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Rui Correia Marques (à esquerda) e José Ranito (à direita) são dois dos quatro procuradores delegados europeus que trabalharão em Portugal. A Procuradoria Europeia terá uma delegação em Lisboa e outra no Porto. JOÃO PORFÍRIO / OBSERVADOR
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Rui Correia Marques (à esquerda) e José Ranito (à direita) são dois dos quatro procuradores delegados europeus que trabalharão em Portugal. A Procuradoria Europeia terá uma delegação em Lisboa e outra no Porto. JOÃO PORFÍRIO / OBSERVADOR

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Rui Correia Marques (à esquerda) e José Ranito (à direita) são dois dos quatro procuradores delegados europeus que trabalharão em Portugal. A Procuradoria Europeia terá uma delegação em Lisboa e outra no Porto. JOÃO PORFÍRIO / OBSERVADOR

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Como vai funcionar a Procuradoria Europeia? Uma reportagem com seis respostas sobre o novo órgão de justiça da UE

A Procuradoria Europeia já está a liderar seis investigações a fraudes com fundos europeus em Portugal. Quatro procuradores delegados em Lisboa e Porto deverão ter uma média de 165 processos anuais.

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“Claro que agiremos. A Procuradoria Europeia é um órgão independente e teremos de provar que a lei é igual para todos“. Esta foi a resposta de Laura Kovesi, procuradora-geral europeia, a uma pergunta do jornal inglês The Guardian sobre se hesitaria acusar um chefe de governo da UE suspeito de uso indevido de fundos europeus.

É uma resposta que não espanta quem conhece a sua história. Trata-se da procuradora-geral romena mais jovem de sempre que ficou conhecida por um combate sem tréguas à corrupção no seu país que lhe custou o cargo devido a uma aliança entre o poder político e os oligarcas locais e que motivou a oposição declarada do governo romeno à sua nomeação para líder da Procuradoria Europeia. Mas uma resposta que também diz muito sobre as expetativas que existem sobre este novo órgão da União Europeia.

José Guerra. “Procuradoria Europeia poderá investigar corrupção de políticos portugueses ou de qualquer outra parte do mundo”

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Portugal, que tem um histórico de mau uso dos fundos europeus desde que entrou para a então Comunidade Económica Europeia, vai ter quatro procuradores europeus delegados a trabalhar em Lisboa e no Porto. O Observador foi conhecer as instalações da capital e conversou com os procuradores delegados José Ranito e Rui Correia Marques.

Quem são os procuradores europeus delegados que vão investigar as fraudes com fundos europeus?

Entrar nas instalações da delegação da Procuradoria Europeia no Campus da Justiça é uma perfeita metáfora daquilo que é neste momento o novo órgão judiciário da União Europeia que entrou em funções a 1 de junho: um projeto em construção. O gabinete do procurador europeu José Guerra, que irá supervisionar os quatro procuradores portugueses, ainda não está decorado e é apenas uma das cinco salas que, para já, estão afetas à Procuradoria Europeia nas instalações do Departamento de Investigação e Ação Penal (DIAP) de Lisboa.

Mas estarem a participar na construção de mais uma peça importante do projeto da União Europeia supera todos os obstáculos. Até o facto de, à data em que o Observador visitou as instalações (25 de junho), ainda não terem funcionários judiciais nem os gabinetes de José Guerra, José Ranito e Rui Correia Marques serem sequer contíguos.

Há vários reencontros entre estes três magistrados: não só Ranito teve o procurador José Guerra como primeiro coordenador na 9.ª Secção do DIAP de Lisboa (a secção que trata apenas os crimes económico-financeiros), como os dois procuradores delegados foram colegas no Centro de Estudos Judiciários.

O procurador europeu delegado José Ranito acusou Ricardo Salgado de 65 crimes no caso Universo Espírito Santo

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O elemento mais experiente dos procuradores europeus delegados é José Ranito. Com 51 anos, começou por tomar posse no Tribunal Judicial de Fronteira em abril de 2001. Numa jurisdição com competência genérica, Ranito ficou conhecido pela sua capacidade de trabalho. Ainda se lembra de ser avisado por um funcionário: “olhe que a trabalhar assim vão tirá-lo daqui em três tempos”. E aconteceu: foi colocado nas Juízos Cìveis Liquidatários (Lisboa) quatro meses depois.

