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Bettmann Archive

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"O Passageiro". O romance perdido de Ulrich A. Boschwitz, o escritor judeu que morreu num navio bombardeado por nazis ao largo dos Açores

Desaparecido durante 80 anos, o manuscrito de "O Passageiro", o primeiro trabalho literário sobre a "Noite de Cristal", tornou-se um fenómeno após sair na Alemanha. Livro chega agora a Portugal.

Em 2015, Avner Shapira publicou no jornal israelita Haaretz um artigo sobre Blood Brothers. O romance de Ernst Haffner sobre um grupo de jovens sem-abrigo na Berlim dos anos 30 tinha acabado de sair em inglês, dois anos após ter sido redescoberto pelo editor alemão Peter Graf. O artigo não escapou a Reuella Shachaf, que entrou em contacto com o jornalista pedindo a sua ajuda para chegar a Graf. Schachaf era sobrinha de um também obscuro escritor alemão do período da Segunda Guerra Mundial, Ulrich Alexander Boschwitz, e tinha esperança que o editor se interessasse pela história do seu tio, que morreu com apenas 27 anos a bordo de um navio  inglês bombardeado por um submarino nazi ao largo dos Açores, e o editasse.

Shapira contou a história de Boschwitz ao tradutor Noa Kol, que decidiu tentar encontrar mais informações sobre o autor. Kol descobriu que uma cópia em alemão do último romance que se conhece do escritor, O Passageiro, estava guardada nos arquivos da Biblioteca Nacional Alemã em Frankfurt. Sem saber, o tradutor tinha feito uma importante descoberta — até então, desconhecia-se a existência de qualquer manuscrito em alemão do romance. Shachaf escreveu então a Graf, que ficou intrigado ao ponto de se deslocar até Frankfurt para ler o rascunho. Sentado numa pequena sala num dia escuro de dezembro, com o original nas mãos, o editor percebeu que O Passageiro tinha de deixar o edifício de Biblioteca Nacional Alemã. Tinha de ser publicado.

A edição portuguesa de "O Passageiro" foi publicada no final de junho pela editora Cavalo de Ferro

O Passageiro foi publicado pela primeira vez na Alemanha em 2018, pela Kett-Cotta, depois de o manuscrito de Frankfurt ter sido cuidadosamente editado por Peter Graf. A história de Otto Silbermann, um respeitado comerciante judeu que se vê obrigado a embarcar em comboio atrás de comboio para evitar ser detido durante as perseguições que se seguiram à “Noite de Cristal”, tornou-se imediatamente um sucesso na Alemanha e também noutros países. No Reino Unido, onde o livro foi lançado pela primeira vez nos anos 40 com o título The Passenger, pouco antes de Boschwitz morrer no mar, tornou-se um bestseller, conquistando leitores e críticos. Jonathan Freedland, no The Guardian, descreveu-o como “um romance cativante” que “merecia ter sido lido quando foi escrito” e que “certamente merece ser lido agora”. David Mills, no Sunday Times, questionou se não seria o melhor dos romances sobre a Segunda Guerra Mundial recuperados nos últimos anos.

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Não é a primeira vez que um romance esquecido de um autor judeu sobre eventos relacionados com a Segunda Guerra Mundial se torna um fenómeno literário décadas após a sua composição ou publicação. Há o caso de Blood Brothers (ainda sem edição em português), que levou à redescoberta do romance de Boschwitz, mas também de Suite Française, da ucraniana Irène Némirovski, ou Schlump, do também alemão Hans Herbert Grimm. Estes são só alguns dos casos mais recentes, e há ainda muito por descobrir, como admitiu Peter Graf, em entrevista ao Observador. No caso de O Passageiro, que chega agora a Portugal, a sua relevância prende-se ainda com uma outra questão: trata-se muito provavelmente do primeiro documento literário sobre os acontecimentos que se seguiram à “Noite de Cristal”, que marcou o início da perseguição sistemática dos judeus.

Kol descobriu que uma cópia em alemão do último romance que se conhece do escritor, O Passageiro, estava guardada nos arquivos da Biblioteca Nacional Alemã em Frankfurt. Sem saber, o tradutor tinha feito uma importante descoberta — até então, desconhecia-se a existência de qualquer manuscrito em alemão do romance. 

