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Centro de testes para o SARS-CoV-2 na Tunísia que registou até ao momento cerca de três mil casos e 71 mortes
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Centro de testes para o SARS-CoV-2 na Tunísia que registou até ao momento cerca de três mil casos e 71 mortes

Anadolu Agency via Getty Images

Centro de testes para o SARS-CoV-2 na Tunísia que registou até ao momento cerca de três mil casos e 71 mortes

Anadolu Agency via Getty Images

O mistério africano: a pandemia avança, mas mata (muito) menos do que no resto do mundo. Porquê?

1,2 milhões de infetados em África podem ser só a ponta do iceberg. Mas a taxa de letalidade parece mais baixa do que no resto do mundo. Idade, infeções anteriores e modo de vida podem ser a resposta.

Quando a infeção pelo novo coronavírus saltou da Ásia e se transformou em pandemia, a ideia de uma tragédia em África parecia quase de senso comum: em países subdesenvolvidos ou em desenvolvimento, com condições de vida mais precárias, sistemas de saúde frágeis e muitas populações vulneráveis a doenças, por causa da fome e da subnutrição, antecipava-se que o impacto da Covid-19 viesse a ser devastador.

Os números dos últimos meses não contrariam exatamente essa ideia — sobretudo tendo em conta as dúvidas quanto à fiabilidade das contagens de novos casos —, mas mostram uma realidade intrigante: em África, a taxa de letalidade parece, afinal, ser menor (e, em alguns casos, muito menor) do que no resto do mundo.

Algumas comparações são particularmente impressionantes: os resultados provisórios de um estudo concluído em julho pelo Instituto de Investigação Médica do Quénia permitem estimar que um em cada 20 quenianos com idades entre os 15 e os 64 anos tem anticorpos para o SARS-CoV-2, ou seja, já esteve em contacto com o vírus. Segundo a Science Magazine, seriam cerca de 1,6 milhões de pessoas, o que colocaria o país no mesmo ponto em que estava Espanha em meados de maio, quando já tinha ultrapassado o pico da infeção. Mas com uma diferença essencial: nessa altura, Espanha contava já com 27 mil mortes; no Quénia, quando o estudo acabou, tinham morrido apenas 100.

É certo que é preciso contar com as mortes em locais mais isolados, que não chegam a entrar nos registos, mas a tendência parece repetir-se em vários países. E, a ser assim, o que explica que em África se morra menos de Covid-19? 

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Idade, modo de vida e mais defesas?

Desde que se percebeu que os números no continente africano estavam a crescer mais lentamente do que esperado, foram sendo avançadas várias hipóteses para os cenários observados, incluindo que a exposição solar e a produção de vitamina D podiam ajudar na prevenção e combate da doença. De facto, alguns estudos mostraram que os doentes mais graves tinham carência de vitamina D, mas até ao momento não foi possível demonstrar que relação é que isso tem com a evolução da doença. Assim como demonstrar que aumentar os níveis da vitamina traz benefícios. Tendo em conta os dados disponíveis, os especialistas não recomendam a suplementação como prevenção ou tratamento da Covid-19.

O clima. Os vírus respiratórios transmitidos por aerossóis, como os vírus da gripe ou os coronavírus SARS e MERS, têm mais dificuldade em transmitir-se no verão ou com temperaturas quentes. Como os países africanos apresentam, normalmente, temperaturas moderadas a altas durante o inverno, acreditava-se que a temperatura ambiente seria determinante para a existência de poucos casos registados, como aliás tinha acontecido com os surtos dos vírus referidos.

Mas olhar para países como o Brasil ou a Índia, que estão em segundo e terceiro lugar em número de infetados e de mortes, faz perceber que só os termómetros a rondar os 20 a 25º C não chegam para travar a pandemia.

