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As "Cenas da Vida Americana" de Clara Ferreira Alves

Jaime Nogueira Pinto escreve sobre o novo livro de Clara Ferreira Alves. São crónicas "bem escritas e bem pensadas, obrigam-nos a pensar, para concordar ou discordar". E estas são as razões.

Estamos politicamente – ou melhor, ideologicamente – em terras diferentes e vimos de tribos inimigas, mas isso nunca impediu ninguém de respeitar quem quer que fosse – ou se impediu não devia impedir. Tanto mais por cá e nos tempos que correm, onde a divergência independente e pensante é rara. Gosto da Clara Ferreira Alves e tenho respeito por ela e pelo que escreve. A Clara é inteligente, sensível, culta e corajosa e tem a grande virtude de não se importar de incomodar instituições e pessoas poderosas e rancorosas.

Feita esta declaração prévia, a primeira coisa de que gosto nas Cenas da Vida Americana, de Reagan a Trump é da capa: os Nighthawks de Hopper, uma América que também imaginei muito antes de lá ter posto os pés. Hopper é um pintor com um sentido único da transcendência e dos mistérios da vida e da terra. Há uma precisão abstracta, um realismo vago, uma solidão escassamente povoada nos seus quadros que nos trazem uma verdade funda sobre a nossa humanidade comum, dando-nos ao mesmo tempo a modernidade concreta, estranha e irrepetível de uma certa América.

“Cenas da Vida Americana”, de Clara Ferreira Alves (Bertrand)

É Hopper que abre esta digressão de quase quarenta anos pela América política e cultural, uma América a que, como a Clara nos lembra, resistimos a chamar Estados Unidos porque, de algum modo, continua a ter para nós uma dimensão ideal, ou tão excessivamente real que tende a tornar-se surreal.

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Esta viagem pela América, desde “o tempo das cruzadas ideológicas de Reagan” ao das “promessas obscuras de Trump”, faz-se através de crónicas, de cenas, publicadas ao longo dos anos e agora reunidas em livro. Escreve a Clara que entretanto “a América mudou” mas “não tanto como gostaríamos de acreditar” ou como o consulado de Obama nos poderá ter feito acreditar.

Escusado será dizer-se que as nossas opiniões sobre os presidentes americanos divergem: Obama nunca me fez acreditar na mudança. Era um símbolo imbatível em termos de sonho americano e de land of opportunity, teve a ajuda do crash de Setembro de 2008, foi um bom retórico populista com algum sentido de Realpolitik mas não cumpriu o que prometeu e contribuiu para “racializar” a política americana. Além disso, entre decisões e indecisões, entre Primaveras Árabes e retiradas anunciadas, completou o trabalho de George W. Bush, que aguentou o 11 de Setembro mas que deixou que os neo-conservadores lhe fizessem a cabeça para com eles escaqueirar o Médio Oriente.

Neste meio século americano, de Reagan a Trump, o que é para mim mais evidente é a dialéctica de duas Américas – uma mais patriota e conservadora, outra mais internacionalista e liberal; a Clara, a outro propósito, fala de uma América de “açúcar e xarope”, mais hollywoodesca, e de uma dirty America, mais dura e realista. Talvez não sejam bem as mesmas mas, seja como for, acabam por funcionar como dois “países”, que ora se aproximam e recentram, ora se radicalizam em extremos que, até há pouco, não eram assim tão extremos.

Trump ganhou por ser Trump e porque Hillary e as elites convergentes da direita dos interesses e da esquerda caviar – ou o que quer que agora substitua o caviar na ementa dos porta-vozes dos “danados da terra” – não podiam nem queriam desagradar a Wall Street.

Trump veio tornar estes extremos especialmente visíveis. Depois de Obama, Trump veio capitalizar um outro lado do sonho americano e confiscar uma outra fatia da land of opportunity: Obama mostrara que qualquer um, até um negro, podia ser Presidente, Trump sugeria que, se a América voltasse a ser grande, qualquer um podia ser rico e, mais importante, opor-se aos ricos e aos super-ricos, com as suas hordas de trabalhadores imigrados e de sedes deslocadas. Diz a Clara que ser rico na América não gera revolta social, mas talvez isso tenha mudado. E paradoxalmente foi Trump, o rico ao lado dos pobres, o poderoso pronto a combater os poderosos, básico e directo como só os mendigos ou os milionários podem ser, a capitalizar essa mudança.

