Lembra-se dos polémicos artigos 11º e 13º (que se transformaram no 15º e 17º)? Estes artigos da diretiva europeia para os direitos de autor no mercado único digital foram aprovados em 2019, mas estiveram envolvidos uma chuva de críticas. Nesse ano, era o 17º (ex-13º), sobre filtragem de conteúdos na internet, que criava mais receios na opinião pública. Agora, é o artigo 15º, que incide sobre a partilha de conteúdos de órgãos de comunicação social em plataformas digitais. Porquê? Porque, em fevereiro, na Austrália, a aprovação de uma norma legal com o mesmo princípio levou o Facebook a bloquear as notícias nas redes sociais naquele país e o resultado dessa decisão foi caótico.
Por cá, não se sabe ainda qual vai ser o desfecho. O Facebook, ao contrário da Google, não respondeu a nenhuma questão do Observador sobre este assunto. E o Ministério da Cultura, que está atualmente responsável pela transposição da diretiva, garante apenas uma coisa: “O prazo para a transposição da diretiva vai ser cumprido”. Ou seja, até 7 de junho de 2021 teremos novidades sobre este assunto no país. Acontecerá em Portugal o que aconteceu na Austrália?
“O Facebook considera fazer em Portugal algo semelhante ao que fez na Austrália (cessar a partilha de hiperligações de notícias), caso a transposição da diretiva ponha a plataforma numa situação em que considere estar em desvantagem quanto aos acordos que vai ter de celebrar com órgãos/empresas de comunicação social?”, perguntou o Observador. A rede social, mesmo após insistência, optou por não se pronunciar.
A transposição da diretiva europeia dos direitos de autor para o território nacional envolve três componentes: 1) o do Ministério da Cultura, que tem a tutela deste tema e tem de apresentar uma proposta ao Governo para que seja criada uma lei nacional que recrie a diretiva; 2) o das empresas tecnológicas, como o Facebook ou a Google, que querem garantir o mínimo impacto desta nova lei no funcionamento das suas operações; 3) e o dos titulares de direitos, especificamente órgãos de comunicação social ou representantes de artistas, que querem uma lei nacional que garanta que recebam o quinhão que esta legislação lhes confere.
O que diz o artigo 15º da diretiva?
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“Artigo 15.º Proteção de publicações de imprensa no que diz respeito a utilizações em linha
1. Os Estados-Membros devem conferir aos editores de publicações de imprensa estabelecidos num Estado-Membro os direitos previstos no artigo 2.o e no artigo 3.o, n.o 2, da Diretiva 2001/29/CE relativos à utilização em linha das suas publicações de imprensa por prestadores de serviços da sociedade da informação.
Os direitos previstos no primeiro parágrafo não se aplicam à utilização privada e não comercial de publicações de imprensa por utilizadores individuais.
A proteção concedida ao abrigo do primeiro parágrafo não se aplica à utilização de hiperligações.
Os direitos previstos no primeiro parágrafo não se aplicam à utilização de termos isolados ou de excertos muito curtos de publicações de imprensa.
2. Os direitos previstos no n.o 1 não prejudicam os direitos conferidos pelo direito da União a autores e outros titulares de direitos, no que se refere às obras e outro material protegido que integram uma publicação de imprensa. Os direitos previstos no n.o 1 não podem ser invocados contra esses autores e outros titulares de direitos e, em particular, não podem privá-los do direito de exploração das suas obras e outro material protegido de forma independente da publicação de imprensa em que estão integrados.
Sempre que uma obra ou outro material protegido forem integrados numa publicação de imprensa com base numa licença não exclusiva, os direitos previstos no n.o 1 não podem ser invocados para proibir a sua utilização por outros utilizadores autorizados. Os direitos previstos no n.o 1 não podem ser invocados para proibir a utilização de obras ou outras prestações em relação às quais a proteção tenha caducado.
3. Os artigos 5.o a 8.o da Diretiva 2001/29/CE, a Diretiva 2012/28/UE e a Diretiva (UE) 2017/1564 do Parlamento Europeu e do Conselho ( 19) são aplicáveis, com as necessárias adaptações, no respeitante aos direitos previstos no n.o 1 do presente artigo.
