O primeiro alerta chegou à Polícia Judiciária (PJ) pela plataforma Discord — uma app de conversação que, com alguma regularidade, dá conta de suspeitas de outros crimes cometidos a partir de Portugal. Havia um utilizador em território nacional que participava num grupo — The Kiss — que incitava ao ódio, partilhava imagens violentas e pornografia infantil. A partir daí, a Unidade Nacional Contraterrorismo da PJ pôs em marcha uma investigação que viria a concluir haver fortes suspeitas de que ataques como o que vitimou uma jovem de 17 anos em outubro do ano passado, numa escola de São Paulo, no Brasil, estariam a ser comandados à distância a partir do norte de Portugal. Mais concretamente, de Santa Maria da Feira. Apenas com um smartphone e um computador.
A operação de buscas e detenção do suspeito foi preparada ao pormenor, pensada para criar o menor impacto possível (tendo em conta a avaliação de risco) na casa onde o jovem vivia com a mãe, o padrasto e o meio irmão, mais novo, sabe o Observador. Matias (nome fictício), 17 anos, não era apenas um participante no grupo, ele — juntamente com um outro jovem brasileiro — seria líder da comunidade que está a ser investigada dos dois lados do Atlântico.
Além da grande quantidade de ficheiros e dados apreendidos, a polícia acredita desde o início que, apesar de ter consciência de tudo o que fizera — não tem qualquer historial clínico, nem nunca lhe foi diagnosticada qualquer patologia –, Matias não guarda remorsos. O que mais o terá surpreendido terá sido o facto de ter de responder pelos alegados crimes, apesar de não ter atingido a maioridade.
Os investigadores têm ainda pela frente “teras e teras” (terabytes) de informações para analisar, mas não descartam a hipótese de haver envolvimento do suspeito noutros ataques. À partida, apenas em solo brasileiro. Segundo a investigação, para já, é suspeito do crime de homicídio consumado (por instigação) e vários de forma tentada, em que é considerado o autor moral.
Discord: o primeiro alerta que fez soar os alarmes na polícia portuguesa
A plataforma Discord, que era usada pela comunidade para falar, preparar ataques e partilhar conteúdos de extrema violência, incluindo os que resultavam dos ataques, confirmou ter detetado os conteúdos e avisado as autoridades. Este sistema de alertas já terá permitido evitar outros ataques, noutros momentos, incluindo em Portugal, sabe o Observador.
“O Discord proativamente identificou e colaborou com as autoridades policiais no Brasil e em Portugal nas investigações que levaram a esta detenção”, começou por esclarecer um porta-voz daquela plataforma em resposta ao Observador, garantindo que “a segurança é uma prioridade para o Discord”: “Estamos empenhados em proporcionar um ambiente positivo e seguro para os nossos utilizadores”.
A mesma fonte referiu ainda existirem “políticas rigorosas contra atividades ilegais e partilha de conteúdo prejudicial na plataforma, incluindo políticas de tolerância zero contra extremismo violento e abuso infantil”.
[Já saiu o terceiro episódio de “Matar o Papa”, o novo podcast Plus do Observador que recua a 1982 para contar a história da tentativa de assassinato de João Paulo II em Fátima por um padre conservador espanhol. Ouça aqui o primeiro episódio e aqui o segundo episódio.]
E é nesse contexto de deteção de conteúdos impróprios, através de “ferramentas de segurança ou por denúncia dos utilizadores”, que é decidido tomar medidas, “incluindo o banimento de utilizadores, o encerramento de servidores e, quando apropriado, colaboramos com as autoridades locais competentes”, conclui o mesmo porta-voz do Discord.
Plataforma percebeu que não havia VPN: o utilizador estaria mesmo em Portugal
Sempre que há uma suspeita sobre um grupo ou um utilizador, a plataforma comunica com as autoridades do país onde essa pessoa está. Na prática, a “app difunde de modo próprio quando, dentro dos algoritmos, surgem hits que lhe saltam à vista”. “Quando percebe que um user tem um ISP ou IP limpo, ou seja, que não tem VPN, fornece essas informações às autoridades do país”, explica ao Observador uma fonte conhecedora do processo.
