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Vivemos na era da abolição de fronteiras, dos voos low cost, do programa Erasmus. Há livre circulação de ideias, e, em vastas áreas do planeta, também de pessoas, bens e capitais (os capitais sabem tratar de si, arranjam sempre maneira de fluir para onde lhes convém). O Portugal político, empresarial e mediático embandeira em arco por Lisboa receber a WebSummit e por Madonna, Monica Belluci, Michael Fassbender, Eric Cantona e John Malkovich terem comprado casa com vista para o estuário do Tejo. Aceita-se com naturalidade que atletas nascidos no estrangeiro, como Francis Obikwelu ou Nelson Évora, representem Portugal e faltaria aqui espaço para enumerar os jogadores que jogam ou jogaram na selecção nacional de futebol que não são naturais de Portugal; não tardará que comece a circular uma petição para que se reserve lugar para Garrett McNamara no Panteão Nacional por ter convertido Portugal num destino popular para surfistas de todo o mundo.

Cosmopolitismo e modernidade andam de braço dado e os políticos e empresários falam, com um brilhozinho nos olhos, de “indústria 4.0”, da “internet das coisas”, de “indústria do conhecimento”, de “domótica”, de “aldeias digitais” e “cidades inteligentes”, os autarcas orgulham-se de ter praças, parques e urinóis com wi-fi e todos os discursos estão polvilhados com palavras-chave como “conectividade” e “sinergia”.

E, todavia, no meio de tudo isto, há atavismos isolacionistas que persistem inexplicavelmente.

Alemanha, 1748

Embora alguns tenham de Johann Sebastian Bach a ideia de um homem austero e ascético, na verdade era um grande apreciador de vinhos, de boa mesa e do convívio à refeição com familiares e amigos e a sua casa em Leipzig tinha uma invejável garrafeira.

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[Ária “Heute noch”, da Cantata profana Schweight stille, plaudert nicht BWV 211 (c. 1732-35), mais conhecida como “Kaffeekantate” ou “cantata do café”, uma mini-ópera cómica em que se faz um elogio (caricaturalmente exagerado) das virtudes dessa bebida exótica que conheceu uma explosão de popularidade na Europa setecentista. Interpretação de Janet Perry (soprano) e Concentus Musicus Wien, com direcção de Nikolaus Harnoncourt]

Entre a correspondência de Bach que sobreviveu até aos nossos dias, está uma carta enviada ao seu primo Johann Elias Bach (1705-1755), diretor musical do Gymnasium de Schweinfurt, a propósito de um tonel de vinho que este lhe enviara. Após agradecer a oferta, enaltecer a qualidade do vinho e lamentar não ter nada de qualidade comparável com que retribuir, Bach queixa-se de que, durante o transporte, o casco fora danificado e parte do precioso líquido se perdera. Mas no post-scriptum é que surge a parte mais reveladora: “Ainda que o meu estimado primo tenha manifestado a sua intenção de continuar a enviar-me bebidas espirituosas, vejo-me forçado a declinar a sua generosidade, em resultado dos seus custos”. Após enumerar as várias taxas alfandegárias, impostos e alcavalas que se viu forçado a desembolsar pelo transporte do tonel nos 300 quilómetros que separam Schweinfurt (na Baixa Francónia) e Leipzig (na Saxónia), Johann Sebastian Bach conclui que “é uma prenda cara de mais”.

Schweinfurt, 1648

Hoje poderá parecer-nos estranha a menção a taxas alfandegárias no interior de um país, mas há que ter presente que a Alemanha de 1748 ainda não era um país unificado e que, na ausência de um poder centralizado, cada entidade política, por minúscula que fosse, impunha tarifas e portagens a seu bel-prazer. Não era uma situação exclusiva da Alemanha e, segundo alguns etimologistas, a palavra “tarifa”, como as suas irmãs em inglês, francês, espanhol ou alemão, provém do nome do porto espanhol de Tarifa (no estreito de Gibraltar), que foi o primeiro a cobrar aos mercadores pelas cargas e descargas nos seus cais.

Mas era na Alemanha que a imposição de tarifas e portagens tinha maior expressão, a ponto de ser vista como uma peculiar manifestação de loucura nacional: a “furiosa teutonicorum insania”. A esmagadora maioria das tarifas e portagens não correspondem a um serviço prestado – limitam-se a ser uma fonte de rendimento para quem detém algum tipo de autoridade sobre uma parcela de território, como atesta uma petição ao imperador de um nobre alemão solicitando autorização para impor uma portagem no seu domínio invocando o pretexto da sua débil situação financeira e “dos seis filhos a cuja educação não sou capaz de prover, e mais o que está no ventre da minha esposa”.