Pela ordem natural das discriminações reparadas, esperava-se uma mulher na presidência, mas isso seria evolução na continuidade e não a revolução que “a América” (não) esperava: “Ninguém esperava que a revolução pudesse ser corporizada por um velho multimilionário, uma celebridade racista e vigarista que não paga impostos. Ou uma celebridade que não paga impostos e que descobriu que os racistas e vigaristas também votam”, escreve a Clara, secundando a teoria dos “deploráveis” de Hillary Clinton.

Mas serão mesmo deploráveis, racistas e vigaristas os eleitores de Trump?

Trump é o rico ao lado dos pobres, o poderoso pronto a combater os poderosos

Andrew Harrer / POOL/EPA

A Clara, que tão bem nos descreve Detroit, a cidade fantasma, e essa América caída e ferida que não é de agora, saberá que não é exactamente assim. O amaldiçoado Trump, o alvo de todas as graças e autor de todas as calinadas, a vítima dos progressistas de todo o mundo unidos que, qual bando de abutres, andam à sua volta a ver se o homem cai para lhe caírem em cima, também ganhou porque a máquina do Partido Democrático manipulou a convenção e afastou Bernie Sanders, o único candidato que lhe podia fazer frente no Rust Belt, onde acabou por se decidir a eleição. Digo podia fazer frente, não digo que ganhasse… Trump ganhou por ser Trump e porque Hillary e as elites convergentes da direita dos interesses e da esquerda caviar – ou o que quer que agora substitua o caviar na ementa dos porta-vozes dos “danados da terra” – não podiam nem queriam desagradar a Wall Street; e muito menos misturar-se com os brancos sulistas, com os rednecks da Apalachia e do Midwest ou com os desempregados de Detroit.

E em vez de olhar para o descontentamento dos brancos – e para o dos negros, e para o dos latinos –, que não trocam de carro há mais de dez anos porque os insanos regulamentos de segurança subiram os preços dos automóveis novos, preferem preocupar-se com os dilemas existenciais dos transgender, com as fórmulas rebuscadas do tratamento não discriminatório, com o policiamento das “micro-agressões” verbais às minorias nas Universidades e com as estátuas dos generais confederados.

Ao contrário da Clara, perante o globalismo cínico de Hillary Clinton, achei Trump um mal menor. Teria preferido outros candidatos republicanos – Marco Rubio, o próprio Jeb Bush – mas esses ficaram para trás, ultrapassados ou atropelados por Trump. E se não tivessem ficado, não sei se teriam sido capazes de mobilizar o descontentamento do Rust Belt. Depois, apesar de tudo o que se diz e não se diz, a equipa de Trump, nos lugares-chave – Secretários de Estado, da Defesa, do Comércio, do Tesouro, da Educação – está dentro dos padrões do republicanismo conservador. A dança das cadeiras no staff da Casa Branca é capaz de estar a acabar, agora que Steve Bannon, que conduziu Trump à vitória, regressou ao Breitbart News.

Clinton era de facto culto e tinha leitura, embora o disfarçasse para se aproximar mais do povo, coisa para que tinha um talento natural.

Mas o que mais nos fica deste livro é a análise do espírito do tempo, o diagnóstico de um presente que a Clara define numa das crónicas como The Age of Stupid; e esta análise divagante, com que podemos nem sempre concordar mas que é quase sempre perspicaz, é feita através de uma América diversa e dispersa, nas cidades – Nova Iorque, S. Francisco, Detroit, Houston – nas classes, nos sonhos, nos filmes, nos livros, nos escritores, nos políticos.

Volto à versão da Clara das duas Américas, a América de “açúcar e xarope” e a dirty America, para a aplicar abusivamente à sua visão dos presidentes americanos. Reagan, “o actor de cinema, dado ao belicismo de querelas reais e irreais no écran ou na vida”, Reagan que não terá “perdido as noites a ler Maquiavel”, é implicitamente arrumado nessa América cor-de-rosa, algures entre o musical, o western, o filme de guerra e a aventura galáctica, bem como os Bush, especialmente o Bush filho, supostamente ignorante e avesso a considerar a existência de uma América mais dirty. Trump, o Presidente que vive e governa por takes e tweets, surge naturalmente como o rei da nova ficção da realidade ou da nova realidade de cartão virtual, o Presidente que dispara antes de pensar ou em vez de pensar, o expoente máximo do glamour dourado, do dinheiro ostensivo e da fama instantânea. Já os presidentes democráticos – Clinton, Obama e Hillary, a desejada, –, ainda que se diga que também dominam a política-imagem, são ilustrados, sofisticados e perfeitamente cientes dessas outras Américas menos cor-de-rosa, que defendem e a que supostamente dão voz.