E foi isso que aconteceu neste caso, com uma denúncia através do canal 24/7 da PJ. Depois disso, a polícia acabaria por receber o alerta através de vários outros canais: via Interpol e Polícia Federal, que também tinha sido alertada pelo Discord.
O trabalho seguinte foi perceber quem seria esse utilizador, dar-lhe um rosto, uma existência física, em tempo recorde. E, sobretudo, correlacioná-lo com outros users usados pela mesmo suspeito, tanto naquela plataforma, como noutras redes sociais.
No caso de Matias, a Judiciária acabaria por identificar diversos users em diversas redes sociais — e apesar de, nas conversas dentro do grupo, usar já um português próximo do português do Brasil, alguns nicknames que usava eram “bem portugueses”, explica uma fonte próxima do caso.
Um jovem reservado, que só conseguia manipular e liderar atrás do ecrã
Aos 17 anos, Matias frequentava ainda o 9.º ano de um curso profissional. Apesar da apetência para a informática, não era um aluno brilhante, já tendo inclusivamente chumbado. Na escola, sempre mostrou um perfil reservado, não tendo muitos amigos, ainda que nada disso tivesse algum dia feito disparar os alarmes.
Depois de várias diligências, os investigadores estarão mesmo convencidos de que nem professores, nem colegas tivessem algum dia desconfiado de algo. Na escola, contrariamente ao que acontecia nos grupos de Discord e nas redes sociais, Matias não tinha qualquer predisposição para liderar, nem sequer era conhecido por tentar manipular colegas.
No início do mês, Paulo Azevedo, advogado do jovem a quem o Tribunal de Instrução Criminal de Lisboa aplicou a medida de coação de prisão preventiva, fez uma descrição muito diferente. “Um jovem inserido socialmente, um bom estudante. Convivia com os amigos, sempre foi um excelente aluno”, referiu o advogado, à saída do tribunal, no Campus de Justiça, em Lisboa.
Em casa o comportamento também nunca levantou dúvidas, nem à mãe nem ao padrasto — ainda que agora, depois de conhecidas as suspeitas, consigam encontrar um ou outro sinal de que algo poderia não estar bem.
“O gosto muito específico de filmes vai ao encontro do gosto pelo lado mórbido que foi encontrado no grupo [The Kiss]”, explica uma fonte conhecedora do processo, adiantando que esses sinais desligados de tudo o resto, só por si, não significavam nada, nem poderiam ser suficientes para alertar os pais — com quem Matias tinha uma relação boa.
Aliás, o gosto pela violência não terá, aparentemente, relação com o ambiente em que sempre esteve inserido.
Líderes do grupo tinham ascendente sobre os outros jovens e, além de missões, davam castigos
A distância não existia — a única coisa que afastava o líder dos outros elementos era o fuso horário e todos sabiam isso. Matias estava em Portugal, mas conseguia tudo o que queria dos membros da comunidade que criou e que estavam espalhados por vários estados brasileiros. Além das missões, como o ataque de outubro, a investigação encontrou nas conversas momentos em que se irritava com os membros do grupo, dando-lhes ordens — por exemplo, para que imitassem animais –, que tinham de ser cumpridas. Se não fossem, haveria consequências.
O Observador sabe que, para a investigação, por enquanto, chega a ser “enigmático como é que eles acabavam tão atraídos, fixados, quase que a pedir uma subjugação”. Ainda por cima, porque sabiam que Matias estava a um oceano de distância: essa questão era comummente abordada nas conversas a propósito do fuso horário.
As mensagens no Discord duraram vários meses, durante os quais, além de imagens de violência, foram partilhados conteúdos de pornografia infantil. A investigação portuguesa terá tido início cerca de três meses após o ataque à escola de São Paulo.
