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Começa esta quinta-feira a quarta edição do Congresso Internacional Fernando Pessoa, que este ano irá decorrer na Fundação Calouste Gulbenkian, em Lisboa. Durante três dias, 42 especialistas de diferentes nacionalidades vão apresentar comunicações inéditas, lançar questões e responder a dúvidas do público, num encontro científico aberto a todos os interessados, estudantes, investigadores ou simplesmente curiosos.
Numa iniciativa que pretende ser um momento de encontro entre especialistas pessoanos, contribuindo “para o estímulo e o avanço da investigação sobre Pessoa”, como sugere uma nota de imprensa divulgada pela Casa Fernando Pessoa, responsável pela organização do congresso, o que salta desde logo à vista é nacionalidade dos oradores — a maioria não é portuguesa, mas sim estrangeira. Um reflexo claro da internacionalização do poeta.
Há muito que nos habituámos a ver na capa dos livros dedicados a Fernando Pessoa o nome de algum investigador estrangeiro. Richard Zenith, que reside em Portugal desde 1987, tem sido um dos principais responsáveis pela divulgação da obra pessoana nos últimos 20 anos, em Portugal mas também além fronteiras. Nascido nos Estados Unidos da América, Zenith tornou-se português por amor a Pessoa, numa altura em que o poeta ainda estava longe de andar nas bocas do mundo. Mas hoje, em 2017, o caso é outro — o Fernando Pessoa do século XXI já não é só nosso, é de todos.
Mas como é que se explica o interesse de tantos investigadores, de tantos países diferentes, numa obra transversal, mas ainda assim tão portuguesa, tão lisboeta? E como é que Fernando Pessoa chega às mãos de quem vive em fora de Portugal? Esta é a história de cinco investigadores, de nacionalidades diferentes, com um poeta em comum.
Anna M. Klobucka: “Há finalmente o reconhecimento de Pessoa como um dos escritores modernistas europeus mais importantes”
Anna M. Klobucka não se lembra do primeiro contacto com Fernando Pessoa, mas sabe que foi durante o Curso para Estrangeiros da Faculdade de Letras da Universidade de Lisboa, que tirou entre 1983 e 1984, que se apaixonou definitivamente pelo poeta e pela literatura portuguesa. Não que tivesse havido um “momento de revelação, de coup de foudre, do caminho de Damasco”, mas sem dúvida um interesse imediato por “um poeta com outros poetas dentro”, que parece apelar a todos — incluindo aos seus alunos da Universidade de Massachusetts, em Dartmouth, onde dá aulas de literatura portuguesa e lusófona.
Anna Klobucka, polaca, estava no terceiro ano da licenciatura de Estudos Portugueses da Universidade de Varsóvia, na Polónia, quando viajou para Lisboa com o apoio do antigo Instituto da Cultura e Língua Portuguesa (agora Instituto Camões). Entre as muitas aulas que teve, conta-se um seminário de Poesia Portuguesa Contemporânea com Joaquim Manuel Magalhães, “em que Pessoa era uma presença recorrente”. “Foi uma altura em que o interesse académico, que já estava razoavelmente desenvolvido, se aliou a uma pulsão afetiva muito clara e determinada”, recordou em conversa com o Observador. “Simplesmente nasceu em mim o desejo de poder voltar muitas mais vezes, regularmente, a Portugal e não fazê-lo como ‘turista’, ou seja, observadora distanciada, mas como observador participante.”
À licenciatura e mestrado na Universidade de Varsóvia, seguiu-se um doutoramento em Línguas e Literaturas Românicas na Universidade de Harvard, nos Estados Unidos da América. Foi aí que começou verdadeiramente a aprofundar o seu conhecimento em literatura portuguesa e, também, em Fernando Pessoa. “Mesmo sem me especializar propriamente em Pessoa no meu trabalho de investigação, nunca mais o larguei”, confessou a investigadora, que também tem trabalhado na área dos Estudos do Género.
