Declaração ao país do Presidente da República

No dia em que foi aprovado o decreto presidencial que impõe o quarto estado de emergência em 2020

Portugueses, acabei de assinar o decreto relativo ao segundo estado de emergência no decurso da pandemia que dura há oito meses e que sabemos poder prolongar-se por alguns mais.”

Marcelo Rebelo de Sousa diz que este é um decreto relativo ao segundo estado de emergência durante a pandemia, quando na verdade este é já quarto decreto. É certo que, como foram contínuos, o segundo e terceiro decretos da primavera foram “renovações” do estado de emergência, mas na prática este é já o quarto. O Presidente da República — sempre atento à forma como comunica com os portugueses — quer assim afastar o mais que pode a ideia de este ser um desgaste contínuo e vincar o corte com os três anteriores períodos de emergência. Como quem diz aos portugueses: é só a segunda vez que vos pedimos isto. Apesar disso dá um toque de que vem aí uma prova de endurance: depois de o primeiro-ministro ter dito que o estado de emergência pode durar até ao fim da pandemia, Marcelo vem concordar que a situação de pandemia pode “prolongar-se por alguns” meses mais.

[Pandemia] que conheceu neste último mês e meio uma evolução negativa, muito rápida, que importa conter, aprendendo também com as lições daquilo que em diversos domínios não correu bem no passado.”

O Presidente da República explica que este era mesmo um mal necessário, já que a pandemia no último mês e meio cresceu de uma forma inesperada e muito rápida. Logo, era inevitável agir com a arma mais forte que a Constituição lhe dá. Na mesma frase, embora não tenha utilizado expressões como ser “o responsável supremo” por tudo o que correu mal na gestão da pandemia, como tinha feito em entrevista à RTP1, Marcelo Rebelo de Sousa volta a admitir que erros, em particular na vigência de anteriores estados de emergência.

Três breves palavras se impõem neste momento: Um primeira palavra para salientar a ampla convergência entre Presidente da República, Assembleia da República, Governo, partidos e parceiros sociais e em contexto mais difícil do que maio e abril, uma maioria parlamentar de 84% favorável ao estado de emergência e de 94% que não se lhe opôs. Retrato da vontade dos portugueses que sentem que devem continuar unidos nos momentos essenciais.”

O consenso parlamentar é agora menor do que nos três primeiros estados de emergência. Marcelo ignorou-o nesta declaração, mas o consenso tem vindo a diminuir progressivamente. No primeiro estado de emergência votaram a favor seis partidos (PS, PSD, BE, PAN, CDS e CH) e ninguém votou contra; no segundo estado de emergência, cinco partidos votaram a favor (PS, PSD, BE, CDS e PAN) e só a IL votou contra; no terceiro estado de emergência voltaram a ser cinco a votar a favor, mas o PCP, IL e Joacine Katar-Moreira votaram mesmo contra. Ora, neste quarto estado de emergência só três partidos (PS, PSD e CDS) votaram a favor (juntando-se a deputada não-inscrita Cristina Rodrigues), mas mesmo os centristas foram muito críticos do documento e do próprio Presidente (que acusaram de ser Dupont e Dupond com Costa). Perante isto, Marcelo, que tinha pedido um amplo consenso parlamentar, viu-se forçado a voltar a destacar este “amplo consenso”. Neste exercício de prova de consenso,  falou numa “maioria parlamentar de 84% do Parlamento”, sabendo que tem pouco mais do que o “centrão” a votar a favor. A isso somou ainda as abstenções como votos que não são contra o estado de emergência. Objetivo: mascarar que o consenso é cada vez menor. Além disso, o Presidente arriscou dizer que os partidos espelharam a vontade dos portugueses. É certo que uma sondagem da Aximage no final de outubro revelou que oito em cada dez portugueses defendem o recolher obrigatório, mas isso são contas de outro rosário, que nada têm a ver com a aprovação parlamentar desta sexta-feira.

Uma segunda palavra para sublinhar a preocupação deste estado de emergência muito limitado, sem confinamentos compulsivos, largamente preventivo. Tudo na contenção do crescimento da pandemia. Embora reforça a resposta das estruturas de saúde. Permite alargar o rastreio, o despiste e o contacto com centenas de milhares de concidadãos, nomeadamente recorrendo às nossas excepcionais forças armadas e de segurança. Abre a porta novas medidas como a de limitação de circulação em certas horas e dias em municípios de mais alto risco.”

O Presidente insiste na tese do “estado de emergência muito limitado” para destacar que este é uma espécie de estado de emergência light, sem as restrições que existiram entre março e maio. Marcelo acrescentou mesmo que este é um estado de emergência sem “confinamentos compulsivos”, mas na verdade o decreto que elaborou permite que o Governo torne medidas bem mais restritivas que as já anunciadas e este sábado há já novo conselho de ministros para tomar novas medidas. Não é preciso ir muito longe porque o próprio Presidente chama a atenção, logo de seguida, para uma medida nada light: o recolhimento obrigatório.

[O estado de emergência] Apela a maior articulação, preferencialmente por acordo e sempre com justa compensação entre o Serviço Nacional de Saúde e os setores privado, social e cooperativo perante necessidades aumentadas num futuro próximo.”

