Se tirarmos o período da assistência financeira pela troika, o relatório que a OCDE — Organização para a Cooperação e Desenvolvimento Económico apresenta esta segunda-feira em Lisboa deve ser o mais polémico dos últimos anos de uma organização internacional sobre Portugal. E há razões para isso: o relatório defende a necessidade de reforçar o combate à corrupção, mas o diagnóstico e medidas propostas na versão final do “Economic Survey” têm diferenças claras face à versão que chegou a ser discutida com as autoridades portuguesas no ano passado e que causou mal-estar junto do Governo

O tema polémico é tratado no capítulo dedicado à organização do sistema judicial português e ao impacto da sua baixa eficiência e produtividade na economia e nos negócios. A palavra corrupção aparece cerca de 40 vezes no relatório (no texto, em quadros e outras referências). E são apresentados índices internacionais comparativos de perceção da corrupção onde a posição relativa portuguesa não está entre as mais bem classificadas.

A principal ausência no documento é a referência explícita a casos de corrupção de grande impacto mediático, como o que envolveu um ex-primeiro-ministro e gestores de grandes empresas portuguesas. Os nomes de José Sócrates, Ricardo Salgado (BES), Zeinal Bava e Henrique Granadeiro (ambos da PT) nunca foram referidos no draft inicial do relatório mas o desaparecimento da alusão indireta, mas facilmente identificável com a Operação Marquês, é uma das diferenças mais visíveis do relatório final face à primeira versão — como o Observador constatou ao ler os dois documentos.

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Estas alterações têm como pano de fundo as notícias sobre divergências manifestadas pelo Governo sobre o teor da versão anterior junto da própria OCDE, bem como o cancelamento da apresentação de Álvaro Santos Pereira, o coordenador da OCDE para relatórios nacionais e ex-ministro de Passos Coelho, que chegou a estar agendada para esta terça-feira. A presença de Santos Pereira na própria comitiva da OCDE que se deslocou a Portugal terá sido mesmo vetada pelo Governo de António Costa, como o Observador noticiou.

Já esta segunda-feira. durante a apresentação do relatório no Ministério da Economia, o secretário-geral da OCDE, Angel Gurría assumiu como sua a sugestão de que o diretor português não estivesse envolvido no evento porque desejava que a conferência fosse sobre Portugal e não sobre o Álvaro e sobre a controvérsia gerada pela “infeliz fuga” do draft do documento e pelas notícias sobre o mal-estar causado junto dos responsáveis portugueses.

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Um sumário executivo que nasce de corte e costura

Muitas vezes o sumário executivo é a única parte de um relatório público os leitores lêem — visto que é um capítulo muito sucinto com as conclusões gerais do documento. Talvez antecipando isso mesmo, os membros do Governo de António Costa que negociaram com a OCDE tentaram cortar o máximo possível do texto original.

Na versão inicial podíamos ler que “a criação de um tribunal especial com jurisdição nacional contra a corrupção deve ser considerada”. Mas agora esta frase não consta do sumário executivo da versão final, aparecendo apenas mais à frente, na parte mais desenvolvida do relatório.

Outra alteração prende-se com o “poder” e os “recursos” que a Procuradoria-Geral da República (PGR) deveria ter para promover, com mais eficácia, uma especialização dos procuradores. Estas expressões — “poder” e “recursos” — desapareceram para dar lugar à palavra “disponibilidade”.

Por outro lado, a palavra “corrupção”, no contexto da necessidade de um maior combate a esse crime, foi mesmo apagada do sumário executivo — aparecendo em seu lugar a expressão “criminalidade económica e financeira”

O relatório final também é mais sintético quanto à necessidade de rever os recursos em processos judiciais de forma a “prevenir abusos”, nomeadamente por parte da defesa, omitindo a demora sinalizada na versão inicial em executar sentenças de condenação e a necessidade de reduzir em número e alcance esses recursos — nomeadamente as reclamações, aclarações e outros expedientes que podem ser utilizados juntos dos tribunais superiores para impedir o trânsito em julgado de condenações decretadas pelos tribunais de primeira instância.

Finalmente, se a versão inicial referia expressamente a necessidade de aumentar os orçamentos da PGR e da Polícia Judiciária,  a versão final indica apenas a necessidade de o Governo promover “recursos adequados” a esses órgãos.