A razão por nunca mais ter largado Pessoa é “banal”, como ela própria admite. O que mais a fascina é “mesmo a intensidade e variedade daquela galáxia de textos, subjetividades e posicionamentos que Pessoa pôs em andamento perpétuo na obra que nos deixou, e que continua a movimentar-se, gerando leituras e significados que o próprio autor não teria maneira de prever, mas que o seu génio potenciou”.
Numa altura em que o poeta português parece ser mais popular do que nunca, Anna Klobucka acredita que vale a pena pensar porque é que “só há tão (relativamente) pouco tempo” é que Pessoa “entrou para o cânone do modernismo europeu”. “Isto, claro, deve-se à posição periférica de Portugal e da língua portuguesa na cultura ocidental”, avançou. “Neste momento, há finalmente o reconhecimento mais ou menos generalizado de Pessoa como um dos escritores modernistas europeus mais importantes. Há traduções, há textos pessoanos nos círculos universitários (não só de Estudos Portugueses)”, o que não acontecia há uns anos. “Mas este reconhecimento tardou a instaurar-se, sobretudo no mundo anglo-saxónico.”
Nos Estados Unidos da América, a divulgação é hoje muito mais “dinâmica” do que era nos anos 60, quando Jorge de Sena, que integrou o corpo docente da Universidade de Wisconsin a partir de 1965, começou a divulgar a obra do poeta além-mar. “Sobretudo graças ao empenho e grande talento do Richard Zenith”, admitiu a investigadora. “Quando sair a biografia de Pessoa em que o Richard está a trabalhar, este reconhecimento que já existe subirá de patamar de uma forma muito decisiva, parece-me.” E na Polónia? “Não é muito diferente do que tem acontecido em outras partes do mundo: têm saído cada vez mais traduções e Pessoa é um nome razoavelmente reconhecível.”
Anna Klobuck vai apresentar a comunicação “Pessoa arquiteto da Literatura de Sodoma: uma revisitação” na quinta-feira, 9 de fevereiro, no bloco das 11h45. Na mesma sessão participarão também os oradores Manuela Parreira da Silva e Madalena Lobo Antunes.
Bartholomew Ryan: “Um poema de Pessoa é sobre o ‘eu’. É sobre as questões fundamentais, sobre existir”
Bartholomew Ryan estava a preparar a tese de doutoramento sobre Kierkegaard quando lhe foi parar às mãos um exemplar do Livro do Desassossego, de Bernardo Soares. Como é que isso aconteceu, já não sabe ao certo, mas de uma coisa tem a certeza: de que “foi amor à primeira vista”. Desde então, já passaram mais de 14 anos, muitas voltas e uma passagem por Lisboa que o fez trocar tudo pelo sol da capital portuguesa. Outro amor à primeira vista.
A aventura que levou Ryan a Lisboa começou num local improvável: na Aarhus Universitet, em Aarhus, a segunda maior cidade da Dinamarca. Foi para aí que se mudou em 2003, depois de ter terminado o mestrado em Filosofia, na University College, em Dublin, para tirar o doutoramento sobre o filósofo dinamarquês Søren Kierkegaard, colecionador de pseudónimos. “Tinha mais de 15. Nenhum filósofo teve tantos pseudónimos”, explicou Bartholomew Ryan ao Observador. “Também tinham personalidades e biografias, um bocadinho como os heterónimos de Fernando Pessoa.”
Ryan estava em Aarhus há cerca de dois anos quando encontrou o Livro do Desassossego. “Não me lembro como, mas acho que o descobri através do Modernismo, de Joyce e Kierkegaard”, contou. “Foi amor à primeira vista.” Os outros heterónimos só vieram depois, quando em 2007, um ano depois de ter acabado o doutoramento, visitou pela primeira vez Portugal a convite de uns amigos. “Conhecia muito bem Espanha. Já tinha visitado Madrid, Barcelona, San Sebastián, Granada… Mas nunca tinha visitado Portugal. Tinha interesse por causa da ligação com Moçambique, Angola e o Brasil.”