Mas era a área penal que José Ranito perseguia e em 2003 entrou para a 9.ª Secção do DIAP de Lisboa. Aqui liderou investigações importantes, como vários casos relacionados com a Câmara Municipal de Lisboa no tempo da dupla Santana Lopes/Carmona Rodrigues e processos relacionados com crimes de mercado, tendo depois sido promovido ao Departamento Central de Investigação e Ação Penal (DCIAP).

Foi onde teve o caso mais o marcou: a investigação ao Universo Espírito Santo que se iniciou pouco meses depois de ter chegado ao DCIAP . Coordenando uma equipa com 31 elementos, entre os quais magistrados do MP, inspetores da Polícia Judiciária, agentes da PSP, técnicos do Banco de Portugal e agentes da Autoridade Tributária, Ranito acusou Ricardo Salgado em julho de 2020 da prática de 65 crimes, entre os quais associação criminosa que terá tido como objetivo delapidar o património do BES para financiar as holdings falidas do Grupo Espírito Santo (GES).

A acusação. Anatomia de uma associação criminosa que destruiu o Grupo Espírito Santo

“A minha vida profissional nos últimos anos teve dois desafios: a abordagem transnacional dos processos e uma elevadíssima intensidade em termos cooperação judiciária europeia. Aprendi que temos imenso a aprender uns com os outros. Compararmos com outros países, perceber se nivelamos por cima, o que podemos melhorar, é uma reflexão que podemos e devemos fazer”, explica José Ranito, numa alusão à cooperação com a Suíça, Luxemburgo, Espanha e outras jurisdições internacionais a que o caso Universo Espírito Santo o obrigou.

Rui Correia Marques é o segundo elemento da delegação de Lisboa. “Este é um projeto novo que me dá totais garantias e representa cereja no topo do bolo. Quando um magistrado tem uma experiência nacional muito intensa e tem a oportunidade de exportar isso para um ambiente europeu e mutifacetado, as possibilidade são imensas. É um desafio e uma honra”, afirma, entusiasmado.

O procurador europeu delegado Rui Correia Marques

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Com 46 anos, Correia Marques começou a sua carreira em 2001 na comarca de Amares. O primeiro passo para uma especialização na área da criminalidade económico-financeira foi dado na comarca de Sintra, tendo passado posteriormente pela 5.ª secção do DIAP de Lisboa — que investiga crimes fiscais e burlas. Após uma breve comissão de serviço em Timor-Leste, Rui Correia Marques entrou no DCIAP em 2014, tendo sido nomeado coordenador da área fiscal. “A minha candidatura à Procuradoria Europeia representa uma saída da minha zona de conforto, mas é um seguimento lógico na minha carreira”, diz.

Que crimes e casos poderá a Procuradoria Europeia investigar?

A Procuradoria Europeia já começou a mostrar trabalho em vários países europeus. Em meados de julho, tinha analisado mais de mil relatórios relacionados com fraudes que afetam os interesses financeiros da União Europeia e promovido o congelamento de cerca de sete milhões de euros em bens.

Mas, afinal, quais são as competências da Procuradoria Europeia? Muito longe do sonho federalista da Comissão Europeia chegou a apresentar, o novo órgão judiciário da União Europeia (os procuradores delegados são formalmente magistrados do Ministério Público, não são funcionários europeus) é mais uma criatividade pragmática do projeto europeu. “Como medida de cooperação reforçada, os Estados-Membros transferem a soberania da ação penal para a Procuradoria Europeia em circunstâncias precisas e definidas pela lei no que diz respeito a crimes contra os interesses financeiros da União Europeia. A soberania dos tribunais continua na esfera dos Estados-Membros nacionais”, explica José Ranito.