Seis anos em fuga e uma morte trágica ao largo dos Açores

Ulrich Alexander Boschwitz nasceu em Berlim, em 1915, o ano em que o pai, um médico e empresário judeu convertido ao cristianismo, morreu nas trincheiras da Primeira Guerra Mundial. Ulrich e a irmã mais velha, Clarissa, foram criados pela mãe, a pintora Martha Wolgast Boschwitz. Martha vinha de uma família de Lübeck (norte da Alemanha), os Plitt, que tinha entre os seus membros mais importantes alguns teólogos e políticos. Criou os filhos segundo a fé protestante, mas a raízes judaicas nunca foram totalmente esquecidas. Prova disso é que em 1933, data da chegada dos nazis ao poder, Clarissa Boschwitz, entretanto convertida ao judaísmo, decidiu fugir. Em Berlim, embarcou num comboio noturno rumo à Suíça, onde se juntou ao Movimento Sionista. Mudou-se depois para a Palestina, onde viveu o resto dos seus dias.

Boschwitz e a mãe permaneceram em Berlim, mas não por muito tempo. Em 1935, após a promulgação das Leis de Nuremberga — um conjunto de leis antissemitas que retirou a cidadania alemã aos judeus e proibiu o casamento entre judeus e não judeus — tomaram também a decisão de abandonar o país. De acordo com a sobrinha do escritor, a saída dos Boschwitz da Alemanha terá também sido motivada pelo assassinato do irmão de Martha, o juiz Alexander Wolgast. “Foi assassinado na rua depois de declarar que as novas leis do regime nazi era inválidas”, contou ao Haaretz. Mãe e filho estabeleceram-se primeiro na Suécia e depois na Noruega, onde chegaram em 1936. Foi na capital norueguesa, Oslo, que Ulrich Alexander Boschwitz escreveu o seu primeiro romance, Menschen neben dem Leben (em português, Pessoas à Margem da Vida), sobre a crise económica que abalou a Alemanha após a Primeira Guerra Mundial. O livro saiu no verão de 1937 pela editora sueca Bonnier. Boschwitz assinou-o com um pseudónimo — John Grane.

O romance foi recebido com entusiasmo, o que permitiu ao escritor mudar-se para França, onde frequentou durante alguns semestres a Sorbonne, em Paris. Segundo a biografia do autor disponibilizada pelo Leo Back Institute, onde está depositado o seu espólio, antes de se estabelecer em Inglaterra nos primeiros meses de 1939, Ulrich Alexander Boschwitz passou um período no Luxemburgo, onde terá escrito em apenas quatro semanas O Passageiro, em reação aos acontecimentos da “Noite de Cristal”, a 9 de novembro de 1938. No seio da família, contava-se que o autor tinha sido detido na fronteira desse país, episódio que terá inspirado a cena em que o protagonista Otto Silbermann é impedido de entrar na Bélgica por guardas fronteiriços. O que é certo é que na primavera de 1939, quando saiu a primeira edição de O Passageiro pela editora londrina Hamish Hamilton, já Boschwitz se encontrava em Inglaterra. O autor voltou a assinar o romance como John Grane.

Island Internment

Soldados ingleses acompanham um grupo de alemães na Ilha de Man, onde funcionou um campo de internamento durante a Segunda Guerra Mundial

Getty Images

Com o início da guerra, mãe e filho foram detidos em Inglaterra e levados para a Ilha de Man, onde funcionava um campo de internamento para cidadãos alemães, na localidade de Port Erin. Em julho de 1940, o escritor foi transferido para a Austrália, para onde estavam a ser enviados todos os homens na Ilha de Man. Boschwitz viajou a bordo do HMT Dundera, juntamente com outras 2.500 pessoas, a maioria refugiados da Alemanha e Áustria, mas também prisioneiros de guerra. O navio tornou-se famoso pelas piores razões — não só levava mais passageiros do que devia, como a tripulação maltratava e roubava os que eram transportados. O Governo britânico viu-se obrigado a agir, julgando posteriormente alguns dos membros da tripulação. Winston Churchill, então a cumprir o seu primeiro mandato como primeiro-ministro, pediu desculpa pelo sucedido. Nesse ano, O Passageiro foi publicado nos Estados Unidos da América.

Ulrich Alexander Boschwitz permaneceu num campo em Nova Gales do Sul até 1942, quando alguns dos internados começaram a ser colocados em liberdade. Temendo não sobreviver à viagem de regresso, alguns meses antes da partida, enviou à mãe uma carta explicando o que queria que acontecesse aos seus manuscritos. Nessa missiva, referiu especificamente O Passageiro. Tinha revisto novamente o texto e entregado a nova versão, que nunca chegaria a Martha Boschwitz, a um companheiro de cativeiro que já se encontrava a caminho de Inglaterra. O escritor tinha esperanças de que o romance pudesse vir a ser publicado na Alemanha após o fim da guerra. “Acredito que há qualquer coisa no livro, que pode torná-lo num sucesso”, disse à mãe.

