A canção dos Beatles Michelle, ma belle, escrita e cantada por Paul McCartney em 1965 para o álbum “Rubber Soul”, nunca terá sido tão atual, mais de meio século depois de ter sido escrita.

Os americanos estão numa relação com Michelle Obama – e não é complicado. Primeiro veio a desconfiança: demorou um pouco a que muitos se habituassem a ver no papel de Primeira Dama uma negra de 1,80 metros e estilo atlético, que adora dançar e é tão ‘cool’ que até já fez flexões no programa de Ellen DeGeneres.

Depois veio a paixão. Coletiva, o que é mais notável, numa nação dramaticamente dividida como os EUA a poucos dias das eleições presidenciais de 2016. A Michelle mais conhecida dos nossos tempos tem níveis de popularidade que fazem inveja a qualquer estrela de cinema ou atriz de série televisiva. Não sendo política (não tem nem quer ter uma carreira em Washington DC), a Primeira Dama dos Estados Unidos da América é hoje, de longe, a figura consensual da “top american politics”.

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Até Donald Trump — que no último ano já disparou insultos e impropérios a uma lista tão longa de adversários e rivais dos dois partidos do sistema que foram precisas duas páginas inteiras do New York Times para as elencar numa só edição em formato “broadsheet” — demorou a meter-se com a FLOTUS (First Lady of The United States).

Lá acabou por fazê-lo, já na reta final da campanha, e depois de fortes ataques de Michelle às aleivosias ditas por Donald nesta campanha. Mas mesmo assim de forma bem menos agressiva do que é hábito no nomeado presidencial republicano.

E faz bem, Donald, em ter esses cuidados: de acordo com o instituto Gallup, Michelle tem 64% de americanos a gostar dela. Apenas 32% nutrem uma visão negativa da Primeira Dama dos EUA. Na cada vez mais estranha arena política americana, ninguém pode dizer o mesmo.

O marido, Barack, é o único que anda lá perto, com níveis de aprovação da sua presidência a cifrarem-se entre os 53 e os 55% (prepara-se, de resto, para terminar o segundo mandato com valores de aceitação superiores aos que tinha Ronald Reagan em 1988, que cessou funções num clima que mais tarde viria a ser apontado como dificilmente repetível para um Presidente americano).

Mas a verdade é que a generalidade dos atores políticos americanos não passa no teste de aprovação dos eleitores neste momento. A corrida presidencial, prestes a terminar, é um espelho bem preocupante dessa realidade. Os dois nomeados, que disputam o título de 45.º Presidente dos EUA, são mesmo dois dos políticos mais impopulares da América: Hillary tem uma média de 44% de aprovação/ 53.5% de reprovação; Trump está ainda pior: apenas 38% dos americanos gostam dele, 59% reprovam a sua conduta.

Mesmo assim, e com tanta escolha possível no sistema de poder, entre governadores de estado, senadores, congressistas ou ainda antigos presidentes ou vice-presidentes dos dois partidos, democratas e republicanos foram nomear aqueles que serão, neste momento, os dois políticos que mais aversão provocam nos americanos. Estranho país, aquele.

Na campanha presidencial mais feia, tensa e bizarra das últimas décadas, os americanos encontraram em Michelle uma espécie de efeito de compensação, perante dois candidatos que geram tanta antipatia e desconfiança.

É muito provável que, a 8 de novembro, seja eleita pela primeira vez uma mulher para a Casa Branca. Não será de estranhar, por isso, que os três melhores discursos desta campanha até agora tenham assinatura feminina. Sucede que não foi a candidata oficial do Partido Democrático a fazê-los.

Foi Michelle: na Convenção Democrata de Filadélfia, no final de julho (esse até mereceu elogios num tweet de Donald Trump); em Manchester, New Hampshire, a 13 de outubro; e na Carolina do Norte, com Hillary Clinton ao lado, a 27 de outubro, num dos maiores comícios realizados nos últimos anos na América.

https://youtube.com/watch?v=YnmnyPCwUi8

“When they go low, we go high”

Inspiradora, Michelle Obama consegue tocar o coração dos eleitores. É, nesse aspeto, muito mais eficaz em campanha do que tem sido Hillary, que apesar da extrema preparação nos assuntos, não tem o dom da persuasão.

Um pouco como fazia Barack em 2008 (menos em 2012, depois de quatro anos de choque da realidade com o poder), Michelle é capaz de pôr o dedo na ferida sem magoar. De falar diretamente ao bom senso das pessoas, algo cada vez mais difícil no clima dividido e maniqueísta que se vive na política e na sociedade americana.

Foi isso que fez na Convenção Democrática, quando assinou um dos discursos mais elogiados das últimas décadas na política americana, talvez só a par do que foi feito por Barack Obama há 12 anos na Convenção de Boston e do elogio de Bill Clinton a Barack Obama na Convenção de Charlotte, em 2012.

“When they go low, we go high” (Quando eles batem no fundo, nós subimos o nível, em tradução livre, para contextualizar). A frase entrou para a lista das tiradas mais bem conseguidas desta campanha e teve, obviamente, Donald Trump como alvo. Hillary anda há meses a tentar, todos os dias, fazer KO a Donald. Às vezes lá chega perto. Mas não, ainda não foi capaz de fazer o que Michelle fez numa só frase.