As tarifas e portagens podiam ser explícitas – como numa cidade medieval alemã em cujo portão estava afixado o letreiro “Bois e judeus: 4 pfennige” – mas era frequente que, como destaca David S. Landes em The wealth and poverty of nations, fossem mantidas deliberadamente ambíguas de forma a que os “ladrões de estradas disfarçados de autoridades aduaneiras” tivessem poder discricionário e pudessem maximizar os seus lucros.

Durante o século XVII, à medida que a autoridade central se consolidava, países como a Grã-Bretanha e a França tomaram medidas para abolir este atavismo medieval, mas o mesmo não se passou na Alemanha politicamente fragmentada – e há historiadores que responsabilizam parcialmente a “loucura aduaneira” germânica pela lentidão do desenvolvimento económico alemão até ao início do século XIX.

Uma manta de retalhos: A Deutsche Bund (Confederação Alemã) em 1815-66

Escreve Landes que, em 1815, coexistiam na Alemanha “38 sistemas aduaneiros independentes” (não contando com milhares de particularidades locais) e que só os “tratados e negociações no rescaldo das Guerras napoleónicas libertaram o transporte ao longo do Reno”. Em 1834, por pressão da Prússia, foi finalmente constituída uma “união aduaneira” (Deutsche Zollverein) no interior da Alemanha, mas, ainda assim, com limitações e perante a oposição de muitas entidades territoriais que resistiam à ideia de prescindir de uma importante fonte de receitas. Vários economistas consideram que esta união aduaneira, aliada a outras mudanças estruturais, contribuiu decisivamente para o forte crescimento da economia alemã nas décadas seguintes

Cartoon num número de 1848 da revista satírica alemã Fliegende Blatter, sobre a ofensiva contra a floresta de tarifas e portagens

Portugal, 2018

Imagine-se um excêntrico que ainda acredita que os músicos devem ser remunerados pelas músicas que gravam. Acrescente-se-lhe a excentricidade de tal criatura ainda ouvir/ver música em suportes físicos como CDs ou DVDs, reproduzidos numa aparelhagem de hi-fi. Se não for um desafio excessivo à credulidade do leitor, some-se a bizarria de tal criatura ter um leque de interesses que, além de abarcar o pop-rock da Europa e EUA, inclui bandas de indie pop japonesa.

A J-indie, como também é conhecida, está inteiramente focada no mercado interno: as bandas cantam em japonês, têm websites em japonês, tocam apenas no Japão, lançam os seus discos em editoras japonesas e só muito esporadicamente surgem CDs e DVDs seus nas lojas online do mundo ocidental. É um mundo fervilhante, com bandas que rivalizam, em quantidade e qualidade, com a indie pop britânica ou americana, mas cujo universo se mantém, mesmo na era global, alheio à esmagadora maioria do público consumidor de música do Ocidente. A não ser que, num daqueles encontros fortuitos que surgem quando se navega pela internet (“serendipity” é a expressão na língua inglesa – sem correspondência na portuguesa – para este tipo de “acidente afortunado”) se encontre no YouTube um videoclip cativante. A partir desta ponta solta e com a ajuda do Google Translate, o excêntrico é capaz de levantar parcialmente o véu sobre um mundo cuja existência desconhecia e propõe-se adquirir um CD e dois DVDs numa loja online japonesa – a única em toda a World Wide Web que os vende, uma vez que são músicos cuja popularidade se circunscreve a um nicho.

[Uma faixa do mini-álbum ‘Kai’ (2017) dos Té, uma banda de math rock de Tóquio]

Os três discos custam 100 euros, o que, tratando-se de discos “normais” (ou seja, não são edições DeLuxe, numeradas e autografadas, nem raridades há muito descatalogadas, nem peças de colecção) é caro pelos padrões portugueses e europeus. Mas o preço médio dos CDs e DVDs no Japão é mais alto do que na Europa e a verdade é que não existe outra forma de os obter. Ao preço dos discos, deverão somar-se 33 euros de portes, outro valor desproporcionalmente alto, face ao peso diminuto da encomenda – mas o website não oferece alternativas de modos de envio, ou é aquela modalidade, assegurada por uma empresa multinacional na área da logística, ou nada. O excêntrico resigna-se a pagar 133 euros por três discos e clica no OK que finaliza a aquisição.

[“Hybrid”, pelos Lego Big Morl (originários de Osaka), ao vivo, a 6 de Dezembro de 2014, no Tsutaya O-East, uma das mais emblemáticas salas de concertos de Shibuya, a principal zona de entretenimento nocturno de Tóquio]

O excêntrico está consciente de que uma encomenda com valor superior a 22 euros proveniente do espaço extra-comunitário terá de passar pela alfândega portuguesa e, com efeito, passados uns dias, um funcionário da empresa de logística contacta-o telefonicamente a alertá-lo para a necessidade de proceder ao desalfandegamento da encomenda, o que requer o envio do comprovativo de pagamento, com discriminação do valor real da mercadoria e do valor pago pelo frete (e pelo eventual seguro). É uma operação simples que consiste em reenviar o e-mail comprovativo da aquisição enviado pelo vendedor ao comprador no ato da compra.