Foi, aliás, através do Brasil que o irlandês teve o primeiro contacto com a língua portuguesa, com a música de Caetano e de Chico Buarque. “Adorei o som da língua”, recordou. Por isso, quando embarcou rumo a Portugal, sabia que ia gostar — do país e desta “cultura atlântica” que não lhe é de todo estranha. “Sou irlandês, gosto muito do mar e da cultura do mar.”
Chegou a Portugal em setembro de 2007. Os amigos levaram-no ao Algarve, a Sintra, mas foi com a Lisboa de Fernando Pessoa que se encantou. Foi também durante essa estadia que uma amiga lhe deu de presente o poema “Tabacaria”, de Álvaro de Campos. “Foi a primeira vez que li Álvaro de Campos. E pensei: ‘Meu Deus, prefiro Álvaro de Campos!’ Depois voltei para Berlim para fazer um trabalho sobre a ‘Tabacaria’ e comecei a ler muito Campos, Caeiro. O universo de Pessoa.”
Deu aulas na Bard College, em Berlim, durante quatro anos, sempre com a certeza de que um dia haveria de regressar a Lisboa, mas definitivamente. Voltou em 2008 e depois em 2009, no âmbito de uma digressão musical em Espanha e em Portugal que o levou ao palco do Clube Ferroviário, em Santa Apolónia. É que, a par da literatura e da filosofia, a música é uma das grandes paixões do investigador. Atualmente faz parte dos The Loafing Heroes, uma banda internacional com músicos dos quatro cantos do mundo. “Vi Portugal de diferentes maneiras — através da música, da cultura. Uma coisa de que gostei muito em Portugal é que era um segredo. Agora já não, nos últimos três, quatro anos, passou a estar mais no mapa.”
Estabeleceu-se em Lisboa em setembro de 2011, quando lançou o seu projeto sobre Pessoa e Filosofia. Hoje é investigador de pós-doutoramento no Instituto de Filosofia da Universidade Nova de Lisboa, onde se dedica ao estudo do “Teatro do Eu” em Kierkegaard e Pessoa. Sobre esse assunto, co-editou em 2016 o volume Nietzsche e Pessoa, que reúne um conjunto de ensaios de vários autores que procura fazer uma aproximação entre a filosofia de Friedrich Nietzsche e de Fernando Pessoa. “Foi um trabalho de amor — de amor pela cidade e pelo poeta também“, lembrou. Mas porquê Pessoa e a Filosofia?
“Sempre tive interesse em ligar a Filosofia e a Literatura. O meu doutoramento foi sobre Kierkegaard, e desde que cheguei a Lisboa não parei de escrever sobre o ‘Teatro do Eu’, a pluralidade do sujeito na Filosofia. Kierkegaard era um filósofo, mas escreveu como um poeta. Nunca escreveu um poema na vida, mas era um género de artista — aquele que é especialmente dotado na percepção e expressão do belo ou lírico. Fernando Pessoa é o inverso de Kierkegaard — é um poeta mas também é muito filosófico”, explicou Ryan. “É muito interessante pensar em Kierkegaard através de Pessoa, e Pessoa através de Kierkegaard. E depois, quando cheguei a Berlim, comecei a trabalhar sobre Nietzsche, outro tipo de filósofo que escreve como um poeta e que também tinha este interesse pela pluralidade do sujeito.”
“Kierkegaard e Nietzsche gostavam de mostrar diferentes perspetivas de filosofia. Para os lermos temos de encontrar a nossa vida neles e algumas vezes é importante ler as diferentes perspetivas. Acho que Kierkegaard e Nietzsche eram palhaços muito sérios, o que significa que escreviam nas fronteiras da comédia e tragédia”, afirmou. O gosto do filósofo dinamarquês pelo tema da morte é um exemplo claro disso: “Escreveu muito sobre morte, porque perante a morte tornamo-nos mais acordados para a nossa vida. Ele sabia que temos de nos rir, dançar perante a morte”, explicou Ryan. “A morte é muito importante para viver. Tal como Fernando Pessoa, Kierkegaard queria pensar sobre as coisas mais duras — sobre a ansiedade, a angústia, o desespero, a morte — para viver com mais paixão. Com mais vida.”
