Entrou pela porta grande, sai pela porta pequena.
Em 2015, Jeremy Corbyn pegou num Partido Trabalhista a recuperar dos anos da Terceira Via e virou-o de pantanas, devolvendo-o à esquerda sem medo de falar em “socialismo” e “nacionalizações”. Quatro anos volvidos, em 2019, anuncia que não vai continuar como líder do Labour em próximas eleições, depois de, no voto desta quinta-feira, ter tido o pior resultado do partido desde a II Guerra Mundial.
O que levou a tamanho falhanço? Há quatro razões principais, que aqui explicamos em detalhe.
O mistério que é a opinião de Corbyn sobre o Brexit
Jeremy Corbyn venceu as eleições para a liderança do Partido Trabalhista em setembro de 2015. Nessa altura, a política no Reino Unido era diferente da de hoje — perante um Governo de centro-direita de David Cameron, que fez privatizações e desinvestiu nalguns serviços públicos, Corbyn surgiu como o homem designado para puxar os trabalhistas para a esquerda e dizer, sem receio, coisas como “nacionalizações” ou “socialismo”, ambas palavras que o Partido Trabalhista da Terceira Via de Tony Blair tomava como palavrões.
Sem que Jeremy Corbyn aparentemente desse por isso, porém, a dicotomia reinante na política britânica passou de esquerda-direita para outra bem diferente: Leave-Remain. Ou seja, Sair ou Ficar, em resposta ao referendo para o Brexit, anunciado a fevereiro de 2016 e levado a cabo a 23 de junho desse mesmo ano.
Já na noite do referendo ficou claro para alguns que o Brexit não seria um tema que faria Corbyn perder horas de sono — literalmente, diga-se. Naquela noite, o líder dos trabalhistas não esperou pelos resultados finais e, simplesmente, foi dormir. O episódio está contado ao detalhe no livro “All Out War”, do editor de política do The Times, Tim Shipman (Guerra Aberta, sem edição em português), onde ficou patente o desespero do diretor de campanha trabalhista à altura, Brian Duggan.
“A sério que me estão a dizer que os mercados estão em crash, a libra está a cair, acabámos de sair da União Europeia, o primeiro-ministro está à beira de se demitir e o líder da oposição está na cama?”, questinou.
Passados mais de três anos desde o referendo, Jeremy Corbyn continua sem assumir, afinal, onde se situa no eixo Leave-Remain.
Nestas eleições, e só depois de um longo debate interno no partido, o líder trabalhista definiu uma posição: conseguir um acordo de saída da UE com Bruxelas que mantivesse o Reino Unido numa união aduaneira e, depois submetê-lo a um referendo. Esse referendo teria duas hipóteses: ou sair com esse tal acordo hipotético, ou não sair de todo.
E que posição é que Corbyn assumiria caso esse referendo fosse para a frente? Não se sabe — e agora não se saberá de todo, porque a complicada promessa do trabalhista foi claramente suplantada, aos olhos dos eleitores britânicos, pela simplicidade da postura de Boris Johnson: Sair.
Em setembro, o historiador e profundo conhecedor do Partido Trabalhista Steve Fielding, já dizia ao Observador que as eleições desta quinta-feira seriam divididas da seguinte maneira: “Durante este tempo todo, Jeremy Corbyn evitou o tema Brexit — e evitou-o ao ponto de nunca dizer de forma clara qual é a sua opinião neste tema. E, mesmo depois desse tempo todo, até estas eleições de 12 de dezembro de 2019, a sua opinião concreta em relação ao Brexit continua a ser um mistério”. Não se enganou.
Brexit: o dilema de Jeremy Corbyn que pode condenar o Labour “à desgraça”
Adeus à muralha vermelha, o eleitorado-fetiche de Corbyn
Primeiro, foi a Escócia. Perante a forte e histórica tradição de voto trabalhista naquela nação, era frequente ouvir-se, em dia de eleições, a sugestão, em jeito de piada, que os votos no Partido Trabalhista eram tantos que, em vez de se perder tempo a contá-los, mais valia pesá-los. Ora, essa piada não sobreviveu ao teste do tempo, desde que, em 2015, o Partido Trabalhista foi dizimado pelo SNP na Escócia — cenário que se confirma agora, nas eleições desta quinta-feira.