A encomenda chega passados mais alguns dias, mas o excêntrico descobre que é necessário desembolsar mais 76 euros: 39 correspondendo à cobrança do IVA pelo Estado Português, 37 correspondendo à intervenção da empresa logística no desalfandegamento (ou seja, fazer o penoso e complexo trabalho de reenviar para os serviços de alfândega o e-mail enviado pelo excêntrico). O CD e os dois DVDs ficam assim a custar 208 euros.

Note-se que este procedimento relativo a artigos provenientes do espaço exterior à União Europeia não é uma idiossincrasia portuguesa, até porque a pertença à UE obriga a alguma harmonização de regras. Mas isso não impede que existam aspetos questionáveis: um deles é o de a alfândega aplicar IVA a 23% sobre um produto cujo preço já inclui o IVA do país de origem. O IVA japonês é invulgarmente baixo – 8% – mas nem por isso deixa de haver dupla tributação; o que seria justo seria cobrar o diferencial da taxa de IVA, que neste caso é de 15%. Para mais, embora a alfândega saiba que valor corresponde ao artigo e que valor corresponde ao frete, o seu cálculo de IVA incide sobre o valor artigo + frete (+ eventual seguro), em vez de incidir só sobre o artigo. Não é tudo: aos 23% de IVA (ou seja 133 x 0.23 = 31 euros) a alfândega soma uma taxa de 8 euros por ter realizado a operação – ou seja, o Estado faz-se cobrar por realizar uma cobrança. Em encomendas de baixo valor comercial pode acontecer que o IVA apurado seja inferior aos 8 euros que o Estado cobra por o cobrar. De qualquer modo, o comprador pode dar-se por feliz por o valor do artigo não ultrapassar os 150 euros, caso em que haveria lugar, para lá do IVA, à aplicação de direitos alfandegários.

Façamos agora um balanço da repartição dos 208 euros despendidos:

  • O Estado português arrecadou 39 euros
  • A empresa logística, 33 + 37 = 70 euros
  • O Estado japonês, 8% de 100 = 8 euros
  • A loja online, a editora e os músicos repartem 100 – 8 = 92 euros. A percentagem média que costuma caber aos músicos pela venda de discos (ou aos escritores pela venda de livros) é de 10% do preço de loja subtraído do IVA, o que, neste caso, representa 9.2 euros.

Podem daqui extrair-se três conclusões:

  1. Aqueles que ainda acreditam que os músicos devem ser remunerados pelo seu talento e labor são ingénuos.
  2. Os pais que tentam dissuadir os filhos de seguir carreiras musicais e ambicionam para eles uma profissão digna e segura, como cobrador de impostos ou funcionário de uma empresa logística, estão cheios de razão.
  3. Todo o processo acima descrito – baseado num caso real, mas transponível para outras aquisições de CDs/DVDs/livros entre países que não façam parte de uma mesma união aduaneira – é estritamente legal, mas é injusto e contraproducente.

[“Goodbye” pelos Toe (uma banda de Tóquio), com a convidada Toki Asako, ao vivo, a 15 de Fevereiro de 2010, no Tsutaya O-East, Tóquio. Há quem entregue tudo à música e deixe em palco coiro e cabelo, mas na repartição dos proventos, fica em último lugar]

https://youtu.be/e0RWnzd_b_k

Mares infestados de piratas

A indústria musical e, por inerência, os músicos, sofreram um rude golpe quando se tornou possível copiar CDs no computador caseiro com dois ou três clicks e por um preço irrisório (ver Do walkman ao streaming: O que ouvimos realmente quando ouvimos música?). Perante esta possibilidade, muito “melómanos” deixaram de imediato de comprar CDs originais e dedicaram-se alegremente à “cópia privada”. A indústria musical reagiu desajeitadamente, com algumas editoras a incorporar nos CDs dispositivos anti-cópia, mas não tardaria que a barreira anti-pirata rebentasse por outro lado – e de forma bem mais avassaladora.