Calor de verão não vai reduzir transmissão do novo coronavírus, diz primeiro estudo fora da China

A imunidade. O facto de a população africana estar exposta a muitos outros tipos de coronavírus — não só os que provocam constipações, como na Europa, mas também os que vivem no gado, morcegos e outros animais selvagens — pode significar que tenham algum nível de imunidade contra o SARS-CoV-2. Os próprios anticorpos contra o SARS mostram algum efeito nas infeções com o novo coronavírus. Isto não quer dizer que as pessoas fiquem automaticamente protegidas, mas os anticorpos são capazes de reconhecer algumas partes do vírus e desencadear uma resposta imunitária mais diferenciada.

Os investigadores ouvidos pela Science Magazine arriscam ainda outras possibilidades: que a exposição regular a outras doenças tenha preparado o sistema imunitário para responder rapidamente na presença de novos agentes patogénicos ou que haja fatores genéticos envolvidos.

"Temos uma população jovem, a nossa esperança média de vida é menor do que em qualquer outro lugar no mundo. Depois, a prevalência de comorbilidades é muito menor em África do que na Europa ou Estados Unidos.”
Mary Stephen, técnica do gabinete regional da Organização Mundial de Saúde para África

A idade. Tal como ficou claro numa fase bastante precoce da pandemia, os doentes com maior risco de desenvolverem uma doença grave ou morrem com Covid-19 são os idosos e as pessoas com comorbilidades, que muitas vezes também estão associadas à idade avançada. E isso não é propriamente o pior dos problemas em África. “Temos uma população jovem, a nossa esperança média de vida é menor do que em qualquer outro lugar no mundo”, diz Mary Stephen. “Depois, a prevalência de comorbilidades — como diabetes, hipertensão ou doenças cardiovasculares — é muito menor em África do que na Europa ou Estados Unidos.” Joachim Osur compara mesmo os africanos com os afro-americanos que têm muito mais problemas de obesidade, diabetes e tensão alta, por exemplo.

A comparação de sete estudos diferentes, que envolveram mais de 1.500 doentes, todos na China, mostrou, ainda no início de março, que a hipertensão era o problema mais comum entre as doenças pré-existentes nos doentes com Covid-19 (21,1% dos doentes). Depois, seguiam-se a diabetes (9,7%), doenças cardiovasculares (8,4%) e doenças respiratórias (1,5%), segundo o artigo publicado na revista científica International Journal of Infectious Diseases. As doenças crónicas, tal como as infeções, produzem inflamação generalizada no organismo e diminuem a capacidade de resposta do sistema imune, o que justifica que estes doentes tenham sintomas mais graves.

Como as doenças crónicas (e o acumular de várias) são mais frequentes com o avançar da idade, os idosos acabam por estar sujeitos a um maior risco de doença grave. A idade média em África (inferior a 20 anos), quando comparada com a da Europa (acima de 43 anos), e a baixa prevalência de doenças crónicas e comorbilidades também explica que existam poucas estruturas de apoio a idosos ou de cuidados continuados, refere o jornal canadiano The Globe and Mail. No Canadá, como na Europa, os lares são uma das principais fontes de contágio e de registo de mortes.

Controlo de temperatura à chega ao aeroporto de Kinshasa, na República Democrática do Congo, uma estratégia que muitos países já tinham implementado na presença de surtos de ébola

ARSENE MPIANA/AFP via Getty Images

Densidade populacional. Um dos fatores que não pode ser descartado, especialmente quando o uso de máscara e o distanciamento físico estão entre as medidas mais importantes na prevenção do vírus, é que em zonas mais densamente povoadas o risco de transmissão do vírus (de qualquer vírus respiratório) é maior. E a taxa de letalidade também é maior em áreas com maior densidade populacional.

Itália, por exemplo, tem 206 pessoas por quilómetro quadrado e uma taxa de letalidade de 13,4% de todos os casos confirmados, segundo dados do Worldometer. Já a África do Sul, com 49 pessoas por quilómetro quadrado, tem uma taxa de letalidade de 2,2% e o Egipto tem 103 pessoas por quilómetro quadrado e uma taxa de letalidade  de 5,4% — sendo que estes são os dois países africanos com o maior número de mortos. Em África, os surtos de Covid-19 estão concentrados principalmente nos grandes centros urbanos — onde a frequência de doenças crónicas, como a diabetes, é maior.