Bonita, Michelle conseguiu, por mérito próprio, ultrapassar os preconceitos e as barreiras raciais, e impôs-se, com estilo, classe e naturalidade, como uma Primeira Dama que as revistas adoram puxar para a primeira página, sem nunca ter que perder o seu registo focado e credível.

Corajosa, passou por cima da hostilidade republicana e foi capaz, bem mais do que o marido, de criar momentos de “consensos alargados” (algo cada vez mais raro na América de hoje).

Exemplar, deu corpo a cruzadas que valem a pena, conseguindo aproveitar a visibilidade de oito anos na Casa Branca para colocar na agenda mediática e na preocupação dos americanos o tema da obesidade infantil e da necessidade das crianças terem, desde cedo, uma alimentação correta e uma vida saudável. “Let’s Move!” é a frase forte que Michelle gosta de repetir em todas as suas intervenções públicas.

Uma história americana

Michelle LaVaughn Robinson Obama nasceu em Chicago, Illinois, há 52 anos, a 17 de janeiro de 1964. Produto da mais fina elite universitária americana, tem duas “Ivy League” para exibir no CV: é formada em Direito, em Harvard (tal como Barack), e em Sociologia, em Princeton.

Na prestigiada universidade de New Jersey, Michelle foi estudante entre 1981 e 1985, antes de rumar a Harvard (não se cruzaria com Barack, que só veio a conhecer em Chicago, na firma de advogados Sidley Austin). Nessa altura, início dos anos 80 do século passado, uma jovem negra frequentar uma das mais influentes universidades da América, não sendo inédito, ainda era visto com uma certa desconfiança.

Natural do South Side de Chicago, zona difícil da principal cidade do Illinois, Michelle é filha de um antigo técnico de caldeiras e de uma secretária que, muito nova, ficou no desemprego e se dedicou a cuidar dos filhos. O irmão, Craig, tem quase dois metros e chegou a jogar na NBA, nos Philadelphia 76ers.

A entrada de Michelle na «elitista» Princeton levou-a a escolher como tese de final de curso um tema bem revelador da sua própria experiência: “Os negros educados de Princeton e a comunidade negra”. Nessa tese, Michelle, então com o nome de solteira Robinson (só viria conhecer Obama seis anos depois), observava: “As minhas experiências em Princeton ajudaram-me a perceber a verdadeira dimensão do que é ‘ser negra’. Descobri que, em Princeton, independentemente dos professores e colegas estudantes poderem ser liberais e com mente aberta, por vezes sinto-me como uma visitante na minha própria universidade. Como se, de algum modo, eu não pertencesse a este ambiente. Mesmo que me relacione com colegas e professores brancos, parece que sou vista, primeiro, como uma negra e, só depois, como estudante” (in «Princeton-Educated Blacks and the Black Community», Michelle Robinson, 1985).

Michelle, então com 21 anos (tem agora 52), viria mais tarde a concluir Direito em Harvard e tornou-se uma advogada de sucesso em Chicago. Casou em 1992 com Barack Obama e tornou-se, em janeiro de 2009, na primeira mulher negra com a função (não oficial, mas muito importante no sistema político americano— basta dizer que até tem um gabinete e uma agenda próprios na Casa Branca…) de Primeira Dama dos EUA.

Passaram, entretanto, três décadas desde a tese (crítica) de Michelle. Os EUA mudaram muito, desde aí, a forma de encarar a integração dos negros. As duas eleições presidenciais de Barack Obama serão a maior prova disso, mas haverá ainda um longo caminho a percorrer, como provam algumas tiradas anti-étnicas do candidato republicano Donald Trump e os casos frequentes de abusos policiais contra negros, em vários estados dos EUA.

Para quem gosta destas curiosidades “trivia”, é curioso referir que, se Barack Obama é o 44.º Presidente dos EUA, Michelle é a 46.ª Primeira Dama. E, como é óbvio, a primeira negra. Mas Michelle tem sido bem mais que uma curiosidade histórica.

Muito mais.

Não, ela não quer mesmo

Os americanos apaixonaram-se por Michelle Obama e cada vez mais gostavam de vê-la concorrer à Presidência dos Estados Unidos. Mas não: ela não quer mesmo. Já o garantiu por diversas vezes e Barack Obama foi claro, numa entrevista recente, a explicar que “os horizontes de vida de Michelle não passam por se candidatar a cargos públicos”.

Nos últimos oito anos, entre muitas outras coisas, a FLOTUS foi “mom in chief”. Mas os comícios de campanha de Hillary Clinton estão a revelar uma das oradoras mais genuínas e poderosas das últimas décadas na América. Só que nem sempre a oportunidade e o talento se concretizam no mais previsível.

Michelle continuará, talvez também por isso, a ser “ma belle” para a maioria dos americanos. Mérito dela.

* Germano Almeida é jornalista; autor dos livros “Hillary Clinton – Nunca é Tarde para Ganhar” (novembro 2016), “Por Dentro da Reeleição” (abril 2013) e “Histórias da Casa Branca” (maio 2010)