Sapopemba: o principal ataque, que foi criticado pelos membros do grupo (por ter feito poucas vítimas)
Em outubro do ano passado, um jovem de 16 anos entrou na escola de Sapopemba, em São Paulo, e fez vários disparos utilizando a arma que o pai guardava em casa. Acabou por matar uma das alunas, de 17 anos.
As balas que disparou provocaram ainda dois feridos e o suspeito foi detido de imediato. Na altura, disse às autoridades brasileiras que preparou tudo sozinho, mas a investigação da Polícia Civil de São Paulo e do Laboratório de Crimes Cibernéticos do Ministério da Justiça do Brasil não fechou a porta a outras hipóteses.
A polícia brasileira chegou à conclusão de que foi através do Discord que o plano teria sido delineado, que este jovem não estaria sozinho e que tinha sido influenciado a cometer o crime de homicídio. Algumas mensagens foram divulgadas pelo jornal Metrópoles, que noticiou, pouco tempo depois da detenção, que tinham sido partilhadas fotografias da escola e que tinham sido pedidos conselhos para fazer um massacre naquele sítio.
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▲ Perímetro de segurança no dia do ataque è escola de Sapopemba, em São Paulo
AFP via Getty Images
Matias foi um dos que deram esses conselhos e ordenou a “missão”, expressão usada pelo autor do crime para se referir ao ataque. Na plataforma chegou a discutir-se qual a melhor posição para colocar o telemóvel, para poder filmar tudo. E, depois do crime, vários membros do grupo — que se queixavam sempre de que passavam dias sem ver um evento ao vivo de violência — lamentaram o número de vítimas, considerando que uma morte não tinha sido suficiente.
Segundo a Judiciária, estavam já a preparar mais um assassinato. “Um dos crimes que estavam a ser planeados no Brasil era o cometimento de um homicídio com detalhes de elevado sofrimento de um mendigo”, revelou no início do mês o diretor nacional da PJ, Luís Neves. Ao que o Observador apurou, esse próximo crime seria executado igualmente no estado de São Paulo. Além de causar sofrimento e depois a morte, o objetivo do atacante era também que o crime fosse filmado, para que as imagens fossem depois partilhadas dentro da comunidade. Após isso, “cada indivíduo pagaria uma determinada quantia” para ter acesso às imagens, acrescentou Luís Neves.
Mais uma detenção em São Paulo nos últimos dias
Já este mês, depois da detenção de Matias, foi detido no Brasil um outro jovem, de 18 anos, na zona leste de São Paulo, suspeito de pedofilia e apologia ao nazismo. Segundo noticiou o jornal Metrópoles, além de ter encontrado conteúdos de pedofilia, a investigação acredita que o suspeito teria ligação a conteúdos que incitavam à auto-mutilação, ameaça e apologia ao nazismo.
Neste momento, sabe o Observador, a Polícia Federal está a tentar montar um puzzle de tudo o que se passou em território brasileiro e que foi sendo investigado pelas Polícias Civis de vários estados daquele país — e de que resultaram várias detenções. E será essa investigação que irá cruzar dados com a da Polícia Judiciária.
Aliás, horas após a detenção feita em Portugal, a Polícia Federal fez saber que a investigação portuguesa vai prosseguir, com o objetivo de identificar outros envolvidos, confirmando estar a haver um contacto permanente entre as duas polícias: “Em momento oportuno, a polícia portuguesa compartilhará os resultados da investigação com a Polícia Federal, a fim de dar continuidade às apurações no Brasil.”
As autoridades brasileiras referiram ainda que “a investigação seguirá adiante, com uma das principais linhas de investigação sendo a identificação, em âmbito internacional, de outros envolvidos nos crimes”. Na mesma nota foi ainda sublinhado que o Brasil colaborou na investigação portuguesa, cedendo informações, através da unidade de Repressão a Crimes de Ódio da Diretoria de Combate a Crimes Cibernéticos da Polícia Federal — informações que Portugal tinha também já recebido via Discord.