Tal como a chamada diretiva de Proteção dos Interesses Financeiros estabeleceu, a competência genérica passa por defender os contribuintes dos Estados-Membros que anualmente financiam o orçamento da União Europeia. A sua principal missão é reduzir de forma significativa as fraudes com fundos europeus que se estimam em cerca de 500 milhões de euros anuais e as fraudes com o IVA que se calculam acima dos 60 mil milhões de euros anuais.

Em termos concretos, os seus poderes são os seguintes:

  • fraudes relacionadas com despesas e receitas da União Europeia, mais concretamente com fundos europeus atribuídos aos diferentes Estados-Membros, acima dos 100 mil euros;
  • fraudes relacionadas com o IVA de valor superior a 10 milhões de euros. Com uma condição simples: as fraudes em causa têm de abranger mais de dois Estados-Membros;
  • corrupção ativa e passiva e branqueamento de capitais relacionado com o desvio de fundos que tenha saído do orçamento da União Europeia;
  • associações criminosas que visem defraudar os interesses financeiros da União Europeia.

A primeira prioridade, tal como o procurador europeu José Guerra, confirmou na entrevista que concedeu ao Observador, a primeira prioridade será vigiar com grande atenção a utilização dos fundos europeus da bazuca europeia, nomeadamente do programa Next Generation que vai distribuir mais de 672,5 mil milhões de euros em empréstimos e garantias bancárias para apoiar reformas e investimentos que permitam recuperar a economia europeia da crise pandémica do Covid-19.

Infografia do site da Procuradoria Europeia sobre as suas competências

Mas enquanto não chegam os inevitáveis casos relacionados com a bazuca europeia, a Procuradoria Europeia já começou a apresentar serviço. Logo a 16 de julho, seis semanas após o início oficial, a procuradora-geral Laura Kovesi estava a submeter ao Parlamento da Croácia um pedido de levantamento de imunidade parlamentar de um deputado que é suspeito, enquanto presidente da Câmara de Nova Gradiška, de corrupção por alegadamente ter manipulado um concurso público avaliado em cerca de 562 mil euros e que é co-financiado pelo Fundo de Coesão.

Outra das vantagens da Procuradoria Europeia será igualmente uma cooperação judiciária entre os diferentes Estados-Membros aderentes bastante mais rápida do que era até ao momento. E também aqui já está a ser mostrado serviço: diversas empresas foram alvo de buscas judiciais na Holanda, Eslováquia, Bulgária e Hungria na manhã de 4 de agosto por suspeitas de uma fraude em carrossel de IVA estimada em cerca de 14 milhões de euros.

Isto é, os procuradores delegados vão assistir-se mutuamente para realizarem diligências em tempo real em diversos estados-membros. Por exemplo, se os procuradores delegados José Ranito ou Rui Correia Marques estiverem a liderar uma investigação de um caso de fraude fiscal de IVA em carrosel na qual intervêm empresas portuguesas e espanholas, o magistrado poderá solicitar ajuda a um dos cinco colegas espanhóis para que este promova buscas judiciais às empresas espanholas ao mesmo tempo que idênticas diligências são feitas em Portugal.

Além dos 22 procuradores europeus que trabalham diretamente com Laura Kovesi na sede no Luxemburgo, há mais de 162 procuradores delegados, apoiados por um staff superior a 100 técnicos, que irão custar 55 milhões de euros por ano ao Orçamento da União Europeia. Mas os montantes que a Procuradoria Europeia vai poupar ao Orçamento da União Europeia — pondo fim a fraudes e burlas — será incomensuravelmente maior.

Quantos processos já foram avocados pelos procuradores europeus delegados em Portugal?

No caso de Portugal, ainda está a decorrer a fase de instalação dos quatro procuradores europeus delegados em Lisboa e no Porto, sendo que a prioridade atual passa por fazer o levantamento dos processos já abertos nos serviços do Ministério Público (MP) que poderão ser da competência da Procuradoria Europeia.

Para já, foram transferidos seis processos que serão repartidos pelas duas duplas a operar em Lisboa (José Ranito e Rui Correia Marques) e Porto ( Sandra Alcaide e Sofia Pires), estando em análise mais dois processos. Ou seja, entre a 10% a 15% dos processos que foram comunicados através de pontos de contacto estabelecidos nos diferentes serviços do MP e os procuradores europeus delegados.