Claro que o facto de os países africanos terem fechado as fronteiras logo no início da pandemia e imposto regras de confinamento ajudou na contenção do vírus. Durante esse período, os hospitais preparam-se o melhor que podiam, os médicos aprenderam quais as melhores formas de tratamento em uso na Europa e América do Norte e os centros de diagnóstico alargaram a capacidade de testar para o novo coronavírus. “Os países de África saíram-se muito bem de acordo com as capacidades que tinham”, diz ao Observador Mary Stephen, técnica do gabinete regional da Organização Mundial de Saúde para África. “Conseguiram, à sua maneira, diminuir a propagação do vírus.”

Confinamento aumenta fome e pobreza

De todos os países no continente africano, a África do Sul é aquele que inspira, simultaneamente, mais e menos preocupações. Por um lado, o país sozinho já teve mais de 60% dos infetados com SARS-CoV-2 em África e é o quinto país com mais casos no mundo — ainda que a curva agora seja descendente. “Felizmente é um dos países com um sistema de saúde mais robusto, porque se este tipo de surto [com tantos casos] tivesse acontecido noutro país, não tenho a certeza que a situação tivesse sido tão bem gerida”, afirma Mary Stephen, via telefone, a partir da República do Congo.

Ainda que o número diário de casos na África do Sul tenha diminuído e que o governo tenha levantado mais algumas das medidas restritivas impostas em março — incluindo a venda de tabaco e de álcool —, a população está a “sofrer imenso com a falta de trabalho” e nas últimas semanas têm havido “imensos protestos”, com “carros queimados e pneus a arder no meio da estrada”, conta ao Observador Ana, uma portuguesa a viver a 40 quilómetros da Cidade do Cabo. “Há mais crianças a pedir nos semáforos, mais sem abrigo a viver por baixo da ponte”, diz, descrevendo uma situação que a pandemia só veio agravar.

Na África do Sul, em Angola e em vários outros países africanos, muitas pessoas trabalham durante o dia para terem o que comer à noite. “O povo precisa de sobreviver”, diz Júlio, que trabalha numa empresa de construção civil em Angola. O governo angolano tentou restringir a atividade dos vendedores ambulantes e impôs uma cerca sanitária em Luanda que dura desde março. “Mas pouco ou nada notámos de diferente nos engarrafamentos ou na quantidade de pessoas aglomeradas nas filas para os transportes públicos”, diz o português ao Observador.

Covid-19: África está a começar a achatar a curva de crescimento da pandemia

Joachim Osur, diretor de Projetos Regionais da Amref Health Africa (Fundação Africana de Medicina e Investigação), admite que o confinamento e a impossibilidade de trabalhar deixa as pessoas “frustradas” e que isso torna difícil que cumpram as regras impostas. “Lembro-me que no Uganda me disseram que mais valia morrer: ‘Se vamos continuar fechados, não vamos ter comida e vamos morrer de qualquer maneira’.” É por isso que a maior parte dos governos começa a ter mais cuidado com as medidas que impõe: “Estão a persuadir as pessoas a assumirem a responsabilidade de se protegerem e protegerem os outros, ao mesmo tempo que tornam as restrições o mais leves possível”, explica ao Observador.

África do Sul: a melhor resposta ou números perdidos?

Ana mudou-se com a família para a África do Sul há cerca de sete anos. Admite que nunca pensaram em passar ali o resto da vida, mas a pandemia fez acelerar a preparação do regresso a Portugal. Não pela pandemia em si, explica a portuguesa, mas porque o confinamento lhes deu tempo suficiente para pensarem e perceberem que se a economia do país já não estava bem, depois desta crise não ficará melhor. As medidas restritivas do governo duram há quase cinco meses e resultaram numa redução do rendimento de muitas famílias.

O confinamento começou a 27 de março, permitindo apenas aos cidadãos saídas para necessidades básicas, como comprar comida (apenas na área de residência), mas nada de bebidas alcoólicas nem tabaco. Na altura, o número de casos diários era de poucas dezenas, raramente ultrapassando uma centena. E assim continuou, até começar o desconfinamento, a 1 de maio. Durante este período, a família de Ana esteve sempre em casa, não podiam sequer passear pelas ruas do condomínio onde vivem. O marido em teletrabalho, as crianças de cinco e nove anos em telescola, depois de umas férias alargadas, e Ana à espera de voltar ao trabalho de atendimento ao público na Cidade do Cabo — que aconteceu também no início de maio.