4. Os direitos previstos no n.o 1 caducam dois anos após a publicação em publicação de imprensa. Esse prazo é calculado a partir do dia 1 de janeiro do ano seguinte à data em que essa publicação de imprensa for publicada.
O n.o 1 não se aplica às publicações de imprensa publicadas pela primeira vez antes de 6 de junho de 2019.
5. Os Estados-Membros devem prever que os autores de obras que sejam integradas numa publicação de imprensa recebam uma parte adequada das receitas que os editores de imprensa recebem pela utilização das suas publicações de imprensa por prestadores de serviços da sociedade da informação.”
Como explica ao Observador o advogado Manuel Lopes Rocha, consultor na sociedade PLMJ e especialista em propriedade intelectual, marcas e patentes, “o artigo 15º cria um novo direito conexo do direito de autor, que permite aos editores de publicações de imprensa pedir uma compensação pela utilização dos seus conteúdos, em linha”. Ou seja, a transposição desta lei não toca só na questão do artigo 17º e na forma como os artistas, ou representantes destes, vão poder exigir dinheiro às tecnológicas como a Google e o Facebook. É também como os jornais o vão poder fazer.
Até agora, apesar de haver acordos com órgãos de comunicação social, estas plataforma têm tido nos seus serviços, praticamente sem restrições, títulos e hiperligações de sites de jornais online, o que também gera tráfego online às publicações. Contudo, o acesso direto aos sites — ou seja, sem passar pelos sites da Google e Facebook — tem sido prejudicado.
O que quer dizer o artigo 15º da diretiva?
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Utilizamos a explicação do jurista Manuel Lopes Rocha: “O artigo 15º cria um novo direito conexo do direito de autor que permite aos editores de publicações de imprensa pedir uma compensação pela utilização dos seus conteúdos, em linha. Dessa compensação, dessa receita, uma parte irá para os autores individuais dessas obras assim utilizadas, incluindo, naturalmente, os jornalistas. É, pois, uma remuneração, não é um direito de autor novo. Esse já o tinham. Quem paga? Os prestadores de serviços da sociedade da informação. Trata-se de um direito inteiramente digital, com um prazo de duração muito curto: dois anos”
Em que ponto está o Ministério da Cultura relativamente a esta diretiva? Desde que se levantaram as principais questões sobre esta legislação em 2019, o ministério liderado por Graça Fonseca revelou, após alguma insistência, que apoiou a criação da legislação europeia. “Não é um regime perfeito”, assumia a ministra, em 2019, antes de se conhecer o texto final.
Dois anos depois, esta entidade não avança muito mais sobre o que foi feito após a aprovação. “O que podemos dizer é que o prazo para a transposição da directiva vai ser cumprido, sendo que está já em fase de conclusão o draft [documento provisório] a submeter ao Governo, dando início ao processo legislativo a que se seguirá consulta pública”, respondeu ao Observador fonte oficial do ministério. O Observador também tentou perceber se estariam a decorrer conversações com o Facebook ou a Google, as empresas que serão mais afetadas por esta lei, mas não obteve resposta.
Ao Observador, o Facebook também não deu indicação sobre esta questão. Já a Google afirma estar em contacto com o Ministério da Cultura sobre a transposição da legislação europeia. Esta empresa esclarece ainda que qualquer legislação ou política pública não se trata apenas em ter apenas uma reunião, mas sim criar um diálogo entre as partes envolvidas (o Governo, outras empresas, entidades, organizações etc.).
“Enquanto parte do processo normal de consulta, a Google, tal como outras empresas e organizações, partilhou com o Ministério da Cultura a nossa visão sobre a transposição da legislação europeia“. Além disso, a empresa também avança que tem continuado “a trabalhar com os publishers em Portugal e no resto do mundo”, disse um porta-voz da Google. E continua: “Como temos vindo a fazer nos últimos anos, incluindo através da disponibilização de financiamento e desenvolvimento de produtos, o que nos torna um dos maiores apoiantes do mundo ao jornalismo”.
Esta questão não surge agora só porque vários governos internacionais, vendo as medidas que o Facebook tomou na Austrália, assumiram uma posição contra a empresa liderada e fundada por Mark Zuckerberg. A nível nacional, a cooperativa GDA — Gestão dos Direitos dos Artistas manifestou-se publicamente sobre este assunto e disse, na semana passada, que o Governo não fez ainda “quase nada”. Na terça-feira, e após as críticas que fizeram, os responsáveis desta associação reuniram-se com o Ministério da Cultura.