O desaparecimento do caso Sócrates

A referência implícita a José Sócrates, o principal arguido da Operação Marquês, fazia parte do capítulo dedicado às Políticas Públicas. Podia ler-se no draft inicial que “as percepções de corrupção foram alimentadas por casos de notáveis ​​ao longo da última década, incluindo um escândalo envolvendo o antigo primeiro-ministro e chefes de empresas portuguesas poderosas“.

A versão que causou desagrado no Executivo também ia mais longe na constatação de que Portugal comparava relativamente mal com os parceiros da OCDE nos níveis internacionais de perceção de corrupção. Agora, a versão final apenas tem uma frase generalista segundo a qual “as perceções da corrupção são importantes, inclusive para o investimento direto estrangeiro” — e omite a referência ao posicionamento de Portugal no ranking do Índice de Perceção de Corrupção da Transparência Internacional: 30.º lugar em 180 países.

O mesmo se diga da falta de recursos financeiros atribuídos ao Ministério Público (MP) e à Polícia Judiciária (PJ). Ainda que o relatório final continue a alertar para uma dotação de recursos inferior a países com níveis de corrupção mais baixos, como a Suíça e a Holanda, também reconhece a especificidade de cada país quando estão em causa comparações quantitativas de meios financeiros. Uma versão muito mais suave quando no draft se podia ler o seguinte: “O orçamento para o Ministério Público é baixo quando comparado com organizações equivalentes noutros países (…). Ao mesmo tempo as responsabilidades são numerosas. Neste contexto, o orçamento para a luta contra a corrupção do MP e da PJ deve ser aumentado”. O conselho para subir o orçamento dos órgãos de investigação criminal desapareceu da versão final.

O desagrado no Governo perante o documento preliminar discutido entre as autoridades portuguesas e a equipa da OCDE, coordenada pelo ex-ministro da Economia de Passos Coelho, chegou a ser assumido por alguns membros do Executivo, como o ministro Adjunto e da Economia, Pedro Siza Vieira, que estará presente esta segunda-feira na apresentação do documento final.

Siza Vieira chegou a dizer no Parlamento que o relatório da OCDE poderia ser um “sinal externo muito negativo”, pois colocava a “corrupção acima de alguns fatores estruturais”. “Fico bastante desapontado que o contributo que a OCDE tem para dar à economia portuguesa é pôr o combate ao problema da corrupção como uma coisa mais importante, por exemplo, do que a qualificação dos portugueses e dar um sinal ao mundo de que estamos ao mesmo nível que a Nigéria ou do que o Iraque”, disse. Na versão final do relatório da OCDE não é feita no texto nenhuma comparação direta entre Portugal e a Nigéria e o Iraque.

Pedro Siza Vieira lamenta destaque dado à corrupção em relatório da OCDE: “dá um sinal externo muito negativo”

A substituição de Espanha pela Eslováquia como referência contra a corrupção

Integrada num subtítulo do capítulo 2, que deixou de chamar-se “Combate à corrupção” para passar a chamar-se “Melhorar a qualidade institucional e prevenir a corrupção”, surge a proposta de criação de um tribunal especial para julgar casos de corrupção. Enquanto que no draft se podia que a “criação de um tribunal especial com jurisdição nacional para [julgar] casos de corrupção deve ser considerada”, na versão final o “deve” foi substituído por “pode”

Por outro lado, o exemplo dado na primeira versão do texto era a Audiencia Nacional de Espanha, como o Observador noticiou. Ou seja, no contexto da defesa de uma “justiça confiável” que garanta que “leis e regulamentos” são “efetivamente cumpridos”, a OCDE assegura que tribunais semelhantes tinham sido criados em diversos países, “como a Espanha”.

Na versão final, Espanha foi surpreendentemente substituída pela Eslováquia. A diferença é que, ao contrário do tribunal espanhol, o Tribunal Especial Criminal da Eslováquia tem sido criticado por falhar no combate à corrupção. Criado em 2003 para julgar casos de corrupção e de crime organizado, o tribunal eslovaco teve apenas sucesso no combate a este último tipo de criminalidade violenta e agressiva.