Clinton era de facto culto e tinha leitura, embora o disfarçasse para se aproximar mais do povo, coisa para que tinha um talento natural. A Nélida Piñon contou-me que o Vargas Llosa e o Garcia Marquez, que tinham ouvido dizer que o Presidente tinha boa cultura literária, lhe chegaram a fazer um teste. Clinton convidara-os para jantar na Casa Branca e, na conversa, tinham-no interrogado sobre William Faulkner, escritor que conheciam bem. O Presidente dominava perfeitamente o homem e a obra, conhecia as personagens e fazia citações de Light in August e de Sanctuary. Perdeu-se depois nos enredos reais de que foi protagonista, contracenando com uma estagiária no cenário proibido da Sala Oval. Salvou-se quando Hillary, em princípio a principal lesada, lhe perdoou. Senão teria acabado ali. E ela também. Assim sobreviveram na “América impúdica e moralista”, para usar o título de uma das crónicas das Cenas Americanas.

Boalvou-se quando Hillary, em princípio a principal lesada, lhe perdoou

OLIVIER DOULIERY / POOL/EPA

Bill era inteligente, simpático e empático mesmo para quem não gostasse politicamente dele; vi pessoalmente o seu charme em acção, um charme que fazia com que cada interlocutor, por segundos, achasse que era, para o “grande homem”, a pessoa mais importante do mundo. Foi em Washington, num jantar de celebração dos Acordos de Paz de Good Friday, a que fui a convite de um amigo, Pete Kelly, ex-Tesoureiro do Partido Democrático. Mas Clinton, na pós-presidência, deixou-se deslumbrar pelo dinheiro e pelos que o tinham, os ricos e os super-ricos. Já tinha dado um perdão a Marc Rich antes de deixar a Casa Branca e depois excedeu-se mais ainda.

Assim, e porque é sempre difícil para quem seja de esquerda deixar de insistir na “superioridade cultural e moral da esquerda”, os democratas, mesmo quando prevaricadores, acabam por surgir no livro como bons conhecedores das outras Américas e os conservadores como broncos homens de acção, empolando uma América de “açúcar e xarope” em busca de um final de Hollywood.

Mas ainda será assim, se é que alguma vez o foi? Depois de Trump, depois de Obama, depois de Hillary, parece cada vez mais evidente que não. Onde está agora a hollywoodesca América de “açúcar e xarope” e o que é agora um final feliz de Hollywood? O “açúcar e o xarope” ideológico da América – a retórica de adormecer consciências como quem as desperta e a ficção ao serviço da ideologia dominante, dos interesses dominantes e de uma ideia de América que se quer dominante – são agora claramente “democratas” e perfilam-se atrás de Obama e de Hillary. Trump é demasiado berrante, bárbaro, grotesco, indigesto e cor-de-laranja para ser o novo cor-de-rosa. Ou posto de outra maneira, se Trump fosse Gatsby, os Clinton e afins seriam seguramente os Buchanan.

Curiosamente, Clint Eastwood, que a Clara louvava em 2003 por nos ter dado o “coração das trevas” da dirty America, distanciando-se das xaropadas de Hollywood, seria das pouquíssimas celebridades do show business a dar a cara por Trump.

A América conservadora que votou em Trump fê-lo geralmente com relutância; enquanto a que convictamente elegeu Trump e que ele conseguiu captar está mais próxima da que Clint Eastwood descreve nas suas melhores fitas e a que a Clara chama dirty America: “dura, angular, hiper-realista, coberta de uma escuridão feita da densidade da violência e da tragédia”, uma América “de gente desenraizada e lutadora, com uma rua principal e casas de madeira estalada, com avenidas e plátanos submissos, com adolescentes brutais e armas à solta”. O açúcar e o xarope global da correcção política e as “elites liberais” que ignoram o reality show das suas vidas, insultam esta e outra gente, não lhes servem, nada lhes dizem. Curiosamente, Clint Eastwood, que a Clara louvava em 2003 por nos ter dado o “coração das trevas” da dirty America, distanciando-se das xaropadas de Hollywood, seria das pouquíssimas celebridades do show business a dar a cara por Trump.

O que é que estas várias Américas e estas Cenas da Vida Americana nos dizem sobre as “maravilhas fatais da nossa idade” e os nossos alinhamentos elitistas ou populistas? E de que elites e de que povo falamos? Estas crónicas, bem escritas e bem pensadas, obrigam-nos a pensar. Para concordar ou discordar, é um livro importante.

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