JOÃO PORFÍRIO/OBSERVADOR

Tudo porque, apesar de as regras permitirem que sejam transmitidos os autos com factos relevantes posteriores a 20 de novembro de 2017 (a data em que entrou em vigor o regulamento da Procuradoria Europeia), o organismo liderado por Laura Kovesi definiu que os procuradores delegados só devem avocar (chamar a si) processos iniciados há mais de dois anos. Isto é, existe um princípio geral (e não absoluto) de que os procuradores delegados apenas avocarão processos com factos posteriores a 1 de junho de 2019.

Em caso de conflito de competência sobre os processos que devem ser avocados ou transmitidos à Procuradoria Europeia, a procuradora-geral da República será chamada a pronunciar-se e a decidir sobre quem fica com os autos do processo.

E como pode haver um conflito de competências? Quando em determinado caso, por exemplo, existam suspeitas de fraude do IVA em co-existência com outras infrações fiscais de IRC ou de IRS, por exemplo — sobre as quais a Procuradoria Europeia não tem competência. “Não temos competência para investigar crimes relacionados com impostos estritamente nacionais. Os crimes de contrabando também estão sob a nossa alçada mas só em relação ao contrabando de e para fora da União Europeia. Por exemplo, não há contrabando entre Portugal e Espanha — porque é dentro do espaço comunitário”, explica o procurador europeu José Guerra.

Apesar do número reduzido de processos avocados, a expetativa é que, após as férias de verão, as comunicações subam de forma muito significativa. Ou seja, desde o dia 1 de junho de 2021 que o Ministério Público está obrigado a comunicar aos procuradores europeus delegados todos os casos que entrem na esfera de competência da Procuradoria Europeia.

O número de quatro procuradores europeus delegados foi estabelecido pelo Governo de António Costa, tendo em conta que existe uma expetativa de que os magistrados venham a ter uma média de 165 processos anuais. O que dará uma média de cerca de 41 processos por pessoa.

Procuradoria Europeia começa a funcionar a 1 de junho apesar de polémicas, diz Bruxelas

José Ranito, por seu lado, avisa que poderá colocar-se um problema a nível dos meios ao dispor da Procuradoria Europeia — um problema clássico da Justiça portuguesa. “Numa das reuniões de apresentação da Procuradoria Europeia, vários estados-membros assinalaram o efeito surpresa que poderá verificar-se porque consideravam que existam um desfasamento considerável entre a herança que iriam receber e os processos novos que poderiam surgir”, afirma Ranito.

Por isso mesmo, também existirá um critério de oportunidade nos processos que os procuradores europeus delegados irão avocar. “A competência da Procuradoria Europeia é de reforço subsidiário de colaboração entre os Estados. “o que acontece é que para os casos pendentes à data da sua instalação existe um critério de oportunidade que permite à Procuradoria Europeia abdicar do exercício da sua competência”, explica Ranito.

Certo é que no caso português, a vigilância será apertada sobre o uso dado aos mais de 50 mil milhões de euros que Portugal irá receber entre 2021 e 2030 dos programas Next Generation e do Quadro Plurianual 2021-2027, em que Portugal vai receber mais 33,6 mil milhões de euros. A má memória sobre a aplicação dos mais de 100 mil milhões de euros o nosso país recebeu da União Europeia desde 1987 faz com que a atenção seja redobradissíma ao nível judiciário mas também em termos de sociedade civil. “Com o dinheiro que aí vem, com a nossa historia na gestão dos fundos europeus, a nossa reação enquanto Procuradoria Europeia será fundamental. É importantíssimo que já estejamos a criar observatórios na sociedade civil — e a a nossa reação também terá de ter em conta essa visão integrada”, considera Ranito.

Como se organiza a Procuradoria Europeia?

A organização da Procuradoria Europeia é complexa e diferente da organização do Ministério Público em Portugal. De forma simples, há dois planos de organização: o central e o nacional.