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Os tribunais como forma de atrair investimento

Um dos aspetos analisados é o modelo de funcionamento dos tribunais, que apresenta fragilidades ao nível da governação, com o documento a propor maior autonomia operacional para responder a problemas do congestionamento. É também defendida uma revisão do processo de avaliação dos juízes e questionada a eficácia de execução de garantias pessoais entregues como colateral de empréstimos.

O Economic Survey lança ainda um foco sobre o poder de regulação da Ordem dos Advogados no acesso e exercício da profissão e que conduz a restrições na entrada de profissionais e na concorrência e sugere a criação de um organismo independente de supervisão.

O relatório constata a existência de um elevado nível de litigação (muitos processos judiciais) que está associado à existência de um número de advogados por habitante mais alto do que na maioria dos países europeus e que resulta num excesso de oferta de serviços legais.  Não obstante, a produtividade é baixa quando comparada com outros países europeus, o que sugere que advogados estão frequentemente envolvidos com casos de reduzida produtividade. Num contexto de regulação rígida, que em regra está associada a rendas, é provável que os lucros excessivos sejam distribuídos por um vasto número de advogados, que gera mais litigação do que a necessária para defender os interesses dos clientes. A OCDE defende por isso a necessidade de reforçar a transparência nos contratos legais para os clientes perceberem melhor os serviços prestados pelos advogados e para aumentar o nível de concorrência no setor.

Abrandamento da economia

A OCDE prevê que a economia portuguesa mantenha a expansão a um ritmo estável, mas antecipa uma desaceleração já para 2020, com o PIB a crescer apenas 1,9%, contra os 2,1% estimados para este ano — um ponto percentual abaixo da estimativa do Governo. A organização diz que os ganhos no emprego, cuja taxa deverá cair para menos de 6%, e nos salários vão alimentar o consumo e que a inflação vai acelerar ligeiramente. Mas aponta para as nuvens que vêm de fora e antecipa um abrandamento nos principais parceiros comerciais de Portugal que irá trazer ventos contrários ao crescimento das exportações.

O principal risco apontado no horizonte da economia é um aumento das taxas de juro, em resposta à normalização da política monetária e ao fim dos estímulos do Banco Central Europeu, o que poderá ter um impacto negativo nos gastos das empresas e das famílias. O Economic Survey diz que a saúde das finanças públicas e do sistema financeiro ainda continua a precisar de fazer progresso e, apesar de a dívida pública estar em queda, os seus encargos limitam a capacidade do Governo para dar resposta a futuros choques económicos. A OCDE prevê que dívida caia para 115% do PIB até 2020 e que o défice seja de 0,2% este ano para atingir um saldo equilibrado — 0,1% do PIB — no próximo ano.

Na banca, o stock de empréstimos em risco (crédito malparado) tem vindo a cair nos últimos anos, mas continua a estar entre os mais pesados da Europa, pressionando a rentabilidade e a solidez financeira dos bancos, com a OCDE a defender mais medidas para agilizar os processos de insolvência de devedores, que poderão passar por procedimentos fora dos tribunais.

Outro desafio sinalizado é o envelhecimento rápido da população. Não obstante terem sido feitas algumas reformas no sistema de saúde e de pensões, o equilíbrio orçamental beneficiará de uma maior transferência dos tratamentos de saúde para os centros de atendimento local e de uma redução dos incentivos às reformas antecipadas. Há também espaço para alargar a base de impostos cobrados.

Impostos. Menos taxas reduzidas no IVA e mais impostos no gasóleo

As receitas do Estado com impostos e contribuições passaram de 40,4% do Produto Interno Bruto para 42,7% do PIB em 2017. Apesar de algumas medidas recentes estarem já orientadas para taxar externalidades negativas, como a taxa sobre as bebidas açucaradas, a OCDE considera que há margem para fazer mais no sentido da sustentabilidade orçamental. No que diz respeito aos impostos sobre os imóveis, a receita poderia ser mais reforçada. Outros capítulos onde há espaço para progresso são o IVA, onde o sistema português mantém um elevado número de isenções e taxas reduzidas, e os impostos ambientais que, segundo a OCDE, devem ser subir em algumas formas de energia. Medidas recomendadas que no seu conjunto poderão representar receitas adicionais equivalentes a 2,6% do Produto Interno Bruto.