É por esta tensão entre uma e outra área que Bartholomew Ryan não podia deixar de gostar do poeta português, que descobriu quase por acaso. Na Irlanda, se se perguntar por Fernando Pessoa, o mais provável é receber-se uma interrogação como resposta. No país de um dos maiores escritores modernistas europeus, ninguém sabe quem é o maior dos modernistas portugueses. “É uma grande tragédia”, lamentou-se Ryan, que no final de fevereiro vai visitar a University College Cork, na sua terra natal, para falar de Pessoa pela primeira vez. “Vai ser um grande choque para eles quando começar a falar de heteronímia”, brincou.
O que é de estranhar, uma vez que Pessoa nunca foi tão popular como agora. Há 30 anos, a realidade era bem diferente. “Quase ninguém conhecia Pessoa fora de Portugal”, uma situação que foi alterada, em grande parte, graças ao trabalho de tradução e divulgação de investigadores como Richard Zenith. “A primeira edição do Livro do Desassossego é de 1982. Em Portugal também aconteceu tudo muito devagar. Sempre houve textos e poemas a circular, mas só nos últimos 20 anos é que editoras como a Assírio & Alvim e a Tinta-da-China começaram a publicar muitos mais livros. O segredo de Pessoa já é menos um segredo.”
Mas, acima de tudo, Fernando Pessoa é conhecido por ser um autor que, ainda hoje, é “muito contemporâneo”. E isso nunca vai mudar. “Um poema de Caeiro, Campos ou Pessoa é sobre o ‘eu’. É sobre as questões fundamentais, sobre existir, e isso é muito importante. Não está fora do prazo, são do mundo, do agora. São perguntas sobre como existir, e são muito bonitas estas palavras.”
Bartholomew Ryan vai apresentar a comunicação “Aplicando ‘nonregionalism’ e ‘indefiniteness of soul’ de Pessoa ao cosmopolitismo radical e à pluralidade da raça” na quinta-feira, 9 de fevereiro, no bloco das 15h45. Na mesma sessão participarão também os oradores Osvaldo Manuel Silvestre e Caio Gagliardi.
Kenneth David Jackson: “Fascina o conjunto que não é conjunto, o labirinto que não permite saída”
Foi nos anos 60 que Kenneth David Jackson, professor de Estudos Portugueses na Universidade de Yale, ouviu pela primeira vez o nome “Fernando Pessoa” da boca de Jorge de Sena, que se tinha mudado com a família para os Estados Unidos da América em 1965, para integrar o corpo docente da Universidade de Wisconsin. Foi num seminário do recém contratado professor português, em 1966 (em que também se falou de Camões e Machado de Assis), que Jackson ficou a conhecer Pessoa, “numa altura em que os estudos pessoanos e o conhecimento da obra estavam num momento muito pouco desenvolvido”, como explicou ao Observador.
“Foi na época em que Jorge de Sena dizia que Fernando Pessoa-ele mesmo (como se dizia) era tão heterónimo como qualquer dos outros.” Desse seminário, lembra-se da dificuldade que Sena disse ter em conseguir receber “materiais pessoanos de Portugal” e, sobretudo, do relato do “seu encontro com Fernando Pessoa em Lisboa”. Esse encontro deu-se durante a adolescência na hoje famosa Rua Coelho da Rocha, em Campo de Ourique, onde Pessoa vivia então com a mãe e onde uma tia-avó de Sena também morava. Foi aliás a tia de Jorge de Sena que informou o cunhado do poeta que este tinha sido internado, pouco tempo antes da sua morte, como contou ao Observador Manuela Nogueira, sobrinha de Fernando Pessoa, em 2015.