Pedro Wallenstein, presidente da GDA, adiantou ao Observador que a “preocupação da reunião foi perceber se o objetivo [do Ministério] era transpor a diretiva a tempo”. Isto porque, em 2020 houve uma “auscultação às várias entidades”, mas depois “não se ouviu falar de mais nada”. Quanto a isto, “houve várias explicações”, refere. “Dizem que precisam de coordenar a proposta que o Governo apresentará com outros ministérios, especificamente o da Economia e o da Ciência, Tecnologia e Ensino Superior”, continua.
Além disso, Wallenstein disse que lhe foi explicado também o seguinte: “Há alguns problema ao nível da diretiva da Europa, a Polónia apresentou queixa relativamente a algumas normas da diretiva”. Adicionalmente, também “há um conjunto de princípios, mas há uma margem em que os Estados podem ir mais além, e é isso que está a ser equacionado”, adianta.
GDA quer garantia de pagamento aos artistas em transposição de diretiva dos direitos de autor
Com isto, o líder da GDA contradiz a afirmação do Governo: “Para 7 de junho… Está a parecer-me curto cumprir o prazo e ainda ter de ouvir os outros ministérios”. “Não nos quiseram dar um prazo muito concreto [para a apresentação da proposta]”, justifica. “Dentro de algumas semanas haverá um primeiro draft de proposta e dar-se-á início à consulta pública”, terão estimado a Wallenstein. Contudo, para este representante de artistas, mesmo assim, “mais vale não fazer uma coisa à pressa”. “Preferimos que seja uma boa transposição, do que uma rápida transposição”. assume.
O que é que acontece se Portugal não cumprir o prazo? E porque é que esta lei é tão importante?
Até 7 de junho, Portugal tem de transpor a diretiva para criar uma lei nacional, sob pena de um processo por ação de incumprimento no Tribunal de Justiça da União Europeia. Como explica Manuel Lopes Rocha, se não o fizer, “a 8 de junho a Comissão não vai estar a processar, de imediato, os Estados-membros. Não há aqui automatismo”. E acrescenta: “Estes assuntos são muito delicados, por isso a Comissão ponderará bem, tudo dependerá de como estarão as transposições nos outros Estados-membros”, continua.
Quanto a este último ponto não é preciso ir muito longe e basta olhar para Espanha. Como contou o El País, o governo espanhol ainda está a falar com os principais grupos de comunicação sobre a transposição da diretiva. O objetivo é o mesmo: encontrar uma forma que funcione para a lei que vai ser criada ponha, sem os excessos que ocorrem na Austrália, os órgãos de comunicação social a discutir com as grandes plataformas tecnológicas. Convém lembrar que Espanha também não é alheia a conflitos com estas empresas. Desde 2014 que o serviço Google News não está disponível no país.
Vemos com isto a importância que esta transposição vai ter não só no ordenamento jurídico português como na forma como podemos continuar a utilizar a internet. Aliás, Manuel Lopes Rocha afasta em Portugal o cenário caótico que aconteceu na Austrália, com o Facebook a proibir a partilha de notícias. “A diretiva contém um convite implícito, um apelo a que as partes se entendam. Um pouco por todo o lado os titulares de direitos estão a entender-se com os prestadores de serviços na Net, não tem sido o apocalipse que se previa em alguns meios”, explica.
Sempre o dissemos, de resto. Pelo contrário, a diretiva foi feita para evitar tais conflitos, pela via dos acordos. Esses conflitos estão, aliás, a ser resolvidos, como esse o foi, um pouco por todo o lado”, diz Manuel Lopes Rocha.
No caso australiano, apesar de até páginas governamentais no Facebook terem deixado de estar acessíveis durante cerca de uma semana devido ao bloqueio imposto pela empresa, chegou-se a um acordo.Para já, ainda é provisório, mas foi o suficiente para os australianos continuarem a conhecer a internet como conhecemos. Quanto a Portugal, é preciso ver o que vai acontecer até 7 de junho.