O Presidente não só abriu as portas à requisição civil como as escancarou, já que definiu que podem ser utilizados pelas autoridades públicas competentes “os recursos, meios e estabelecimentos de prestação de cuidados de saúde integrados nos setores privado, social e cooperativo”. É certo que o disse, como esta sexta-feira à noite, que esta requisição será “preferencialmente por acordo”, mas o preferencialmente significa — como referiu a líder do Bloco de Esquerda, Catarina Martins, no debate do estado de emergência — que pode ocorrer essa requisição sem acordo. Há também uma resposta indireta de Marcelo a uma declaração de André Ventura durante esse debate. O líder do Chega disse no Parlamento que o estado de emergência é uma encapotada “expropriação aos privados em que se recrutam, sem pagar, empresas, hospitais e empresários, que veem a sua vida chocada pelo Estado, num estado de destruição socialista”. O que está no decreto não permite fazê-lo “sem pagar”, como diz Ventura, e até obriga — como esclarece Marcelo — que essa requisição seja feita “sempre com justa compensação”. Por outras palavras, pago a um preço justo e não expropriações à moda do PREC, como sugere Ventura.

Um estado de emergência que será reavaliado no final de novembro na sua existência, no seu âmbito e no seu conteúdo. Olhando para as exigências da pandemia e com a garantia constitucional permanente, essa reavaliação depender além de parecer do Governo, órgão encarregado da gestão diária da pandemia, da iniciativa e da decisão do Presidente da República e de autorização da Assembleia da República, uma e outra eleitas democraticamente pelo povo.

O decreto que agora se aprova só vale até 23 de novembro. Depois disso é provável que continue o estado de emergência, mas Marcelo avisa já que pode mudar o conteúdo do mesmo. Ou seja: os direitos suspensos podem ser diferentes. E as execeções também. O PAN disse no debate do estado de emergência desta sexta-feira que o Presidente não consagrou no decreto, como tinha garantido em audiência com o partido animalista, direitos políticos. O que Marcelo quer sugerir é que, mais para a frente — em particular nos estados de emergência que possam abranger o período do Congresso do PCP e a campanha das presidenciais — podem ser acrescentados novos elementos. Incluindo essas exceções que, no passado, já foram utilizadas para garantir que existia celebrações no 1º de maio.

Uma terceira e última palavra, de compromisso e confiança: o compromisso de se acelerar com trabalho e humildade o investimento na saúde e, em particular, os seus heróicos profissionais agora também pensando no Orçamento do Estado para 2021. A confiança na nossa capacidade para juntos tudo fazermos para atenuar o custo da pandemia na vida e saúde de doentes Covid, tal como de doentes não Covid. Todos eles atingidos. Porque uma coisa é certa: o objetivo visado é tentar garantir a todos eles, Covid e não-Covid, os legítimos direitos à vida e à saúde.

O Governo já tinha uma tarefa difícil no debate do Orçamento na especialidade (de convencer o PCP a não mudar de voto, para viabilizar o documento) e o Presidente da República ainda lhe junta mais pressão. O Presidente reserva lugar na especialidade com o seu magistério-de-muita-influência para exigir que se acelere o investimento na saúde, em particular nos profissionais que estão na linha da frente dos hospitais. E não é para mais tarde, é mesmo para agora. Marcelo diz com as letras todas e convida o Governo a lê-lo nos lábios: “Também-pensando-no-Orçamento-do-Estado-para-2021”.

Um desafio não acaba neste mês de novembro, nem em dezembro, nem muito provavelmente nos primeiros meses de 2021, mas que tem em novembro neste mês, de novo um teste essencial porque as semanas que se seguem têm de ser de esforço coletivo de contenção da subida inquietante dos números de internados em geral e nos cuidados intensivos em especial por forma a evitarmos todos um dezembro agravado e com isso restrições mais drásticas para todos nós indesejáveis. Novembro é pois, mais um teste à nossa contenção, serenidade, resistência, que vamos viver solidários e determinados, tal como solidários e determinados vivemos na primavera no arranque da pandemia e no verão a situação mais aguda na Grande Lisboa. Conta o Presidente da República com cada uma e cada um dos portugueses para este esforço acrescido. Contam os portugueses com o Presidente que com eles está neste segundo estado de emergência, tal como esteve no primeiro. Neste teste de novembro, como tem estado em todos os demais. Agora e sempre.

Um sweet november que, com serenidade, mate ou moa a pandemia. É isso que Marcelo pede, em mais um apelo ao bom comportamento dos portugueses perante a pandemia. O Presidente volta a enaltecer o povo e o esforço coletivo que é necessário para que os hospitais não entrem em rutura total. Se na primavera o Presidente pediu um bom abril para se ganhar a liberdade em maio, agora pede um bom novembro para ganhar dezembro. Que não é um mês qualquer: é o mês do Natal. Mas paralelamente também deixa um sério aviso de que a malha pode apertar mais e o estado de emergência “limitado” passar a ser mais alargado. Se agora não forem tomadas medidas, avisa Marcelo, pode vir aí um “dezembro agravado” e “restrições mais drásticas” que ninguém quer. Mais uma vez: novembro para ganhar dezembro.