Fábrica caseira de CDs piratas, Johannesburg, África do Sul

A desmaterialização da música permitiu que esta fosse descarregada da internet e que a pirataria passasse a dispensar a obtenção de um disco original. A “oferta” de ficheiros para download ilegal era tão vasta que modificou a atitude do pirata: tendo ao seu dispor mais música do que alguma vez teria tempo para ouvir, deixou de gravar CD-Rs (alguns dos quais não iria ouvir mais do que uma vez) e passou apenas a ouvir, através das colunícolas do computador pessoal, os ficheiros pilhados na internet. O perfil do “melómano” do dealbar do século XXI era alguém que acumulara uma formidável discoteca no disco rígido do seu computador sem ter pago um cêntimo por ela e cujo único contributo para a sobrevivência dos músicos se ficava, em muitos casos, pela aquisição de uma t-shirt.

A indústria musical, que via as receitas cair vertiginosamente, tinha uma boa quota nas culpas, ao ter lançado o formato CD com preços extraordinariamente inflacionados e ao ter reagido tardia e erraticamente à onda de pirataria. Quando as editoras começaram a propor reedições baratas e a disponibilizar downloads legais já toda uma geração se desabituara de pagar por “conteúdos”. Os downloads legais foram crescendo, mas não com rapidez suficiente para compensar a diminuição da venda em suportes físicos, de forma que nos primeiros 15 anos do século XXI o mercado da música teve uma quebra acumulada de 40%. E nem vale a pena contabilizar aqui o crescimento das vendas no suporte vinil, que motiva regularmente artigos hiperbólicos nos media sobre “o regresso do velho LP”, mas que está (e estará sempre) restrito a um pequeno círculo de colecionadores, audiófilos e hipsters e terá sempre valores residuais.

Thomas Edison (1847-1931) com o seu segundo modelo de fonógrafo, Abril de 1877: Edison estava convencido de que o fonógrafo seria um equipamento essencial do escritório moderno – para que os patrões ditassem cartas às secretárias – e não via grande interesse na sua aplicação à gravação/reprodução musical

A queda do mercado musical só terminou em 2015, ano em que o volume de receitas – 15.000 milhões de dólares – foi praticamente igual ao de 2014 – 14.966 milhões de dólares – e 2016 foi o primeiro ano de crescimento do século XXI – 15.800 milhões, um aumento de 5.9% face a 2015.

As receitas de 2016 dividiram-se assim: 50% do sector digital, 34% dos suportes físicos (cuja queda prossegue em ritmo cada vez mais acelerado: 7.6% de quebra em 2016) e 14% de direitos de execução pública (performance rights). No setor digital, as receitas provenientes de downloads foram superadas pelas receitas do streaming (que permite a escuta mas não o armazenamento no computador), que representaram 59% das receitas digitais.

Há que considerar que estes números globais ocultam realidades muito diversas país a país. Enquanto os EUA, o maior mercado do mundo, têm uma proporção de 18% para os suportes físicos e 70% para o digital, o Japão, o 2.º país do ranking, tem situação inversa, com 73% nos suportes físicos e 20% no digital, uma relação sem paralelo no mundo – o único outro país em que o suporte físico ainda gera mais receitas que o digital é a Alemanha, com 52% para o primeiro e 32% para o segundo. Os países emergentes, talvez por só recentemente terem conhecido uma expansão da classe média e não possuírem, portanto, uma tradição enraizada de aquisição de discos, são aqueles onde o digital tem maior implantação: o Brasil (11.º do ranking), tem 14% nos suportes físicos e 49% no digital, a Índia (19.º do ranking) tem 11% nos suportes físicos e 65% no digital, a China (12.º do ranking) tem 4% nos suportes físicos e 96% no digital (todos estes dados se reportam a 2016).

Os discos de vinil regressaram do mundo dos mortos, mas nunca deixarão de representar uma pequena parcela das vendas de música

Um estudo da Nielsen relativo a 2014 revelava que o americano médio – cujo rendimento per capita (47.500 euros) é o dobro do português (24.000 euros) – gasta anualmente em música 109 dólares (90 euros), um valor que engloba bilhetes para concertos (35%), CDs (12%, ou seja 13 dólares, o que mal dá para comprar um CD por ano), subscrição de serviços de rádio por satélite (9%), bilhetes para festivais (8%), downloads de faixas isoladas (8%), downloads de álbuns completos (7%), cheques-oferta para terceiros (7%), admissão em bares com música ao vivo (5%), subscrição de serviços de streaming (3%), vinis, cassetes e outros suportes físicos (2.5%).

Do que as estatísticas não dão conta, por razões óbvias, é da expressão da pirataria, embora os responsáveis por editoras portuguesas tendam a atribuir-lhe um peso superior à da média dos países europeus – as estimativas da pirataria na Europa indicam um gradiente geográfico na incidência da pirataria, com os países meridionais a revelarem maior propensão para o download ilegal (o que não impede que o Partido Pirata, que advoga o fim dos direitos de autor, tenha nascido na Suécia e tenha mais expressão no Norte da Europa).