Apesar do interesse que o seminário de Sena lhe despertou, Kenneth David Jackson viu-se grego para conseguir ter acesso à obra do poeta português. Numa época em que as edições eram ainda escassas (e ainda sem tradução), a única forma de ter acesso aos livros era encomendá-los do outro lado do Atlântico. “Nos anos 60, 70, os volumes da Ática estavam ainda a sair. Jorge de Sena prefaciou o volume de poemas ingleses que, na verdade, era apenas uma seleção. Desconhecia-se o Livro do Desassossego… A receção crítica contava com relativamente poucos leitores. Tinha de encomendar os livros de Portugal…”
Mas Jackson não desanimou, porque Pessoa fascina. “Fascina o conjunto que não é conjunto, os géneros que se nutrem pelo seus contrários, o labirinto que não permite saída.” E, passados 50 anos, continua a ler o poeta “e a tentar ficar a par das publicações da sua obra múltipla e multiforme”. “Apesar, de como ele próprio diz, “um professor de literatura luso-brasileira nos Estados Unidos da América não pode ter dedicações exclusiva”. Em 2010, publicou o livro Adverse Genres in Fernando Pessoa, a sua contribuição “tardia” para os estudos pessoanos.
“Falei do projeto à crítica [e especialista em poesia] Marjorie Perloff e ela achou incrível, quase impossível, haver um livro titulado Adverse Genres in Fernando Pessoa. Também achei.” A obra, uma “tentativa de compreensão do ‘método’, ou seja, da construção de um universo literário, fragmentado e paradoxal” em Fernando Pessoa, é “uma teoria mais ou menos compreensiva de leitura e ‘compreensão’ (se isto for possível quando se trata de Pessoa) do projeto literário”.
Apesar de os tempos agora serem outros, o professor norte-americano considera que “ainda não se conhece a obra de Fernando Pessoa”. “Estamos longe de ter ‘obras completas’. No entanto, estuda-se pormenorizadamente e minuciosamente cada letra ou rabisco no arquivo. Há uma proliferação de obras, quase todas diferentes entre si. Há que estudar agora a história dos estudos pessoanos.” No que diz respeito ao crescente interesse na obra do poeta, Jackson acredita que um maior número de investigadores “pode ser enganador”. Nos Estados Unidos da América, garante, “Pessoa ainda é desconhecido”. “Ou muito pouco conhecido — por alunos universitários, não é ensinado em Literatura Comparada. Não é possível ensinar ou estudar Pessoa sem acompanhar a crítica em língua portuguesa. Os ‘investigadores de Fernando Pessoa’ ainda são um clube.”
Kenneth David Jackson vai apresentar a comunicação “Desassossegos Marítimos em Fernando Pessoa” no sábado, 11 de fevereiro, no bloco das 14h15. Na mesma sessão participarão também os oradores Flávio Rodrigo Penteado e Mariana Gray de Castro.
Jorge Uribe: “Encontrei os últimos dez anos da minha vida à volta desta obra. Encontrei-os, nao os perdi”
O colombiano Jorge Uribe conheceu Fernando Pessoa da forma mais improvável: “A primeira vez que li Pessoa tinha 15 anos e li-o numa edição pirata” em espanhol. Pode parecer estranho mas, naquela época, em Bogotá, a sua cidade natal, era hábito os alfarrabistas produzirem obras de autores que eram de difícil acesso. E Pessoa era um deles. “Era uma edição muito má, que não tinha uma nota introdutória. Não tinha nada, era uma coisa muito precária”, recordou, sentado no café Flagrante Delitro, da Casa Fernando Pessoa, em Lisboa. “Tinha sido feita por um alfarrabista que imprimiu umas folhas, reuniu um poemas, e eu nem sequer a comprei! Foi-me dada por um amigo que a tinha lido e que me disse ‘olha, isto aqui é bom!’.”
O livro tinha dois ou três poemas de Álvaro de Campos, poemas de Fernando Pessoa, Ricardo Reis e Alberto Caeiro. “Mas não tinha mais nada!” E Jorge Uribe, então com 15 anos, deixou-se enganar pelas assinaturas: leu-o como se os poemas tivessem sido escritos por quatro autores diferentes e não por um escritor só, com várias pessoas dentro de si. “Eu não era propriamente a figura mais informada acerca da literatura europeia… Foi um luxo que só uma pessoa com um contacto muito marginal com a literatura portuguesa poderia ter. Ninguém em Portugal pode ler Pessoa dessa forma porque essa informação existe há muito tempo. A primeira coisa que se diz sobre Fernando Pessoa é que é um autor que tem heterónimos, como se fosse uma doença qualquer”, disse meio a brincar. “Eu não.”