"O que aconteceu com a retirada da proibição do consumo de álcool a 1 de junho foi, repentinamente, um grande aumento do número de acidentes e mortes relacionados com o álcool."
Charles Parry, do Conselho de Investigação Médica da África do Sul

A África do Sul ultrapassou os mil novos casos diários pela primeira vez no dia 17 de maio, cerca de duas semanas depois de iniciar o desconfinamento faseado. Ainda assim, o número de novos casos parecia estar sob controlo e a 1 de junho o governo decidiu retirar uma das medidas mais impopulares: a proibição da venda de bebidas alcoólicas. Duas semanas depois, o país ultrapassava os quatro mil novos casos num dia e, a partir daí, assistiu a um aumento exponencial no número de casos. Em meados de julho, a venda de álcool foi proibida novamente — agora que o número de casos no país caiu significativamente, o tabaco e as bebidas alcoólicas voltaram a poder estar na lista de compras.

A proibição de venda de tabaco não se assemelha à proibição de fumar em púbico recentemente proposta em Espanha para os casos em que não era possível garantir as distâncias de segurança. Ana explica que é muito comum ver as pessoas partilharem cigarros, o que podia tornar-se uma fonte de contágio tremenda. Já em relação ao álcool, foi possível ver, durante o confinamento e depois com a reabertura, a influência que o consumo tinha na ocorrência de acidentes e mortes — com a consequência indireta de desviar a atenção dos hospitais dos casos de Covid-19.

“O nosso modelo descobriu que temos um nível muito alto de traumas relacionados com o consumo de álcool na África do Sul, mais de 42 mil casos por semana, e que [os casos de trauma] caíram de 60% a 70% durante o ‘nível 5’ [quando houve a proibição da venda até 1 de junho]”, disse Charles Parry, do Conselho de Investigação Médica da África do Sul, citado pela BBC. “O que aconteceu com a retirada da proibição do consumo de álcool a 1 de junho foi, repentinamente, um grande aumento do número de acidentes e mortes relacionados com o álcool.”

África do Sul volta a proibir venda de bebidas alcoólicas face a aumento de casos de Covid-19

A África do Sul tem mais de 600 mil casos, o que coloca o país em quinto lugar em termos infeções. O valor mais alto de novos casos num dia foi atingido a 24 de julho, com quase 14 mil casos, mas desde aí que o país tem registado um decréscimo acentuado nas novas infeções. Mas o facto de países como a África do Sul ou o Quénia (com mais de 30 mil casos, o sétimo pior registo em África) terem muitos infetados registados não quer dizer que sejam os países em pior situação, muito pelo contrário, diz Joachim Osur. “Até podem ter os melhores cenários, porque conseguem testar e têm oportunidade de educar as pessoas, além disso, conseguem gerir melhor a situação.”

Mas nem todos os especialistas estão tão otimistas com os números do África do Sul. No final de julho, um relatório do Conselho de Investigação Médica da África do Sul dava conta que o número de mortes por causas naturais tinha aumentado 59% em relação a igual período do ano anterior — e isto depois de as mortes terem diminuído com a proibição do consumo de álcool —, noticiou a BBC. Entre 6 de maio e 14 de julho, a África do Sul registou mais 17 mil mortes do que seria esperado e, nessa altura, só estavam registadas cerca de 4.200 mortes com Covid-19.

Parte de aumento do número de mortos pode justificar-se pelo agravamento da situação de doentes não-covid, quer porque têm medo de procurar os serviços de saúde, quer porque os serviços de saúde estão totalmente focados nos doentes infetados com SARS-CoV-2 e acabaram por negligenciar as outras doenças. Mas parte também pode corresponder a doentes que morreram vítimas do novo coronavírus sem saberem, o que deixa antever que muitos casos podem estar por identificar.