Boschwitz tinha razão, mas não viveria o suficiente para o testemunhar o sucesso. Morreu cerca de dois meses depois, a 29 de outubro de 1942, a bordo do M. V. Abosso, um navio de passageiros da companhia britânica Elder Dempster Lines fretado pelo Governo britânico para o transporte de tropas. Este viajava rumo a Inglaterra quando, a cerca de 700 milhas do arquipélago dos Açores, o submarino alemão U-575, comandado pelo comandante Günther Heydemann, disparou um torpedo na sua direção. O navio afundou pelas 23h (horário de Berlim). A maioria dos quase 400 passageiros não sobreviveu. Boschwitz, uma das vítimas, levava preso ao corpo o manuscrito de um novo romance.

U Boats In Mission In Atlantic On February 4Th 1941

Gamma-Keystone via Getty Images

Uma única cópia perdida num arquivo em Frankfurt

O espólio do escritor ficou à guarda da irmã, Clarissa Boschwitz, e depois da sobrinha, Reuella Shachaf, que o passou ao académico Thomas Hansen. Hansen, professor numa universidade privada feminina em Wellesley, Massachusetts, preparou o primeiro inventário dos documentos em 1978, antes de os transferir com a autorização de Shachaf para o Leo Back Institute, em Nova Iorque, dedicado ao estudo da história dos judeus de língua alemã. O espólio, ainda à guarda do instituto, é composto por material relacionado com a produção literária de Boschwitz (sobretudo dactiloscritos produzidos entre 1933 e 1940) e alguma correspondência do autor e seus familiares (neste último caso relacionada com a publicação da sua obra). A coleção inclui uma versão dactiloscrita de Pessoas à Margem da Vida com correções feitas à mão por Boschwitz, mas nenhuma de O Passageiro. Relacionado com esse romance, existem apenas algumas críticas à edição publicada em Inglaterra.

Durante anos, julgou-se que o manuscrito do segundo romance de Ulrich Alexander Boschwitz se tinha perdido e que o que está guardado no Leo Back Institute era tudo o que existia. Por essa razão, Reuella Shachaf teve sempre dificuldade em convencer os editores de que valia a pena reeditar O Passageiro. Tudo mudou em 2015, quando o tradutor Noa Kol descobriu o manuscrito no Arquivo Alemão do Exílio da Biblioteca Nacional Alemã. O documento foi parar a Frankfurt por intermédio da mãe do escritor, que o emprestou a um arquivo em Colónia com vista à sua publicação, que nunca se veio a concretizar no período do pós-guerra. A edição de 2018, com edição de Peter Graf, foi a primeira na Alemanha.

A primeira edição alemã de "Der Reisende" ("O Passageiro"), com edição de Peter Graf, foi publicada pela Klett-Cotta

Após a morte de Boschwitz, a família procurou cumprir o seu desejo de ver o romance publicado no seu país. Foi com isso em mente que a mãe do escritor passou O Passageiro a um amigo do filho, que o terá levado para Colónia após o fim da Segunda Guerra Mundial. Nessa cidade, foi inicialmente transferido para a Germania Judaica, uma biblioteca científica especializada na história dos judeus alemães, e depois para Frankfurt, após a criação do Arquivo Alemão do Exílio, em 1948, onde ficou esquecido durante décadas. Apesar de não ter sido publicado nessa altura, sabe-se que foram realizados vários esforços nesse sentido e não apenas pelos familiares de Ulrich Alexander Boschwitz. Existe no espólio do autor um carta de Heinrich Böll, um dos mais importantes escritores do período, “que mostra que Böll lutou para que o manuscrito fosse publicado”. Böll recomendou a sua publicação à editora Middelhauve, que o recusou. “Presumivelmente ainda não tinha chegado a altura para o romance ser publicado na Alemanha”, comentou Peter Graf em entrevista ao Observador.

