirk simboliza para mim duas coisas: uma, não está travado ou bloqueado no que fazer porque não há nenhuma guião nem para a vida, nem para os vinhos; dois, gostaria de ter o impacto do Dirk, que tem a capacidade de agregar pessoas. Ou seja, [gostava] de ir mais além do que fazer um vinho, conseguir transmitir a mensagem de forma mais clara porque senão as coisas não geram mudança.

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