“Se um de nós não está a salvo, ninguém está”

Tal como no resto do mundo, a percentagem de pessoas infetadas que não apresentam sintomas é grande — cerca de 85%, segundo a OMS —, o que, associado à reduzida capacidade de rastreio de alguns países, faz suspeitar que o número de casos reportados seja apenas a ponta do icebergue, como destacou o jornal El Espanol. “Sabemos que há um certo grau de subestimação, porque o número de testes não é igual em todo o lado”, disse Matshidiso Moeti, diretora regional da OMS para África, em conferência de imprensa. “Mas acreditamos que as tendências que estamos a observar são as reais. Porque o número de testes aumentou, também o número de casos positivos aumentou, ligeiramente, não foi um grande aumento”, acrescentou a diretora para justificar que não acredita que haja assim tantos casos por contabilizar.

“Sabemos que há um certo grau de subestimação, porque o número de testes não é igual em todo o lado. Mas acreditamos que as tendências que estamos a observar são as reais.”
Matshidiso Moeti, diretora regional da Organização Mundial de Saúde para África

A diretora regional da OMS para África explicou que a África do Sul, onde já se realizaram 3,6 milhões de testes, começou por testar só as pessoas que apresentavam sintomas compatíveis com a Covid-19, mas que depois adotou uma estratégia de testagem mais agressiva, abrangendo muitas pessoas que não apresentavam qualquer sinal da doença. Estes esforço permitiu perceber, por um lado, que apenas 3% dos testes realizados davam positivo para o SARS-CoV-2 e, por outro, que o número de assintomáticos por zona era muito variável. Agora, os testes realizados estão mais focados nos grupos ou regiões onde a probabilidade de encontrar casos é maior.

Joachim Osur diz que a única maneira dos países adaptarem as medidas é conhecendo o número de infetados e a situação do país. “Onde não é possível ver os números, não é possível agir.” Quando há transmissão comunitária, não se podem fazer apenas 50 testes por dia, como chegou a ver no Sudão do Sul, ou mesmo os mil do Malawi. “Nestes países é muito difícil quantificar como é que a doença se está a espalhar.” Claro que mesmo com muitos testes, a África do Sul, Quénia ou Etiópia ainda estão longe da situação ideal, diz o especialista da Amref, mas estão muito melhor que os vizinhos.

Mas o pior caso de todos, afirma o especialista em Saúde Pública, é o da Tanzânia. Não por ter muitos casos ou mortes, mas simplesmente porque não se sabe. “A Tanzânia não está sequer a fazer testes de rotina. E não é por falta de capacidade, é uma questão política.” O Presidente John Magufuli suspendeu a divulgação dos casos em finais de abril e declarou o país livre de coronavírus em junho, agradecendo a Deus e às orações dos cidadãos pela derrota da doença, noticiou a DW. Em Madagáscar, por sua vez, o Presidente Andry Rajoelina promoveu, sem qualquer prova científica, uma bebida para curar a Covid-19.

O médico lembra: “Não importa o que os outros países africanos façam, se houver um que não [tome medidas de contenção do vírus], então ninguém está seguro”. O médico cita a OMS e o seu diretor-geral, Tedros Adhanom Ghebreyesus, para afirmar que “se um de nós não está a salvo, ninguém está”. “Temos de trabalhar juntos, em solidariedade, para conseguir controlar a pandemia no mundo.”

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Essa mesma solidariedade é precisa quando se começarem a distribuir as vacinas contra o SARS-CoV-2 pelo mundo, diz. “Estamos preocupados com aquilo a que chamamos ‘nacionalismo das vacinas’”. Isto é, que cada país se preocupe em vacinar os seus cidadãos primeiro que todos os outros, em vez de se apostar em vacinar os mais vulneráveis em todo o mundo. Se isso acontecer, os países mais ricos serão os primeiros a ter acesso à vacina, enquanto os mais pobres terão muito mais dificuldade.