Enganado pela edição pirateada, Uribe tirou as suas próprias conclusões. “O resultado foi muito simples: gostei muito de Álvaro de Campos, fiquei muito impressionado; gostei de um poema ou dois de Fernando Pessoa (achei interessante, que tinha umas frases bem feitas) e detestei Ricardo Reis. Achei aquilo insuportável. O Alberto Caeiro não me disse nada. A pergunta que me fiz naquele momento foi porque é que meteram quatro autores, que não tinham nada a ver uns com os outros, no mesmo livro. E uns eram tão bons e outros tão maus! Achei que era um problema editorial.”
Jorge Uribe andou enganado durante cerca de um ano. Até porque “naquela época não havia Google”. “Até que, finalmente, fui falando com pessoas, em círculos mais informados, e disseram-me que ‘não, isso não é assim, ele é todos esses [autores]’. E aí fiquei muito impressionado!”, contou ao Observador. “Em boa parte porque não consegui entender porque é que um homem que podia escrever daquela forma escolheu voluntariamente escrever da outra, que não era boa. Isso causou-me muita perplexidade.”
Apesar do interesse, Pessoa era, naquela altura, apenas um de muitos autores que o investigador, “uma criança interessada por literatura”, lia. Estava longe de imaginar que, um dia, aquele poeta pirateado pelos alfarrabistas de Bogotá tornar-se-ia numa parte tão central da sua vida. “Dedicar-me da forma como me tenho dedicado [ao estudo da obra de Pessoa] foi uma coisa que aconteceu por acaso — foram acasos que se foram acumulando e que, de alguma forma, foram construindo o meu percurso. Poderia ter sido muito diferente se esses acasos se tivessem dado de outra forma”, admitiu.
A viragem deu-se durante a faculdade, quando estava a estudar Humanidades e Literatura na Universidade dos Andes. “Alí já fiquei mais informado, fui lendo edições melhores, e perdi o luxo de poder dizer que não gostava de Ricardo Reis e que o achava péssimo. Mas continuou a dar-me muito trabalho — muito trabalho para o ler, para desfrutar dele.” Mas, apesar de a faculdade lhe ter dado acesso a outros materiais e de o curso ser bastante abrangente (e de incluir até uma disciplina sobre teatro asiático), não havia nenhuma disciplina de literatura portuguesa. E muito menos de Fernando Pessoa.
“Estamos a falar de inícios de 2000. Alguns professores conheciam Pessoa, mas era um desses nomes de culto. Havia pessoas muito eruditas que diziam ‘Ah, sim, Pessoa! Grande poeta!’, mas não passava disso. ‘Ah, era esquizofrénico! Escrevia uma quantidade de coisas muito estranhas!’. Durante a universidade, não tive nenhuma oportunidade de estudar Pessoa.” Talvez tenha sido exatamente por isso que, na altura de escolher um tema para a tese final de licenciatura, Uribe decidiu escolher o desconhecido poeta português. “Via uma oportunidade de, sozinho, tentar construir um percurso.”
Jerónimo Pizarro, que estava a viver em Portugal, tinha então regressado à Colômbia. “Falei com o Jerónimo e disse-lhe que tinha vontade de fazer um trabalho sobre as Notas para a Recordação de Meu Mestre Caeiro [de Álvaro de Campos] e ele achou bem, porque não é um texto muito trabalhado. Continua a não ser, tem toda uma história que justifica isso. E depois apareceu o Fradique Mendes, do Eça [de Queirós], e fiquei muito entusiasmado e decidi fazer uma tese de literatura portuguesa num departamento que não tinha nada de literatura portuguesa. Foi um ato de generosidade e de confiança da parte da minha universidade. Confiaram em mim e depois o Jerónimo foi aceite como meu orientador, apesar de naquele momento não estar vinculado à universidade. Ele agora é professor lá.”