O “pirata” alemão Jens Stober apresenta o Partido Pirata Europeu, no Chaos Communication Congress. Em 2009, o sueco Christian Engström tornou-se no primeiro “pirata” a ser eleito para o Parlamento Europeu; nas eleições europeias de 2014 o Partido Pirata Sueco perderia o seu deputado mas o Partido Pirata Alemão conseguiu eleger Julia Reda

As editoras assacam culpas ao Estado pela proliferação maciça da pirataria, por permitir que esta decorra em plena impunidade, e tentaram sensibilizar o Estado para o problema alegando que a diminuição de vendas representava uma concomitante diminuição do IVA arrecadado pelo Estado. Porém, este sabe que o dinheiro que os consumidores poupam na obtenção de música irá, inevitavelmente, ser gasto noutro sector da economia, pelo que do ponto de vista da colecta de IVA a pirataria pode ser vista como neutra. Por outro lado, a pirataria tornou-se tão generalizada que seria problemático para o Estado agir contra os milhões de indivíduos que fazem downloads ilegais.

A única ação adotada pelo Estado no combate à pirataria ficou-se por uma lei tíbia e algo sonsa que não demoveu um único pirata de continuar as suas práticas: a Lei da Cópia Privada limitou-se a impor um custo adicional a todos os dispositivos de gravação, leitura e armazenamento de dados – computadores, tablets, leitores de MP3, telemóveis, discos externos, memórias USB, cartões de memória e CDs e DVDs graváveis. Ou seja, o Estado, não tendo coragem ou vontade para lutar contra a pirataria, tomou o caminho mais fácil: parte do princípio que todos os cidadãos são piratas e aplica sobre todos eles (incluindo os que pagam pela música que consomem), uma taxa de compensação pela pirataria. É como se o Estado desistisse de aplicar multas pelo incumprimento do código da estrada e, em vez disso, obrigasse todo o cidadão, mesmo que cumpridor, ao adquirir um automóvel, a pagar uma taxa extra correspondente ao valor das multas não cobradas aos infractores. Ou como se a Autoridade Tributária aplicasse a todos os contribuintes um adicional sobre o IRS/IRC destinado a compensar as perdas de receitas de muitos milhares de milhões de euros resultantes da evasão fiscal e das dívidas fiscais que a AT é incapaz de cobrar.

O que se conclui do acima exposto é que o Estado não faz nada contra quem descarrega música ilegalmente mas sobrecarrega de taxas o número minguante de cidadãos que compram música legalmente.

Um fonógrafo de 1912: uma peça que poderá impressionar as visitas, mas pouco prática para se ouvir música na praia

Este ano, a União Europeia decidiu que era altura de tomar algumas medidas para proteger a criação artística e apresentou uma proposta de directiva (“Directiva do parlamento Europeu e do Conselho relativa aos direitos de autor no mercado único digital”) que pretendia conceder aos titulares dos direitos de autor de criações audiovisuais algum controlo sobre os conteúdos que são disponibilizados pelas plataformas digitais e que previa uma filtragem ao upload de conteúdos e uma espécie de imposto sobre links (ver Os memes vão acabar? Seis coisas a saber sobre a directiva que pode mudar a Internet). Os músicos, um dos grupos mais prejudicados pela livre circulação de conteúdos na Internet, apelaram aos deputados para que votassem a favor, pois pretendem que as plataformas digitais lhes entreguem parte das receitas publicitárias, como compensação por os utilizadores dessas plataformas disponibilizarem nelas a sua música. Do outro lado houve quem, temendo pelo cerceamento da liberdade de expressão (caso dos Partidos Piratas ou de Tim Berners-Lee, um dos pioneiros da Internet), apelasse ao voto contra. A 5 de Julho de 2018, o Parlamento Europeu rejeitou a directiva, com 318 votos contra, 278 a favor e 31 abstenções, mas o assunto voltará ao Parlamento em Setembro.

Os memes vão acabar? Seis coisas a saber sobre a diretiva que pode mudar a Internet

O que é nacional é bom?

Uma das razões mais frequentemente invocadas para impor taxas aduaneiras é a defesa dos produtores nacionais. É um argumento válido, embora discutível, por o proteccionismo aduaneiro favorecer a ineficiência e a queda dos padrões de qualidade e por esconder uma lógica pueril: ao mesmo tempo que pretende manter a concorrência estrangeira longe do nosso país, espera que os países estrangeiros não levantem entraves aos nossos produtos (é emblemática desta maneira de pensar o apelo que o anterior presidente da República Portuguesa fez em tempos para que os portugueses fizessem férias cá dentro).

