“Quem não tem cão, caça com gato”. Sem a queda natural de Jerónimo de Sousa para ditos populares, foi mais ou menos isto que António Costa quis dizer à saída da aprovação do Orçamento do Estado para 2021, quando se tentava libertar das apertadas amarras parlamentares que o Bloco de Esquerda lhe tinha acabado de colocar ao saltar fora da “geringonça”. Se não há os parceiros de sempre, alguma solução se arranjará. Mas há um fiel amigo que se mantém ao lado do PS no apoio parlamentar e que não está especialmente impressionado com a delicadeza do momento social e económico. O momento político e a ameaça da direita volta a ser a cola entre PCP e PS.

Ainda na senda dos provérbios caninos, não se pode dizer que o PS tenha passado pelo congresso comunista “como cão por vinha vindimada”, mas quase. Apenas o secretário-geral e o líder parlamentar o fizeram. Jerónimo de Sousa aplicou, logo no discurso de abertura dos trabalhos, críticas que, ainda que duras, não conduziram ao anúncio de um rompimento com o partido liderado por António Costa. Pelo púlpito comunista praticamente não passaram mais ataques ao partido do Governo para além do que foi feito pelo secretário-geral, o que é assinalável num palco que reclamou ser “da oposição”. A linha que foi ficando, nas entrevistas que foram dadas à margem dos trabalhos que decorriam no Pavilhão Paz e Amizade em Loures, foi sempre de disponibilidade para continuar no esquema negocial do último ano com o PS. Paz e amizade. Mas atenção: na medida do que foi o último ano e não dos quatro anteriores em que a relação foi de papel passado.

Jerónimo nas entrelinhas. Entre a “oposição” e o poder de influenciar o PS

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A “geringonça” ficou para trás. E Jerónimo de Sousa foi o primeiro a lembrar que o tempo entre 2015 e 2019 “não foi percorrido em vão”, mas também que ficou ali. “O período da atual legislatura tem distinção significativa em relação à anterior resultante da alteração da correlação de forças das eleições de 2019″, detalhou no seu discurso garantindo que o PS “está mais liberto para dar expressões sem condicionamento às opções de política de direita que o caracterizam”. Assim, o comunista garantiu que o PCP deixou de fazer parte “de uma alegada ‘maioria'”, como nessa legislatura, e é hoje “força de oposição a tudo o que faça retroceder os interesses e direitos dos trabalhadores e do povo”.

Do PS disse que se mantém “no espartilho de opção de classe“, “amarrado” a essas mesmas opções “que limitaram o alcance e extensão da resposta que seria necessária”, que está obcecado pelo défice, que “manteve o seu compromisso de classe com o capital monopolista” e que não tem “as respostas necessárias para os problemas nacionais”. E a seguir a ele, no sábado, João Oliveira juntou mais uma série de outros mimos ao PS que “não moveu um dedo” para travar a “ação dos grandes grupos económicos”.

Congresso do PCP. As críticas que Jerónimo de Sousa deixou ao Governo

Perante tudo isto, pode até parecer improvável, mas o PCP não desiste de voltar a negociar com o PS, tanto que Jerónimo até reconheceu que “a situação exige um PCP mais forte e mais influente”, obrigatoriamente junto de alguém que — o PCP sabe — só pode ser o PS.

Disponibilidade com pés de lã ou mesmo “pantufas”

A geringonça era um tripé que, além do PCP e PEV, se apoiava também no Bloco de Esquerda, partido que neste Orçamento se afastou do Governo deixando António Costa a acusá-lo de desertar quando chegam as dificuldades. As crises económica e social que esta pandemia vai juntar à questão sanitária são incontornáveis e no PCP a convicção é que o BE errou na avaliação política ao afastar-se agora. No palco ninguém falou desta outra perna do tripé, o BE foi ignorado, mas em entrevista ao Observador dois influentes comunistas deixaram escapar o repúdio por esta nova fase do partido liderado por Catarina Martins.

O líder parlamentar João Oliveira não quis falar diretamente no BE, mas até dizer que não falaria deixou a sua análise sobre um partido que optou por “apresentar apenas 12 propostas, decidiu destacar apenas uma questão, a do Novo Banco, quando tudo o resto ao lado acabava por ficar secundarizado“. No dia seguinte, também aos microfones da rádio Observador, era Vasco Cardoso, da comissão política do Comité Central, a acusar o BE de ter calçado “logo” as “pantufas” neste Orçamento, diferenciando o PCP que “podia ter arrumado as pantufas” mas não o fez. Foram “cerca de 50 propostas aprovadas na especialidade, das 300 que o PCP apresentou”, argumentou ainda o comunista que concluiu que “valeu a pena o esforço, a intervenção do PCP”.