A perda de terreno na Escócia foi um problema que Jeremy Corbyn herdou dos passados líderes do Partido Trabalhista. Porém, a essa perda, o atual líder trabalhista juntou agora outra igualmente simbólica e devastadora: o colapso da “muralha vermelha”.
É esse o termo atribuído às cidades das Midlands e do Norte de Inglaterra onde o Partido Trabalhista era rei. Em tempos idos, naquelas cidades inseridas em zonas industriais e pós-industriais, também mais valia pesar os votos trabalhistas em vez de contá-los.
Mas, depois, veio o Brexit. Apesar de o Partido Trabalhista ter estado a favor da continuação do Reino Unido na UE, o facto é que muitas dessas cidades pós-industriais, munidas de um sentimento de abandono por parte de Londres e de repúdio a Bruxelas, votaram a favor da saída da UE.
Esse é o eleitorado-fetiche para o Jeremy Corbyn, que cita Karl Marx amiúde e que usa uma boina à Lénine — mas também é o eleitorado que esse próprio Jeremy Corbyn acabou por perder. É irónico que, apesar de o líder trabalhista representar a esquerda clássica que prefere centrar-se em temas económicos e dar menos ênfase àqueles que a nova esquerda cultiva (como são as questões identitárias), Jeremy Corbyn acabou por perder à mesma o eleitorado dessa esquerda clássica. E, continuação dessa ironia, é o eleitorado de esquerda urbano e progressista que hoje representa o maior grupo pró-Labour.
O exemplo disso mesmo é Blyth Valley, conquistado pelo Partido Trabalhista desde que aquele círculo eleitoral foi instituído em 1950. Esta quinta-feira, deixou de sê-lo, com o candidato do Partido Conservador a superar a candidata trabalhista em 712 votos.
Conservative Ian Levy wins former mining constituency of Blyth Valley, as Labour lose seat they have held since its creation in 1950
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— BBC Politics (@BBCPolitics) December 12, 2019
Antisemitismo, ou a história de um problema mal resolvido
É uma questão apontada ao Partido Trabalhista a partir de dentro e fora dele: há um problema de anti-semitismo no partido de Jeremy Corbyn.
Os problemas começaram a ser atribuídos ao próprio Corbyn, que, enquanto deputado trabalhista, sempre demonstrou simpatia pela causa palestiniana e chegou a referir-se a delegados do Hamas e do Hezbollah, com os quais se reuniu, como “amigos”. Esta foi, mais tarde, uma declaração da qual Jeremy Corbyn se viria a arrepender. “Por vezes, apareci ao lado de pessoas cujas ideias rejeito completamente”, disse.
Mas a verdade é que Corbyn alinha com esses grupos no que diz respeito às críticas a Israel — e o facto de as suas críticas surgirem de um ponto de vista muito mais distante e certamente pacífico não o poupou, ainda assim, às críticas daqueles que, dentro e fora do Partido Trabalhista, defendem a existência do estado judaico.
“Não acredito, um minuto que seja, que Jeremy Corbyn seja anti-semita”, disse Harry Fletcher, assessor que trabalhou ao lado do trabalhista nas primárias de 2015. “É uma questão institucional, não é consciente. Faz parte da esquerda do partido, que tem uma antipatia total com Israel e que muitos dizem que não devia existir.”
Perante a avalanche de críticas que surgiram contra o Labour, Corbyn acabou por anunciar a criação de uma linha para receber denúncias de incidentes anti-semitas dentro do partido. Em 10 meses, anunciou-se em fevereiro deste ano, foram feitas 673 queixas e, na sequência destas, foram suspensos 96 militantes e outros 12 foram mesmo expulsos. Porém, depois disso, foram poucos os processos anunciados de forma clara — criando a ideia de impunidade no partido para aqueles que veicularam opiniões anti-semitas.
A menos de uma semana das eleições, o Movimento Judaico Trabalhista entregou um relatório interno à Equality and Human Rights Commission, onde eram denunciadas vários exemplos de anti-semitismo dentro do Labour, inclusive naqueles que rodeiam Jeremy Corbyn. Nesse relatório, há denúncias de pessoas que ouviram comentários como “Hitler tinha razão” e que é a uma suposta “sobrerrepresentação de judeus na classe dominante capitalista que dá poder ao lóbi israelo-sionista”.