De qualquer modo, o argumento da defesa dos produtores nacionais é válido quando estão em jogo batatas, maçãs, palitos ou chaves de parafusos, mas não quando falamos de produtos de índole artística. Aplicar taxas, mesmo que absurdamente altas, sobre os CDs de artistas estrangeiros não vai fazer com que os apreciadores de Mark Eitzel transfiram os seus afectos para António Zambujo, que os seguidores de Björk se convertam aos encantos de Ana Moura, que os fãs de Fleet Foxes os reneguem e os troquem pelos Azeitonas e que os aficionados da música tradicional da Lapónia reorientem o seu interesse para o cante alentejano.

Mas foi esse o absurdo pressuposto das quotas mínimas de transmissão de música portuguesa impostas pela Lei da Rádio (Lei n.º 4 /2001, de 23 de Fevereiro, revogada pela Lei n.º 54/2010, de 24 de Dezembro). Estipula a Lei da Rádio que todas as estações de rádio têm a obrigação de emitir um mínimo de 25 a 40% de música portuguesa (a taxa será definida anualmente pelo governo, quiçá em função do ano ser mais ou menos chuvoso e de a colheita nacional ser mais ou menos abundante), valor que sobe para 60% no caso do serviço público de rádio. E, não fossem as estações a serviço do imperialismo musical estrangeiro recorrer ao truque de passar a quota de música portuguesa durante a madrugada, a lei especifica que esta quota deve ser observada no período entre as 7:00 e as 20:00.

E o que entende a lei por “música portuguesa”? São “as composições musicais: a) Que veiculem a língua portuguesa ou reflictam o património cultural português, inspirando-se, nomeadamente, nas suas tradições, ambientes ou sonoridades características, seja qual for a nacionalidade dos seus autores ou intérpretes; ou b) Que, não veiculando a língua portuguesa por razões associadas à natureza dos géneros musicais praticados, representem uma contribuição para a cultura portuguesa”.

Os quatro protagonistas principais que estrearam a ópera L’Africaine, de Meyerbeer, em Paris, a 28 de Abril de 1865: da esquerda para a direita, Emilio Naudin (Vasco da Gama), Marie Battu (Inès), Marie Sasse (Sélika) e Jean-Baptiste Faure (Nélusko). A ópera é cantada em francês, Giacomo Meyerbeer era um judeu nascido na Alemanha (como Jacob Liebmann Beer) que fez carreira em França e o libreto inspira-se, muito remotamente, na viagem de Vasco da Gama à Índia. Será música portuguesa?

São definições que dariam assunto para longas considerações, dadas as ambiguidades que contêm, mas deixam-se aqui apenas algumas questões impertinentes.

Deverão os discos editados pela Caldo Verde Records, de Mark Kozelek, um americano com evidente apreço pela nossa gastronomia, entrar na quota portuguesa?

Capa de 30 seconds to the decline of planet Earth (2017), uma colaboração entre os Sun Kil Moon e os Jesu, editada pela Caldo Verde Records. Ambas as bandas são americanas, mas a confirmar-se que a praia na foto da capa seja o Guincho, poderá o disco entrar no contingente luso?

Tendo Noah Lennox (conhecido no meio musical como Panda Bear, membro dos Animal Collective) assentado base, já há 13 anos, em Lisboa, não poderá ser considerado um português honorário?

Vivendo Madonna em Lisboa e dizendo-se inspirada pelo vibrante meio cultural lisboeta, poderá alegar-se que o seu próximo disco está impregnado de portugalidade e deverá assim ser contabilizado na quota de música portuguesa? (se Carminho for chamada a fazer coros no refrão de uma faixa, não há dúvida: a resposta é “sim”)

E que dizer de “Lisboa”, dos Russian Circles? O trio é de Chicago mas não poderá ouvir-se nesta faixa um eco da soturnidade e melancolia, que, aliadas às “sombras, o bulício, o Tejo, a maresia”, despertavam em Cesário Verde “um desejo absurdo de sofrer”?

[“Lisboa”, do álbum Guidance, dos Russian Circles]

Introduz a lei ainda uma especificação mais objectiva – quiçá para evitar o favorecimento inadvertido de música cantada em português por brasileiros e cabo-verdianos – que 60% dela terá de ser “composta ou interpretada em língua portuguesa por cidadãos dos Estados membros da União Europeia”. Não se percebe a razão de se assumir que um húngaro ou um finlandês são, automaticamente, mais qualificados ou apropriados para interpretar música cantada em português do que um cubano ou um filipino, mas certamente que este artigo mereceu longa e ponderada meditação por uma comissão de sábios.