A sede localiza-se no Luxemburgo e é aí que a procuradora-geral Laura Kovesi trabalha em conjunto com os 22 procuradores europeus que foram indicados por cada um dos Estados-Membros que aderiram ao novo órgão da União Europeia. Kovesi e os seus 22 magistrados têm assento no Colégio — um órgão de gestão da Procuradoria Europeia que teve como primeira grande tarefa criar o regulamento que veio estipular as regras de funcionamento da Procuradoria Europeia e da sua interação com cada um dos ministérios públicos dos 22 estados-membros.

O segundo órgão fundamental da sede da Procuradoria Europeia chama-se Câmara Permanente. É um órgão hierárquico que define a gestão processual de cada um dos casos a cargo do novo órgão da União Europeia e que não tem qualquer paralelo com a organização dos diferentes serviços do Ministério Público na Europa. Sendo igualmente certo que não existe apenas uma Câmara Permanente mas sim 15.

A Câmara Permanente da Procuradoria Europeia é um órgão hierárquico que define a gestão processual de cada um dos casos a cargo do novo órgão da União Europeia. Não tem qualquer paralelo com a organização dos diferentes serviços do Ministério Público na Europa, sendo igualmente certo que não existe apenas uma Câmara Permanente mas sim 15.

São uma garantia da independência da Procuradoria Europeia. As câmaras aparecem como uma forma de impedir que os governos dos estados-membros possam interferir no normal desenrolar dos processos judiciais. E para fazer isso foi necessário ter um órgão que não tivesse qualquer ligação ao estado-membro e que pudesse supervisionar e monitorizar as investigações”, explica José Guerra.

Eis as características de cada uma das 15 Câmaras Permanentes:

  • Cada uma é composta por três procuradores europeus e os processos são distribuídos aleatoriamente por cada uma dessas câmaras para que seja feita a supervisão e tomadas decisões relevantes sobre o andamento da investigação ou do processo.
  • O regulamento impõe que não podem ser distribuídos a uma câmara permanente processos do país de cada um dos três procuradores que façam parte da mesma câmara. Consequência prática: o procurador José Guerra está numa câmara com uma colega de Malta e outro da Lituânia, logo esta câmara não poderá gerir processos de Portugal, Malta ou Lituânia.
  • Contudo, e continuando a dar exemplos práticos, o procurador José Guerra é membro ad hoc de cada câmara permanente que acompanha os processos portugueses — acontecendo o mesmo com cada dos seus 21 colegas. Significa isto que Guerra pode ser chamado a qualquer momento para aconselhar os três colegas que acompanham determinado processo português sobre a melhor decisão processual a tomar.
  • A lógica reside no melhor conhecimento que cada um dos procuradores tem sobre o processo penal do seu país de origem. Como os 22 países têm organizações judiciárias diferentes, é fundamental que, por exemplo, José Guerra ajude os seus colegas a perceberem as leis portuguesas para que as decisões da respetiva câmara permanente não viole a lei portuguesa. O exemplo de Guerra é obviamente replicável para todos os seus colegas de outros países.
  • Apesar de ser membro ad hoc, o procurador que tenha a mesma nacionalidade do mesmo processo não terá direito de voto sobre as seguintes matérias: a decisão da câmara permanente de avocar (chamar o processo) um determinado processo, de transmitir um processo de Portugal para outro Estado-Membro ou de conflito jurisdicional com outro Estado-Membro. “A lógica é esta: não posso ter direito de voto sobre matérias que poderão favorecer Portugal. O mesmo se passa com os meus colegas”, explica José Guerra.

Os procuradores europeus delegados têm autonomia?

As câmaras permanentes têm assim uma relação hierárquica com os procuradores delegados europeus que operam em cada um dos 22 Estados-Membros que aderiram à Procuradoria Europeia. O número de procuradores delegados é muito variável de país e para país, sendo que a Itália (15) e a Alemanha (11) são os países com maior número de magistrados a operação nos escritórios descentralizados da Procuradoria Europeia. Portugal tem quatro procuradores delegados, o mesmo número que a França e menos um do que a Espanha.

O facto de as câmaras permanentes monitorizarem os casos durante as quatro fases do processo penal português (investigação, instrução criminal, julgamento e recursos), não significa que os procuradores delegados não tenham a sua autonomia.

