Discurso de Marcelo Rebelo de Sousa

na declaração ao país em que anuncia o fim do estado de emergência

Ouvidos hoje de manhã os especialistas, à tarde os partidos com assento na Assembleia da República e, naturalmente, ao longo destas semanas o Governo, tudo isto e ponderado decidi não renovar o estado de emergência.”

Marcelo Rebelo de Sousa quis comprometer todos na decisão que tomou. A decisão final de pôr um término ao estado de emergência é do Presidente da República, mas este não abdica de corresponsabilizar, por um lado, os especialistas — em particular os que participam em reuniões do Infarmed — e, por outro, o Governo de António Costa e todos os partidos com assento parlamentar. Mesmo que não tenham sido audições formais, Marcelo Rebelo de Sousa ouviu os nove partidos com representação parlamentar e vem agora garantir que todos lhe deram ‘luz verde’ para colocar um ponto final no estado de emergência. Uma unanimidade que não se via desde que todos concordaram em aliviar as medidas restritivas no período natalício, um consenso que acabaria por se revelar fatal e responsável por uma das piores fases da pandemia de Covid-19.

Nesta decisão pesou a estabilização e até a descida do número médio de mortes, de internados em enfermaria e em cuidados intensivos, assim como a redução do R(t), indicador de contágio, bem como a estabilização do número de infetados. Ou seja: a incidência da pandemia. Pesou também o avanço em testes e ainda mais importante, em vacinação, que saúdo e incentivo”.

O Presidente da República sempre fez questão de se apoiar na ciência para tomar decisões. A frieza dos números foi quase sempre a base de Marcelo Rebelo de Sousa para tomar decisões e agora volta a puxar dos dados epidemiológicos, que são dos melhores que o país registou desde o final da parte final verão passado. Segunda-feira foi o primeiro dia sem mortes por Covid-19 desde 3 de agosto de 2020, esta terça-feira voltaram a ser registadas mortes (5), mas o número de casos mantém-se controlado (353), o número de doentes hospitalizados continua a cair (346, menos 19 do que na segunda-feira) e estão 86 pessoas em Unidades de Cuidados Intensivos — menos que no dia anterior. Paralelamente, Marcelo volta a reforçar a importância da vacinação para o avanço no desconfinamento, que faz questão de dizer que saúda e incentiva.

Pesou o já terem decorrido mais de um mês sobre a Páscoa e a primeira abertura das escolas e mais de três semanas sobre a segunda abertura das escolas.

A decisão de abrir as escolas e de avançar com o desconfinamento foi difícil. Marcelo Rebelo de Sousa insistiu na altura que qualquer um dos níveis de ensino só devia abrir depois da Páscoa, mas o Governo de António Costa acabou por abrir o primeiro ciclo antes da época pascal. Ao mesmo tempo, muitos chegaram a temer (incluindo alguns especialistas)  que a reabertura das escolas pós-Páscoa tivesse um efeito de subida dos números da pandemia similar ao que aconteceu no Natal. Não aconteceu. Mesmo que não tenha estado totalmente de acordo com o Governo e tenha pressionado um desconfinar a conta-gotas, Marcelo acabou por apoiar publicamente (em privado nem sempre terá sido assim) o plano do Governo. Agora, não hesita em registar a inversão da Lei de Murphy: o que podia correr bem, correu bem.

Pesou ainda, o que significaria o reconhecimento do consistente e disciplinado sacrifício de milhões de portugueses desde novembro e mais intensamente desde janeiro e também como sinal de esperança mobilizadora para o muito que nos espera a todos, na vida e na saúde, na economia e na sociedade.

O Presidente da República apresenta o fim do plano como uma espécie de prémio pela resiliência dos portugueses, que aguentam confinamentos mais ou menos exigentes desde o início da segunda vaga, em novembro. Ao mesmo tempo, Marcelo Rebelo de Sousa admite que o fim do estado de emergência também pretende ter um efeito motivador na crise económica e social que os portugueses vão ter de enfrentar nos próximos meses e anos, que pode também ser de saúde — tanto para os que sofrem de sequelas da Covid-19; como para todos, que podem estar vulneráveis a uma nova deriva do vírus.

Portugueses é bom que fique, no entanto, claro o que têm dito os especialistas neste domínio, que passámos uma fase que era ver ao fundo do túnel para ter uma luminosidade crescente no nosso dia a dia. Não estamos, no entanto, numa época livre de Covid, livre de vírus. Podemos infetar os nossos contactos e permitir que a doença continue a transmitir-se. Enfrentamos ademais o risco de novas variantes menos controláveis pela vacina à medida que se multiplicam os contactos e as infeções.