O PS ouviu em silêncio o que, nestes dois dias, foi sendo dito por Loures. O Observador tentou uma reação do partido às palavras de Jerónimo de Sousa, por exemplo, mas os socialistas preferem não comentar por agora. Terão, no entanto, registado o que disse o braço armado do partido no Parlamento, o líder da bancada comunista que já negociou seis orçamentos (incluindo o Suplementar que foi o único que o PCP não ajudou a viabilizar), a dada altura. Questionado pelo Observador sobre se daqui a um ano haverá condições para o PCP continuar a apoiar o PS, João Oliveira disparou com uma série de “se’s”: “Se o Governo der cumprimento ao que estiver inscrito no Orçamento do Estado, estaremos com um país diferente do que o que temos hoje. E sobretudo se o Governo executar as medidas inscritas no OE por proposta do PCP poderemos estar por um ano a falar de problemas menores do que os que temos pela frente. Se nada disso acontecer será muito mais difícil a situação em que o país vai estar e vai ser muito mais exigente essa discussão e avaliação“. Ou seja, mesmo que nada aconteça, o PCP admite “discussão e avaliação” junto do PS, mesmo que “mais difícil”. Esta porta (ainda) não fechou para António Costa.

Vasco Cardoso fazia, no dia seguinte, a síntese daquele que é o papel do PCP: “O Governo do PS não dá resposta aos problemas nacionais. A intervenção do PCP é decisiva para impedir tudo o que seja negativo e para fazer avançar aspetos positivos para os portugueses”. Não gosta que se chame “negociação” ao que faz com o PS, não faz parte de qualquer “maioria”, nem sequer quer ser “o primeiro violino de uma orquestra dirigida por sociais-democratas”, segundo disse João Oliveira aos congressistas, mas está lá para as curvas mais apertadas do PS. Até ao momento em que não estiver, com Carlos Carvalhas a lembrar que “na altura em que o PCP verificar que a política não serve que é melhor chumbar o Orçamento fá-lo-á. Sem dúvida. Uma política de direita com o PS ou uma política de direita pela direita é uma política de direita”, rematou o histórico comunista.

Também na rádio Observador, o candidato que o partido vai ter debaixo do foco nos próximos meses disse que “a disponibilidade para intervir procurando por todos os meios garantir medidas que respondam a problemas concretos sentidos pelas pessoas, não é de ontem, não é de hoje, é de sempre”. E a afirmação de João Ferreira vinha em resposta à pergunta direta sobre se a disponibilidade comunistas era para durar até ao final desta legislatura ou a negociação deste Orçamento tinha sido um último esforço. Não foi.

Vasco Cardoso: O Bloco “arrumou as pantufas” na discussão do Orçamento

Até porque à janela espreita um inimigo que o PCP acusa o PSD de “estar a normalizar”, segundo Bernardino Soares acusou no programa Vichyssoise, da rádio Observador. O Chega está do lado de lá do espectro político, mas cada vez mais próximo da relevância e influência junto do poder. O entendimento com o PSD nos Açores é visto, entre comunistas, como um passo para a radicalização de discursos também à esquerda. E isso prejudica entendimentos com o PS.

É esta a razão pela qual o PCP resiste em atirar a toalha negocial ao chão e continua a preferir fazer parte da solução de Governo atual do que de um problema de solução incerta. Manter a direita — agora como contornos mais extremos — afastada do poder continua a ser a cola destes entendimentos PS/PCP, tal como a formação da “geringonça” resultou da tentativa de afastar o PSD de Passos e o CDS de Portas do poder.

“A correlação de forças numa determinada altura pode determinar isso”, avisou Carlos Carvalhas, o homem que já liderou o partido (até 2004, ano em que Jerónimo assumiu) e foi candidato presidencial contra Mário Soares, o socialista inimigo do PCP, em 1991. Hoje a luta é definitivamente outra, embora o mote volte a ser contra os que querem “reabilitar o regime fascista”, como já disse o secretário-geral comunista sobre o Chega. E as divisões à esquerda nesta altura abrem caminho à extrema-direita. Ou como diria Jerónimo de Sousa: “São como manteiga em nariz de cão”.