Depois da licenciatura, candidatou-se a duas universidades norte-americanas. Uma delas chamou-o para uma entrevista mas, apesar de terem gostado do trabalho que tinha desenvolvido na Colômbia, disseram-lhe que não o podiam aceitar porque o seu português não era bom o suficiente. “Vá aprender português. Vá para o Brasil, vá para Portugal, e quando estiver melhor nesse aspeto volte aqui”, disseram-lhe, e o investigador não pensou duas vezes: fez as malas e meteu-se num avião rumo a Portugal. Só que a estadia que devia ter durado quatro meses acabou por durar seis anos. “Não aconteceu assim porque Lisboa é um lugar muito complicado para se deixar…”, admitiu. Tão difícil que acabou por se naturalizar português, “o que quer que isso possa querer dizer”, disse entre risos.
Inscreveu-se no doutoramento de Teoria da Literatura da Faculdade de Letras da Universidade de Lisboa e conseguiu ter acesso ao espólio pessoano, o que lhe permitiu realizar um tipo de trabalho que o apaixonou “à partida”. Admite que o caminho que percorreu para lá chegar foi repleto de acidentes. “Foi um acidente escolher Pessoa no final de curso, foi um acidente vir para Portugal e achar uma forma de cá ficar, foi um acidente não ter ido para os Estados Unidos. E se tivesse ido, muito possivelmente fazia outro tipo de estudo.” Mas, no meio de tantos acidentes, há uma coisa que o faz continuar: “A obra de Pessoa tem esta característica de questionar limites, questionar fronteiras”. Constantemente. Mas “não necessariamente apagando-as, mas fazendo uma espécie de jogo com estas fronteiras — a fronteira do texto, a fronteira da vida e da obra”.
“O assunto da crença é fundamental para a literatura e é também uma porta através da qual a literatura deixa de ser literatura”. “Há uma grande tendência para que essa fronteira se apague — que comecemos a não saber o que é literatura, o que é ficção, e a obra de Pessoa parece-me um excelente exercício, de uma cabeça brilhante, sobre este problema.” E é por isso — por causa do “problema da ficção”, do “problema da crença” — que Jorge Uribe procura constantemente Fernando Pessoa.
Mas se por um lado a relação com Fernando Pessoa permanece a mesma há já vários anos, a relação com Ricardo Reis mudou por completo. É que, apesar da implicância inicial, o investigador colombiano acabou por se deixar convencer pelo heterónimo. Em 2016, foi responsável (juntamente com Jerónimo Pizarro) pela edição da obra completa do heterónimo pessoano da editora Tinta-da-China e é exatamente sobre Reis que irá falar no Congresso Internacional Fernando Pessoa. Irónico, não?
“É, alguma coisa mudou…”, admitiu. “O Ricardo Reis tem uma beleza muito diferente da do Campos e eu consigo entender por que é que o meu ser dos 15 anos ficou muito seduzido por ele. Não me surpreende que sejam pessoas mais velhas a gostar do Reis porque ele tem a beleza da constância, do que perdura, do que se mantém. Da repetição. Pessoalmente, acho que isso são coisas que se adquirem com o tempo. Para um adolescente é mais difícil entender que há uma grande beleza nas paixões repetitivas do que para uma pessoa com uma certa idade. Há uma beleza na continuidade, e a poesia do Reis tem a ver com essa beleza — com aquilo que está a fugir e, no meio do que está a fugir, fixar pequenas satisfações.” Mas isso não quer dizer que Uribe goste menos de Campos. ”Continuo a gostar muito do Álvaro de Campos! Se calhar continuo a ter 15 anos de alguma forma.”
Sobre a atual popularidade do poeta português, o investigador acredita que tudo se deve a uma maior divulgação da sua obra, uma opinião partilhada por outros investigadores. “Começou a ser falado, começou a ser reproduzido, o seu nome começou a aparecer em muitos contextos diferentes. E, afinal, isso é que é o cânone é. O cânone não é uma regra, é só uma reiteração de uma informação que começa a ser vista como digna de ser partilhada, e que começa a ser repetida”, afirmou.