Talvez África nem precisasse de uma vacina, sugere um investigador ouvido pela Science Magazine. O número de pessoas expostas ao vírus (e de assintomáticos) é equiparável ao resto do mundo, mas a taxa de letalidade é muito menor. Para Yap Boum, epidemiologista ligado aos Médicos Sem Fronteiras, a imunidade de grupo sem vacina — com o vírus a circular livremente, protegendo apenas os mais vulneráveis — poderia representar uma carga menor para a economia. Glenda Gray, presidente do Conselho de Investigação Médica da África do Sul, discorda: sabe-se muito pouco sobre a proteção que os anticorpos podem dar e durante quanto tempo para arriscar dessa maneira.

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Mas o sucesso na recuperação dos doentes e a baixa taxa de letalidade têm sido observadas em todo o continente. “Temos visto casos de recuperação muito bons no Quénia: as pessoas não estão muito doentes e a recuperação acontece em cerca de 10 dias”, diz Joachim Osur. Como muitos casos são ligeiros, o Quénia optou por encorajar as pessoas a fazerem a recuperação em casa, sempre que tenham condições para estar em quarentena e não precisem de estar em hospitais ou centros de tratamento.

Poucas pessoas com uma doença grave, hospitais que ainda não esgotaram a capacidade de internamento e um número de mortes relativamente baixo quando comparado com outras partes do mundo, parece ser o quadro geral em África, dizem os especialistas ouvidos pelo Observador. A África do Sul tem mais de 13 mil mortes relacionadas com a Covid-19, o que coloca o país em décimo terceiro no número de mortes, em termos mundiais, segundo o site Worldometer. Mas o segundo e terceiro países africanos com mais mortes são o Egipto (mais de 5.000) e a Argélia (cerca de 1.400), que estão, respetivamente, em 26.º e 43.º lugar a nível global. O Quénia, por exemplo, registou cerca de 500 mortes. Com pouco mais de 28 mil mortes, o continente africano tinha, a 26 de agosto, menos vítimas mortais do que Espanha.

Mas os rankings podem vir a sofrer uma grande alteração, sobretudo na África oriental, alerta Rediat Takele Figa, professor de Biostatistica, na Universidade Jigjiga (Etiópia), num artigo publicado na revista científica Infectious Disease Modelling. “[Na Etiópia] o número de pessoas positivas para a Covid-19 pode chegar a 56.610 [no final de outubro], de 5.846 a 30 de junho de 2020, num cenário de taxa média. Contudo, na pior das previsões, o modelo mostrou que os casos podem chegar a 84.497.” O Sudão é outro dos países que preocupa o investigador, porque pode ir dos 9.258 registados no final de junho aos 38.174 no final de outubro, se não forem tomadas as devidas medidas de contenção do vírus.

O diretor de Projetos Regionais Amref Health Africa lembra ainda que é preciso ter sempre algum cuidado com os dados em África: há mortes que acontecem nas aldeias, e não apenas relacionadas com o novo coronavírus, que nem sequer chegam a ser contabilizadas a nível nacional.

“África sabe como é importante dar uma resposta rápida”

Júlio está fechado em Luanda. Nunca deixou de trabalhar, a empresa não fechou e ainda não houve nenhum caso de infeção entre os colegas, mas há nove meses que não vê a família e é uma incógnita quando isso poderá acontecer.

Angola fechou as fronteiras a 20 de março e os voos internacionais comerciais regulares de e para Angola continuam suspensos por tempo indeterminado. Os voos dentro do país também. A capital, Luanda, está com cerca sanitária desde que se registaram os primeiros casos no país. Ninguém entra e ninguém sai, a não ser em situações excecionais. As outras províncias angolanas também chegaram a estar isoladas no início do surto, mas entretanto já reabriram.

20 países têm as fronteiras fechadas, cinco impõe restrições às viagens de e para alguns países e 28 países fazem controlo para a Covid-19 à entrada/chegada, segundo o CDC África

Centro para o Controlo e Prevenção da Doença em África

A resposta rápida dada por muitos países quando tinham ainda poucos casos, muitos deles apenas importados, é elogiada por Mary Stephen, técnica da OMS. A restrição das viagens, tanto com o fecho de fronteiras, como com a limitação de viagens entre cidades e províncias, foi das medidas mais importantes adotadas pelos Estados, refere a especialista em Saúde Pública. “Os países africanos sabem que, quando um surto foge de controlo, se torna muito difícil de conter, por isso adotaram medidas muito sérias desde o início.”