Na noite desta quinta-feira, a líder do Movimento Judaico Trabalhista, Ruth Smeeth, não hesitou em atirar culpas a Jeremy Corbyn pelos resultados desastrosos — Smeeth, que foi eleita deputada em 2015 pelo círculo de Stoke-on-Trent e que estas eleições perdeu o seu lugar.
“Jeremy Corbyn devia anunciar a sua saída da liderança hoje”, disse. “Ele fez de nós o partido nojento. Nós somos o partido racista e, quando há um primeiro-ministro que faz comentários islamofóbicos e, mesmo assim, nós é que somos o partido racista por causa das ações do meu líder — e a falta de ações dele e das pessoas com quem ele se relaciona —, então temos um problema sério.”
Ruth Smeeth sublinhou ainda que os inquéritos internos do Partido Trabalhista não levaram às medidas necessárias. “Não quero saber o que é que Jeremy Corbyn e Jennie Formby têm dito sobre anti-semitismo no partido e sobre como trataram do problema, porque simplesmente não o fizeram”, atirou.
Para o futuro, Smeeth diz que o Labour precisa de “uma desintoxicação”. “Temos de assegurar a destruição desta cultura que existe dentro do partido”, disse. “Têm de garantir que os judeus estão seguros no Partido Trabalhista porque, sinceramente, neste momento não estão.”
Corbyn ganhou sempre com os militantes, mas nunca ganhou no país
Antes de ser líder do Partido Trabalhista, Jeremy Corbyn foi dos deputados que mais desafiaram a orientação de voto daquela força política. A verdadeira rutura deu-se com a liderança trabalhista de Tony Blair, cara da Terceira Via e de tudo a que Jeremy Corbyn se opõe — e opôs-se 536 vezes, no total. Ou seja, em 15% das votações entre 1997 e até ter sido eleito líder dos trabalhistas em 2015. Era como se Jeremy Corbyn, em muitos aspetos, não fosse feito à medida do Partido Trabalhista do século XXI.
Mas, a partir de 2015, Corbyn fez — ou refez — o Labour à sua medida. Numa altura em que o Podemos espanhol dava os primeiros passos e o Syriza era já governo na Grécia, concorreu às eleições primárias trabalhistas com um discurso abertamente de esquerda, que juntava temas antigos (nacionalizações, aposta nos serviços públicos, subida de impostos aos mais ricos) com temas contemporâneos (políticas identitárias, de defesa de minorias étnicas e sexuais, entre outras).
Em 2015, venceu a liderança do partido logo à primeira volta, com 59,5%, contra três adversários, todos à sua direita. Em 2016, a braços com uma bancada parlamentar que herdou do seu antecessor, Ed Miliband (e que por isso incluía perfis mais moderados), perdeu uma moção de confiança — 172 deputados trabalhistas votaram pela sua saída e apenas 40 quiseram ficar com ele. Recusou sair, mas aceitou ir a novas primárias no partido — e venceu, contra apenas um adversário, com uns 61,8% conquistados à custa da entrada de militantes jovens e esquerdistas no Partido Trabalhista.
Mas uma coisa é ganhar no partido — e outra é ganhar no país. E, isso, Jeremy Corbyn nunca foi capaz de fazer, ao longo da sua passagem pela liderança no Partido Trabalhista. Olhemos para as três eleições disputadas pelos trabalhistas sob a sua batuta.
Primeiro, perdeu nas eleições gerais de 2017 — ficou, à altura, com 262 deputados e 40% dos votos, tudo números que aumentou em relação à prestação de Ed Miliband em 2015, mas que o deixaram, ainda assim, muito longe de poder governar.
Depois, perdeu com estrondo as eleições para o Parlamento Europeu de 2019, caindo para terceiro lugar, com 13,6%.
Por fim, perdeu as eleições gerais desta quinta-feira, com as projeções a apontarem para 201 deputados — a pior prestação do partido desde a II Guerra Mundial.