Marcelo Rebelo de Sousa quer dizer neste ponto que ‘isto ainda não acabou’ e volta a tirar os especialistas do bolso para justificar as cautelas que pede a todos. O Presidente avisa que Portugal ainda não é um país ‘free Covid‘ e que isso é uma realidade que pode não existir a curto-médio prazo pelo perigo que representam as novas variantes. Na reunião do Infarmed ficou claro que as novas variantes são uma preocupação muito presente entre os especialistas: a britânica já representa 90% dos casos e a indiana, mais recente, pode estar a iniciar uma transmissão comunitária. Não sabe que mais variantes poderão aparecer e se as vacinas serão eficazes perante essas mutações do vírus, daí que seja necessária prudência.

Tudo isto justifica uma preocupação preventiva de todos nós. Cada passo é um passo baseado na confiança coletiva. E temos de poder contar nas palavras de uma especialista com cada um de nós. Este é, aliás, o momento para agradecer aos especialistas, nomeadamente aos epidemiologistas e aos cultores da saúde pública que juntaram a sua dedicação a todo um incansável pessoal de saúde. Os mais heróis dos heróis desta pandemia.

Se os números não indicam preocupações de maior, Marcelo Rebelo de Sousa não abdica de inventar um novo conceito: “Preocupação preventiva”. O Presidente pede que os portugueses não baixem a guarda, porque ainda não é tempo para isso. No entanto, não esconde nas entrelinhas que o pior já passou, já que diz ser este “o momento” para agradecer aos especialistas. E — como fez em todas as declarações ao país — deixou uma palavra especial aos “heróis dos heróis”: os profissionais de saúde.

O passo por mim hoje dado é baseado na confiança, numa confiança que tem de ser observada por cada um de nós e por isso mesmo, sem estado de emergência, como tem feito e bem o Governo, e o senhor primeiro-ministro tornado claro nas suas intervenções, há que manter ou adotar todas as medidas consideradas indispensáveis para impedir recuos, retrocessos, regressos a um passado que não desejamos.”

Marcelo não quer que o estado de emergência seja sinónimo de relaxamento, nem que se deixe de tomar as medidas necessários para a pandemia continuar controlada. Isto é um sinal que, depois da emergência, não pode vir um vazio. Sugere que se seguirá o estado de calamidade, que — depois da emergência — é a situação na lei que permite ao Governo impor mais limitações para um controlo da situação pandémica. Dá também carta branca ao Governo para tomar as medidas que considerar necessárias dentro dos limites dessa mesma lei. O Conselho de Ministros que definirá o que se passará depois de 3 de maio é na próxima quinta-feira e o Governo parte com a bênção de Belém. Marcelo e Costa mostram mais uma vez estar alinhados (em “solidariedade estratégica”, como estiveram quase sempre) na gestão da pandemia.

Eu acrescento que, se necessário for, não hesitarei em avançar com novo estado de emergência se o presente passo não deparar ou não poder deparar com a resposta baseada na confiança essencial para todos nós.”

O primeiro-ministro popularizou em tempos a palavra rebuço para dizer que voltaria atrás no desconfinamento “sem rebuço” (portanto, sem reservas) sempre que necessário. Marcelo Rebelo de Sousa também deixa esse aviso bem claro: se a situação voltar a piorar, lá estará do alto de primeira figura da nação para utilizar aquela que é a última arma de controlo do Estado sobre os cidadãos, que suspende diretos constitucionais: o estado de emergência.

Portugueses, estou-vos grato por este ano e dois meses de corajosa e disciplinada resistência. Sei, que cada abertura implica mais responsabilidade, e que os tempos tempos próximos serão ainda muito exigentes. Eu acredito na vossa sensatez e solidariedade numa luta que é de todos e nessa luta temos de poder contar com cada um de nós. Digo mais, cada português conta e vai contar porque cada português sabe que é Portugal.

É a parte mais poética da intervenção (“cada português sabe que é Portugal”), mas também encaixa no habitual discurso motivador do Presidente da República. Marcelo não disse desta vez que os portugueses são os melhores do mundo, nem foi buscar os nove séculos de história, mas elogiou a forma como os portugueses enfrentaram todo o período da pandemia. Já lá vão 14 meses.