A preocupação da Organização Mundial de Saúde reside agora na reabertura e levantamento das restrições, porque se, inicialmente, os casos se localizados sobretudo nas grandes cidades, os novos casos têm vindo a aparecer, gradualmente, nas áreas mais periféricas e rurais, onde o acesso aos cuidados de saúde é muito mais difícil.

Dentro das medidas promovidas pela OMS, “testar, testar, testar” é, talvez, a que foi mais vezes repetida, mas nem todos os países têm a mesma capacidade ou usam o mesmo tipo de estratégias. E uma das limitações, diz Mary Stephen, é a disponibilidade dos reagentes, um problema que atingiu também os países industrializados. “Sabendo que estamos a trabalhar num ambiente com recursos limitados temos de contornar essas situações, temos de nos adaptar com base na disponibilidade dos reagentes. Não queremos chegar a uma situação em que esgotamos os recursos a testar pessoas que não têm sintomas e depois não somos capazes de testar as pessoas que têm sintomas.”

À medida que os recursos variam de país para país, também a estratégia de rastreio varia. Alguns países, como o Uganda, fazem testes aos motoristas dos veículos de mercadorias que viajam de um lado para o outro e entre países, outros países exigem quarentena à chegada e muitos querem também a prova de um teste negativo.

Angola não é exceção: teste antes de sair de Portugal (se for esse o caso), quarentena num hotel em Luanda durante duas semanas e mais um teste depois disso para poderem sair. O problema é quando as pessoas fazem os testes — caros — e depois não conseguem lugar ou autorização voar para Angola e ficam retidas em Portugal durante semanas ou meses. Foi esse risco que Júlio não quis correr, e por isso não veio de férias em julho como tinha planeado. Retido em Portugal ou de quarentena no hotel de Luanda não podia trabalhar e, sem trabalhar, não podia receber.

Mesmo nos países onde só se realizam testes às pessoas com sintomas de Covid-19, os contactos suspeitos são identificados e o isolamento é norma, conforme as recomendações da OMS. Fazer o seguimento dos contactos é algo a que muitos países africanos já estão habituados, refere a especialista em Saúde Pública, dando como exemplo os surtos de ébola. Mary Stephen diz mesmo que a experiência com os surtos de outras doenças, às vezes várias ao mesmo tempo, funcionou como uma vantagem no caso da pandemia de Covid-19. “Mesmo tendo sistemas de saúde fracos em África, os países sabem como abrandar a evolução de um surto, como o de Covid-19. Sabem como é importante dar uma resposta rápida.”

Além disso, diz a médica, já conheciam bem as medidas preventivas agora recomendadas. “Sabemos como manter a distância uns dos outros. Já o fazíamos, mas chamávamos-lhe nomes diferentes.” Os casos de ébola ou cólera são um exemplo, não só para o distanciamento físico, mas também para a lavagem das mãos. “A única coisa nova é ter de usar uma máscara.” Em África, tal como tantas vezes assistimos em Portugal, a médica diz que é comum ver as pessoas com a máscara por baixo do queixo, como uma espécie de atenuante caso sejam abordados pelas autoridades.

Mais de 38.000 casos entre profissionais de saúde

Ana tem uma empregada de limpeza que, por causa das restrições impostas para controlar a pandemia, não conseguia ir à casa da portuguesa e das outras pessoas para quem trabalhava: não havia transportes. Mas a empregada de Ana, como tantas outras pessoas na África do Sul e nos restantes países africanos, trabalha sem contrato, o que significa que, sem trabalho, também não há dinheiro para alimentar a família. Ana e as restantes famílias para quem a empregada de limpeza trabalhava quiseram fazer a diferença e continuaram a pagar-lhe mesmo durante o confinamento. Mas Ana sabe que muitos não terão recebido a mesma compreensão por parte daqueles com quem trabalhavam.