No natal de 2015, quando Graf se deslocou à Biblioteca Nacional Alemã, pouco sabia sobre o autor do romance que estava prestes a ler. Afinal, tinham passado quase 80 anos desde que tinha sido publicado pela primeira vez em Inglaterra. O editor apenas conhecia as datas do seu nascimento e morte, que era de Berlim e que tinha passado os últimos anos de vida a fugir, viajando de um lado para o outro, tal como a personagem do seu livro. Por essa razão, “estava curioso, mas não tinha grandes expectativas”, admitiu, por email, ao Observador. “Ao mesmo tempo, cada visita a um arquivo é um momento especial”, revelou. “Não estamos a ler um documento Word ou um PDF, mas a segurar um manuscrito nas nossas mãos.” O documento, composto por mais de 200 páginas amareladas, estava datilografado “com precisão, com apenas algumas correções e anotações”. “Um original assim irradia uma intimidade especial, independentemente de o conteúdo ser bom ou não tão bom. O editor apercebeu-se logo que o que tinha à sua frente era “significativo”, não apenas pela sua qualidade literária, mas por se tratar de “um texto muito inicial sobre a expulsão de alguém da sua pátria, sobre os crimes contra os judeus durante os pogroms de novembro em Berlim e na Alemanha”. Peter Graf decidiu que tinha de o publicar.

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O protagonista de "O Passageiro" percorre a Alemanha de comboio, procurando fugir das perseguições aos judeus e uma saída para a situação em que se encontra

Corbis via Getty Images

O primeiro documento literário sobre a “Noite de Cristal”

O Passageiro foi escrito nas semanas que se seguiram ao pogrom de 9 de novembro de 1938. Nessa noite, quase uma centena de judeus foram espancados até à morte. As montras das lojas judias foram partidas e as sinagogas atacadas e incendiadas. No dia seguinte, as ruas estavam cheias de pedaços de vidro, o que deu origem ao nome pelo qual o incidente ficou conhecido: “Kristallnacht”, a “Noite de Cristal”. Durante anos, achou-se que o pogrom tinha sido uma reação popular ao assassinato de Ernst Eduard vom Rath, secretário da embaixada alemã em Paris, por um judeu polaco. Hoje tem-se a certeza de que o ataque foi orquestrado por membros das SA e das SS, que se fizeram passar por cidadãos comuns. A “Noite de Cristal” marcou o início da perseguição sistemática da comunidade judaica, primeiro na Alemanha e Áustria e depois nos países conquistados pelos nazis no decorrer da Segunda Guerra Mundial. Para os historiadores, foi um prelúdio à chamada “solução final” e ao Holocausto.

Ulrich Alexander Boschwitz já não se encontrava na Alemanha em 1938, mas terá sentido necessidade de expor o que se passava no seu país. Para isso, criou a personagem Otto Silbermann, um respeitado e rico comerciante judeu cuja vida muda drasticamente com a ascensão do nazismo. Confiante da sua posição, Silbermann é apanhado de surpresa pelos acontecimentos que se seguiram ao pogrom de novembro de 1938 e levado a deixar tudo para trás (a casa, a mulher e os negócios) e a viajar em busca de uma saída para a sua situação, tal como o próprio Boschwitz se viu obrigado a fazer. Enquanto viaja, vai refletindo sobre a sua condição, umas vezes com otimismo, outras com o pragmatismo típico de quem sabe que não pode esperar nada de bom do futuro. “Agora estou livre, consegui manter uma parte dos meus bens, mas ainda assim não sei o que hei-de fazer”, admite. “Apesar de tudo, estou preso. Para um judeu é como se todo o império fosse um enorme campo de concentração.”

O romance é “o primeiro trabalho literário em alemão” sobre os acontecimentos que se seguiram à “Noite de Cristal” e reveste-se de especial importância por isso mesmo. “Ulrich Alexander Boschwitz narra o início violento da barbárie com a ajuda do seu protagonista, que é expulso de Berlim e que viaja motivado pelo medo pelo país com o qual sempre sentiu uma ligação. Um país que virou as suas costas a todas as regras da humanidade. Um país que começou a colocar em prática as fantasias violentas do passado”, apontou Peter Graf em resposta às perguntas do Observador. “Ulrich descreve este processo de desumanização com uma precisão de tirar o fôlego. É um livro cruel, mas também é um manifesto de humanidade.”

"O Passageiro" foi escrito nas semanas que se seguiram ao pogrom de 9 de novembro de 1938. Nessa noite, quase uma centena de judeus foram espancados até à morte. As montras das lojas judias foram partidas e as sinagogas atacadas e incendiadas. No dia seguinte, as ruas estavam cheias de pedaços de vidro, o que deu origem ao nome pelo qual o incidente ficou conhecido: “Kristallnacht”, a “Noite de Cristal”.