Segundo os técnicos da organização, mais de metade do potencial de receitas de IVA não é cobrado em resultado dessas isenções e também de uma fiscalização fraca à evasão fiscal. E uma das políticas deste Governo que merece reserva foi a reintrodução da taxa reduzida para a restauração, que, segundo o relatório, pode favorecer os consumidores de maiores rendimentos que são mais suscetíveis de comer refeições fora. Além de que a experiência de outros países como a França sugere que o impacto destas medidas no estímulo ao emprego — um dos argumentos do Governo — é modesto.

A reforma da fiscalidade verde também suscita uma atenção especial neste relatório, onde é sinalizado o facto de o gasóleo ter uma carga fiscal inferior à gasolina, apesar de produzir mais emissões, em particular óxidos de nitrogénio. A OCDE considera que o agravamento dos impostos sobre o diesel ainda tem um caminho a percorrer — está 20 cêntimos por litro abaixo da gasolina — mas também considera que novas descidas do imposto, como aconteceu este ano com a gasolina, devem ser reequacionadas, uma vez que o atual nível de taxação pode ser insuficiente para refletir todas as consequências ambientais dos combustíveis. Defende ainda o agravamento de taxas sobre outros combustíveis, como o carvão e o gás natural, o que já está aliás em curso.

Exportações. Mais concorrência nos portos e cuidado com a redução de IRC no interior

O relatório faz uma análise mais profunda das exportações. Começando por constatar que o progresso das exportações portuguesas tem sido impressionante, a OCDE  destaca o papel do turismo e do crescimento das viagens nesta evolução positiva. E avisa que as autoridades devem ter um plano preparado para a possibilidade de alguma inversão no boom do turismo que foi atraído para Portugal por causa dos riscos de segurança e terrorismo em destinos concorrentes.

Aponta ainda para fatores que podem ser melhorados e que passam pela redução de obstáculos administrativos, nomeadamente a nível do licenciamento, onde o progresso feito em Portugal não tem sido excecional face a países como a Espanha, Alemanha e Itália. Um aspeto crítico nesta matéria é o sistema fiscal, apontado como complexo e com muitas alterações. Os impostos sobre os lucros das empresas é uma das matérias sinalizadas, sobretudo devido à persistência de várias tributações autónomas e derramas que agravam o IRC.

Ainda que admita vantagens em taxas mais baixas para as pequenas empresas, a OCDE diz que a experiência sugere que as grandes companhias são mais sensíveis a aumentar o investimento quando fiscalmente incentivadas a fazê-lo e pede uma avaliação rigorosa da política de concessão de incentivos fiscais a quem se instalar no interior do país, que pode desviar recursos das zonas mais produtivas do país. Mais do que introduzir distorções no sistema fiscal, a promoção dos negócios no interior deveria ser induzida pela alocação de mais fundos públicos no investimento em ativos complementares do Estado nessas regiões.

No capítulo das exportações, o relatório defende a necessidade de melhorar o acesso das empresas ao financiamento e à inovação tecnológica, bem como algumas infraestruturas de transportes.

E aqui o sistema portuário merece um olhar mais atento. A OCDE faz uma avaliação crítica do modelo de concessões portuárias em Portugal, onde o tempo de duração dos contratos é frequentemente excessivo, o que reduz a potencial entrada de novos operadores que podem oferecer um melhor serviço a um preço mais baixo. A OCDE considera ainda que existe uma correlação baixa entre o investimento feito pelos operadores privados e a duração dos contratos atribuídos e questiona a opção seguida em muitos casos de renovar o prazo da concessão ao mesmo operador sem lançar um novo concurso público, em linha com um alerta já feito pela Autoridade da Concorrência.

Concorrência defende concurso para entregar concessões portuárias

Sinalizando que a atribuição de concessões não valoriza o critério das taxas mais baixas para os utilizadores dos portos, a OCDE destaca a importância destes serviços para a produtividade do negócio portuário e para a performance das exportações — e diz que o impacto nos custos finais para os clientes deve ser mais considerado. Fica ainda a recomendação para abolir regulações que restringem a possibilidade de as autoridades portuárias licenciar vários operadores para prestar o mesmo serviço.

Ainda uma palavra para a construção do aeroporto complementar do Montijo. Segundo a OCDE, para que o novo aeroporto produza resultados deve ser complementado com ligações de transporte eficazes à Grande Lisboa.