Júlio vê-o todos os dias. Ao romper do dia, pelas 5h30, já as filas para os autocarros e candongueiros são intermináveis. O sistema de transportes, que já era caótico — “uma doença antiga”, como lhe chamou o português —, ficou ainda pior durante a pandemia, porque há limite na ocupação dos veículos. “Tenho exemplos de pessoas que trabalham na mesma empresa que eu e se levantam às 4 horas para pegar às 7 horas.” E ao fim do dia, a mesma coisa, não chegam a casa antes das 20 ou 21 horas — e isto tendo em conta que o serviço termina às 17 horas. Júlio não precisa de passar por isto, tem uma viatura atribuída pela empresa.

Além de haver muitas pessoas que saem diariamente para trabalhar e ter o que comer, há muitas para as quais “a perceção do risco diminuiu”, diz Mary Stephen, o que é justificado pelo reduzido número de mortes. Sentem-se como se não fosse um grande problema e as autoridades de saúde estivessem só a perturbá-los sem razão, explica a médica.

“Há a possibilidade de, no futuro, termos surtos de outras doenças porque as taxas de vacinação diminuíram muito.”
Joachim Osur, diretor de Projetos Regionais da Amref Health Africa

A quantidade de casos assintomáticos ou com sintomas ligeiros e inespecíficos também não ajuda a ter uma perceção real do risco. As pessoas procuram os serviços de saúde sem saberem que estão infetadas e os profissionais de saúde fora dos centros específicos de tratamento para a Covid-19 não estão devidamente equipados para se protegerem de uma potencial infeção escondida num doente que não mostra sintomas.

Falta equipamento de proteção individual, dizem os médicos ouvidos pelo Observador. Às vezes porque não há dinheiro suficiente para o comprar, outras vezes porque não conseguem encomendar, diz Joachim Osur. “Em países como o Zimbabué, os profissionais de saúde fizeram greve porque não queriam expor-se mais, estão conscientes do risco que correm ao ver doentes sem equipamento de proteção individual.” E têm razão para isso: até meados de agosto tinham sido reportadas 38.700 infeções em profissionais de saúde de 41 países, diz o médico da Amref.

Mais uma vez é a limitação nos recursos que determina a estratégia, explica a técnica da OMS, e a prioridade vai para os hospitais e centros que tratam doentes com Covid-19. Mas Mary Stephen apresenta pelo menos duas soluções que poderiam ajudar a reduzir o número de casos entre profissionais de saúde. Por um lado, apostar em bons centros de triagem nas instalações de saúde que não estejam dedicadas à Covid-19, para serem capazes de identificar todos os casos suspeitos. E, neste locais, ter as pessoas da triagem bem protegidas. Depois, todos os profissionais de saúde deveriam usar máscaras no contacto com os doentes, mesmo que fossem máscaras comunitárias, porque dão mais proteção que máscara nenhuma.

Na área dos cuidados de saúde há outro problema que preocupa Joachim Osur: o aumento do número de mortes causadas por outras doenças no futuro. “Focámo-nos tanto na Covid-19 que uma série de recursos foram aí colocados, esgotando os recursos que serviriam para tratar outras doenças.” Os recursos a que o especialista se refere não são apenas financeiros, são também os profissionais de saúde ou o espaço dedicado a outros doentes nos hospitais e centros de saúde.

Um dos exemplos são as campanhas de prevenção contra a malária. Uma equipa do Imperial College de Londres estimou que se as medidas preventivas, como a distribuição de redes mosquiteiras com inseticida, ou os serviços básicos de saúde ficarem comprometidos, o número de mortos por causa da doença em 2020 pode ser duas vezes maior que em 2019, escreveram num artigo publicado na Nature Medicine. “Só na Nigéria, reduzir a gestão dos casos [de malária] durante seis meses e atrasar a distribuição das redes com inseticida pode resultar em mais 81 mil mortes (num intervalo entre 44.000 e 119.000).”

Joachim Osur acrescenta ainda: “Há a possibilidade de, no futuro, termos surtos de outras doenças porque as taxas de vacinação diminuíram muito”.

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