“Não há muitos romances passados durante o início desse mal e que descrevem desta forma esse início”, comentou Diogo Madre Deus, editor da Cavalo de Ferro, editora responsável pela edição portuguesa de O Passageiro. “Na minha opinião, é um romance com muita qualidade literária e bastante original.” Essa originalidade prende-se com a forma como Boschwitz tratou o tema do romance, através do ponto de vista do comerciante Otto Silbermann. “Ele transforma uma perspetiva muito pessoal, a situação quase burlesca deste passageiro que troca de comboio, numa situação histórica geral. Transmite muito bem aquele sentimento de confusão que se sentia à época”, disse o editor ao Observador. “É uma personagem muito completa, muito profunda. Retrata a surpresa gigantesca de alguém que tem privilégios que vêm de um status garantindo pelo dinheiro e posição social e que, de repente, se vê confrontado com uma nova situação absurda. É um romance muito eficaz a transmitir isso.”

Para Diogo Madre Deus, que se deixou conquistar pela qualidade literária de O Passageiro após a primeira leitura, sugerida pelo tradutor do romance em Portugal, Paulo Rêgo, “trata-se de grande literatura”. “Não costumo ligar muito a estes casos literários muito publicitados, porque muitas vezes escondem campanhas publicitárias”, começou por admitir. “O que me despertou foi a qualidade literária; foi a escrita muito próxima de um universo quase kafkiano. Achei um romance muito bem escrito, muito bem editado. Apercebi-me estar diante de alguém com qualidades literárias.” Na opinião de Graf, o estilo e dramaturgia do livro “impressionantes”, sobretudo tendo em conta que foi escrito por um autor de apenas 23 anos. “É o romance da surpresa, da impotência e da injustiça”, afirmou Madre Deus. “São palavras-chave. De facto, é muito inédito em termos de tratamento do período histórico.”

Peter Graf acredita que O Passageiro seria um romance muito diferente se Boschwitz tivesse consciência das verdadeiras intenções dos líderes nazis. “Foi escrito alguns anos antes da Conferência Wannsee em Berlim em 1942, quando os nacional-socialistas decidiram a chamada ‘Solução Final da Questão Judaica’, isto é, a total aniquilação dos judeus europeus”, lembrou o editor. “Ele descreve de forma muito precisa como um cidadão respeitado se torna um pária, mas nos comboios em que Otto Silbermann viaja pela Alemanha, ele encontra tanto alemães bons como maus. Alguns são cobardes, outros apáticos, outros corajosos e empáticos. Até os outros refugiados que encontra não se aperceberam totalmente da extensão do perigo a que serão expostos a partir daí. Estão em fuga e são indesejados em todo o lado, mas a deportação sistemática começou depois. Podemos presumir que Ulrich Alexander Boschwitz teria escrito um romance diferente se soubesse da extensão posterior deste crime”, considerou.

Damaged Jewish Owned Storefront after Kristallnacht Riot

"O Passageiro" passa-se no período que se seguiu à "Noite de Cristal", que marcou o início da perseguição sistemática da comunidade judaica pelos nazis

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Para Graf, “este romance, que tem mais de 80 anos, surge à superfície como uma mensagem dentro de uma garrafa”, num tempo “em que a fuga e a expulsão estão a acontecer a nível mundial com recurso aos mesmos mecanismos de antes”. “O drama humano acontece todos os dias diante dos olhos do público mundial, mas a maioria dos protagonistas não têm nome. Otto Silbermann é uma personagem ficcional orientada para a realidade. O seu destino é representativo do destino de inúmeros judeus, e o que lhe aconteceu no romance pode facilmente ser aplicado ao presente. Isto também se deve à linguagem e estilo de Ulrich Alexander Boschwitz. O seu livro fala connosco e nós podemos ligarmo-nos às ações descritas com o nosso conhecimento da história e do Holocausto”, defendeu o editor.

Foram vários os autores judeus que escreveram sobre os eventos que levaram à Segunda Guerra Mundial, cujas consequências eles próprios sentiram na pele. Ulrich Alexander Boschwitz é apenas um deles. Só muito recentemente é que este mundo começou a ser redescoberto, com a republicação de várias obras esquecidas da literatura judaica do período. “Durante a perseguição ou exterminação dos judeus europeus, muitos romances e livros de não-ficção foram escritos por judeus que tinham fugido ou que tinham sido deportados sobre o seu destino ou o destino friccionado do povo judeu. Esses livros foram também publicados na Alemanha por editores exilados que viviam noutros países europeus ou na América. Depois da guerra, houve inúmeras publicações e romances sobre o tema na Alemanha, mas a maioria foi esquecida”, admitiu Peter Graf. “Há muito que pode e deve ser redescoberto”, frisou, acrescentando que “existem também alguns romances de autores judeus que nunca foram publicados mas que são literariamente bastante bons”. “Há ainda muito para ser descoberto.”

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