[O húngaro Arany Zoltán toca o “Fado do toureiro”, com um à-vontade e naturalidade só possíveis de encontrar em cidadãos dos Estados membros da União Europeia – e nem sequer o facto de, provavelmente, nunca ter assistido a uma tourada deslustra a sua execução]

Quando a Lei da Rádio foi debatida, levantou-se o problema da Antena 2, que passa essencialmente música clássica (e algum jazz, para enfado ou irritação de alguns dos seus ouvintes habituais). Dada a nossa produção relativamente reduzida neste domínio face a colossos como a Alemanha ou a Itália, considerou-se que seria razoável que a quota não se aplicasse neste caso. Estranha-se que não se aplique raciocínio idêntico à restante música: como pode presumir-se que um país de 10 milhões de habitantes tenha uma produção de música pop capaz de rivalizar com a dos restantes 7.500 milhões de habitantes do mundo? Na verdade, se somarmos todo o talento musical e criatividade de Portugal não bastará para competir com o que fervilha em Nova Iorque, em Londres ou em Tóquio (na verdade, mesmo países bem mais populosos, ricos e instruídos do que Portugal não serão capazes de rivalizar com qualquer destas cidades).

É curioso que apenas a música seja alvo deste fervor patriótico: não existem (nem foram discutidas sequer) quotas nacionais para os filmes que são exibidos nas salas de cinema, nem para os filmes e séries exibidas nos canais de televisão (abertos ou por cabo), nem para os livros expostos nas montras das livrarias. Na verdade, nem sequer nos produtos sem cunho artístico e que são inteiramente fungíveis (isto é, que podem ser substituídos por outros do mesmo género) o Estado intervém, Não há quotas nacionais para papel higiénico, papaias, nabos ou amaciadores de roupa nas mercearias nem nas grandes superfícies. Porque é a música uma excepção? Será a música o Grande Desígnio Nacional?

Se o Estado português tem uma “paixão pela Música” (no sentido em que o antigo primeiro-ministro António Guterres tinha uma “paixão pela Educação”) e pretende fomentar a música portuguesa, os músicos nacionais talvez trocassem de bom grado as quotas obscurantistas impostas pela Lei da Rádio por um IVA reduzido nos instrumentos musicais e pelo regresso do IVA aplicado a CDs e DVDs de 23% para 6%, que é o IVA a que estão sujeitos os livros e publicações periódicas. O IVA reduzido dos livros parte do absurdo princípio de que o livro é, intrinsecamente, um artigo cultural mais nobre e digno de ser promovido do que um CD ou um DVD. Por outras palavras, que as 50 sombras de Grey merecem ser discriminadas positivamente pelo Estado face a Don Giovanni, A love supreme ou Songs of love and hate.

[“Verdes anos”, de Carlos Paredes, reinterpretado pelo Kronos Quartet. Por uma daquelas ironias em que a World Wide Web é fértil, o único videoclip com boa qualidade de som disponível no YouTube que contém esta música é ilustrado com uma colagem trapalhona de vídeos caseiros filmados na… Síria]

A ironia é que esta lei chauvinista e tacanha foi esvaziada pela fulgurante evolução dos hábitos de fruição de música e de entretenimento: as novas gerações deixaram de ter a rádio como meio privilegiado de acesso à música e recorrem maioritariamente ao computador, ao leitor de MP3 e ao smartphone, via streaming ou downloads legais ou ilegais. Além do mais, na internet qualquer um pode criar a sua “estação de rádio”, disponibilizando podcasts que não precisam de licença estatal e não estão sujeitas a quotas. O perfil do melómano típico de 2017 já não é o do descarregador compulsivo de ficheiros MP3 à borla, passou a ser a do visionador de videoclips (gratuitos) no YouTube e o do ouvinte (pagante ou não) da inesgotável oferta em streaming hoje disponível na internet.

A maior parte do público que resta na rádio “tradicional” está reduzido a quem não tem nem nunca teve propensão para gastar dinheiro em música ou que a escuta distraidamente enquanto está preso no trânsito. Não em casa, porque quando se entra em casa, liga-se de imediato a TV e é ela a banda sonora para as actividades domésticas e para o lazer dentro-de-portas no Portugal do século XXI.

“Ouvinte de rádio” (1929), de Aleksandr Rodchenko: A forma de ouvir rádio mudou drasticamente entre o início da radiodifusão e o final do século XX e sofreu alterações ainda maiores nestes primeiros anos do século XXI

Não é por serem ineficazes ou terem sido esvaziadas de sentido que as leis não devem ser questionadas ou examinadas nas suas motivações e ideologia subjacente. O mais espantoso nas leis que pretendem, de uma forma ou de outra, dificultar o contacto dos portugueses com música estrangeira, é que não caíram do céu: foram aprovadas na Assembleia da República por todo o espectro partidário nela representado: não só a esquerda patriótica, a esquerda anti-yankee e anti-capitalismo internacional e a direita conservadora e defensora dos valores da “pátria, família, autoridade” e do fado, como os partidos que se dizem liberais e que advogam um Estado mais “magro” e menos interventivo.