Desde logo, a abertura do inquérito, a orientação da investigação ou decisões como a realização de escutas telefónicas, buscas domiciliárias, a constituição de arguidos, etc. — tudo isto são decisões tomadas ao nível local pelo procurador delegado. Mas sob a supervisão da Câmara Permanente a quem tenha sido distribuído o respetivo processo — um controlo hierárquico que também existe no Ministério Público português.

"Na Procuradoria Europeia, toda a gente fala da cláusula portuguesa. Na perspetiva de um cidadão, é uma grande salvaguarda na aplicação do poder hierárquico das câmaras permanentes. Se o procurador delegado entender que estão reunidas as condições para se avançar para uma acusação, a câmara permanente não pode dar ordens para se arquivar."
Procurador europeu delegado José Ranito

As câmaras permanentes, contudo, têm um poder hierárquico claro no que diz respeito à decisão de avocar, acusar, arquivar ou aplicar uma forma simplificada de processo (como a suspensão provisória do processo). Ou seja, os procuradores delegados não poderão tomar nenhuma destas decisões sem uma aprovação explícita da câmara permanente a quem tenha sido distribuído o respetivo processo.

Há só uma única nuance nesse poder hierárquico decisivo das câmaras permanentes: se o procurador delegado propuser uma acusação num determinado, a câmara permanente não poderá recusar ou impedir tal proposta. Este aspeto do regulamento da Procuradoria Europeia teve uma inspiração portuguesa em 2015. A então ministra Paula Teixeira da Cruz ameaçou bloquear a aprovação do regulamento por considerar que “o poder total das câmaras permanentes sobre o destino final do processo” poderia “ser considerada inconstitucional em Portugal”, como explica o procurador José Guerra. O ‘murro na mesa’ de Teixeira da Cruz surtiu efeito e o regulamento foi adaptado às exigências portuguesas.

“Na Procuradoria Europeia, toda a gente fala da cláusula portuguesa. Na perspetiva de um cidadão, é uma grande salvaguarda na aplicação do poder hierárquico das câmaras permanentes. Se o procurador delegado entender que estão reunidas as condições para se avançar para uma acusação, a câmara permanente não pode dar ordens para se arquivar”, explica José Ranito.

E ao contrário do que acontece em Portugal, as câmaras permanentes não podem avocar o processo em caso de discordância sobre uma acusação.

Qual a relação de José Guerra com os procuradores delegados portugueses?

Apesar de o regulamento impedir que a câmara permanente de que faz parte José Guerra possa receber processos portugueses, tal não significa que o magistrado não acompanhe as investigações dos procuradores delegados em Lisboa e no Porto e, acima de tudo, não tenha uma relação hierárquica com esses quatro magistrados.

Desde logo, José Guerra tem um gabinete em Lisboa e outro no Porto precisamente para acompanhar os trabalhos dos procuradores delegados. Como é o procurador europeu que melhor conhece a realidade processual portuguesa, supervisiona o que se passa em Portugal. “Faço essa supervisão em nome de cada câmara permanente a que cada um dos processos possa ter sido distribuído para garantir que as orientações e as diretrizes da câmara permanente são seguidas pelos procuradores delegados. Essa é a lógica do sistema”, diz o magistrado.

O procurador europeu José Guerra no Campus da Justiça, em Lisboa

JOÃO PORFÍRIO/OBSERVADOR

O regulamento também permite que Guerra possa conduzir excecionalmente uma determinada investigação. Ou seja, José Guerra poderá propor à respetiva Câmara Permanente a avocação de um caso, passando o próprio procurador europeu a ser o titular do inquérito. Isto é, há uma diferença face à realidade portuguesa: enquanto no nosso país um determinado superior hierárquico do MP tem competência própria para avocar um processo, o procurador europeu José Guerra precisará de uma autorização de um órgão (a Câmara Permanente) para o fazer.

Contudo, tal só pode acontecer em situações excecionais, nomeadamente quando a complexidade do crime ou o montante da alegada fraude em causa seja de tal forma elevado que se justifique que a investigação seja liderada por um procurador europeu e não por um procurador delegado.

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