Muito se tem discutido a questão se deve haver “mais Estado ou “menos Estado”, mas trata-se de uma forma redutora de pôr o problema. Não é uma questão de mais ou menos, mas sim de onde e como. O Estado parece ser a entidade mais habilitada para providenciar saúde e educação a todos os cidadãos e para operar a Rede Nacional de Emergência e Segurança, áreas em que, curiosamente, o Estado tem menor ou menos eficaz presença do que devia, para contentamento e lucro crescente do sector privado. Se nestes três casos faz falta mais Estado, o que não faz falta nenhuma, no século XXI, é o Estado-portageiro, o Estado-obstáculo, o Estado que sonha em ditar os gostos musicais dos seus cidadãos e gerar receitas graças ao mero poder de fazer descer uma cancela – esse é um Estado atávico, inerte e extractivo, uma relíquia dos tempos medievais. Compreende-se que o Estado tenha hoje muito mais bocas para alimentar do que os seis + um filhos do nobre alemão acima mencionado e precise de inventar regularmente novas fontes de receitas, mas porquê encarniçar-se sobre quem faz e consome música?

E, todavia, não há governante que no seu discurso oficial não elogie a qualidade universal da música e a sua capacidade para aproximar povos e culturas. Se acreditam mesmo nisso, porque não a deixam circular livremente pelo mundo?

Ideias medievais no mundo empresarial

Mas o mais surpreendente é que as próprias empresas de media e entretenimento parecem ter também elas uma anacrónica pulsão para construir barreiras medievais no mundo do século XXI. Veja-se o caso dos códigos de região dos DVDs, que dividem o mundo em seis regiões e tornam impossível que um DVD codificado para uma região seja lida nas outras cinco (a não ser que se compre um leitor de DVDs para cada região ou um leitor multi-regiões). Talvez estes códigos de região fizessem algum sentido no mundo pré-internet de banda larga, permitindo aos produtores de conteúdos maximizar os lucros em função das datas diferenciadas de lançamento em cada região. Mas que sentido fazem no mundo de hoje em que tudo acontece quase em simultâneo e em que boa parte do público adulto deixou as salas de cinema e passou a ver séries na TV por cabo e em que a maioria do público jovem vê sobretudo os filmes e séries que são disponibilizados gratuitamente na internet, por vezes apenas alguns dias depois da estreia oficial?

A série Game of Thrones é dominada por um imaginário medieval, mas também nos gabinetes da indústria audio-visual há quem ainda esteja preso a conceitos da era das espadas e das armaduras

Ao menos, poderia esperar-se que, quando o formato Blu-ray foi introduzido, em 2006, houvesse, face às mudanças dramáticas nas formas de ver filmes e séries, o bom senso de acabar com este anacronismo – mas o melhor de que foram capazes as cabeças pensantes da indústria foi reduzir o número de regiões de seis para três.

Entretanto, os serviços de video on demand (por streaming ou download) tiveram um crescimento explosivo e, inevitavelmente, a queda das vendas de DVDs e Blu-rays acelerou: em 2017, no Reino Unido, as receitas do de video on demand ultrapassaram, pela primeira vez, as dos suportes físicos, cujas vendas registam uma queda de 17% face a 2016). Nos EUA, em 2016, as receitas da venda de DVDs e Blu-ray cairam 18% face a 2015, somando 5.490 milhões de dólares (4.560 milhões de euros), enquanto as subscrições de streaming subiram para 6.230 milhões de dólares (5.170 milhões de euros). Não há dúvida de que o futuro pertence à Netflix, à Amazon Video, à Hulu, à HBO Go e similares, de que o DVD e o Blu-ray se tornarão dentro de alguns anos tão obsoletos como a cassette VHS e de que o relacionamento dos consumidores com os conteúdos deixará de passar por “ter um filme”, dando lugar a “ter acesso a um filme” (ou a ver gratuitamente uma cópia de qualidade inferior fisgada da Internet). Mas enquanto o DVD e o Blu-ray não vão para o caixote do lixo da história, porque se obstinam os seus fabricantes em infernizar a vida dos consumidores que compram estes formatos com as suas barreiras entre regiões? Porque incluem os DVDs e Blu-rays um spot ameaçador alertando quem os adquiriu legalmente para as punições reservadas à duplicação de discos e à pirataria em geral, quando a maioria dos piratas e os prevaricadores há muito que deixou de comprar DVDs e Blu-rays?

A indústria audio-visual viu o tecto e três das quatro paredes da sua casa serem levadas pelo furacão digital, mas obstina-se em manter bem calafetada a porta na parede que resta.