“Pessoa tem muito futuro. Está vivíssimo!”, acredita Jorge Uribe. E uma das razões é porque não tem fim. “A obra de Pessoa está fundada numa noção de insuficiência.” Por exemplo, quem lê um poema de Alberto Caeiro, tem de ler todos “para saber quem é Alberto Caeiro”. “E depois tem de ler Álvaro de Campos para entender Alberto Caeiro, porque há uma relação entre eles. E não se pode ler Álvaro de Campos sem se ler a discussão que ele tinha com o Ricardo Reis e, então, para entender esse discussão, é preciso ler a obra de Ricardo Reis.” É uma “rede”, como lhe chama um investigador.
“Não deixa o leitor sentir satisfação. Como os cigarros para Oscar Wilde, [que dizia que] a grande virtude do vício de fumar é que nunca nos deixa satisfeitos. E [Pessoa] funciona mais ou menos assim. É sempre preciso mais, não acaba. Pelo menos não na vida de pessoas normais do nosso tempo. Não há tempo suficiente para percorrer a obra toda.” Isto “sem pensar que nenhuma obra se fecha sobre si própria”. “Pelo menos para mim, é muito difícil ler Pessoa e não o querer ler o que ele leu, os autores de que fala, os seus amores. Os literários, pelos quais ele cultivava uma grande admiração. E aí ficamos ainda pior porque não paramos nunca!”
Apesar disso, Jorge Uribe considera que” é um luxo ter aterfactos deste género”. “E eu estou a pensar na obra de Pessoa como um artefacto. É importante redimensionarmo-nos e ver que há coisas maiores do que nós próprios. É importante sairmos da nossa hiperautorreferencialidade, da igolatria da nossa era, e enfrentá-la [a obra] como uma coisa que de facto não podemos tratar.” Mas “fazemos os nossos melhores esforços” e o tempo passado no espólio de Fernando Pessoa nunca é tempo perdido. “Encontrei anos e anos. Encontrei os últimos dez anos da minha vida à volta desta obra. Encontrei-os, não os perdi.”
Atualmente, o investigador a trabalhar na tese de pós-doutoramento, sobre as publicações em vida de Fernando Pessoa. Não vinha a Lisboa há três anos. E admite: já tinha saudades.
Jorge Uribe vai apresentar a comunicação “‘Seguro assento na columna firme’? Fluxo e contracção no nascimento de Ricardo Reis entre os papéis pessoanos” na sexta-feira, 10 de fevereiro, no bloco das 15h45. Na mesma sessão participarão também os oradores Antonio Cardiello e Nuno Amado.
Pablo Javier Pérez López: “Pessoa não acaba em Pessoa. É sempre uma janela para o mundo e para nós próprios”
Pablo Javier Pérez López tinha 18 anos quando visitou Lisboa pela primeira vez. Nascido em Valladolid, em Espanha, em 1983, foi também nessa altura que teve o primeiro contacto com Fernando Pessoa, um autor que não lhe era de todo desconhecido. Já tinha ouvido o nome antes, apesar de não se lembrar exatamente onde. “Comprei um e fiquei curioso com alguns dos versos“, contou ao Observador. “Lembro-me sempre de um [verso], o primeiro que foi deveras marcante e que ficou tatuado: ‘Minhas mesmas emoções são coisas que me acontecem‘.”
Pode ter ficado tatuado, mas depois dessa primeira viagem, Peréz López não procurou saber mais sobre o poeta português que tanta atenção lhe despertou. “Só anos depois é que entrei no labirinto”, confessou. Essa entrada — essa verdadeira entrada — deu-se já na faculdade, quando estava a pensar em tirar um doutoramento em Filosofia, na Universidade de Valladolid. “Visto que tinha um grande interesse nas relações Poesia-Filosofia, tive de escolher um autor que fosse a encarnação deste diálogo e foi nesse momento que escolhi Pessoa.”
E nunca mais o largou. “Pessoa encarna muito bem a categoria que ele próprio reivindicou no final de um poema de 1933: ‘E eu sou poeta e pensador!’. A luta entre a Razão e a Vida faz parte de Pessoa e o jogo estético da heteronímia é um desenvolvimento desse conflito trágico entre o sentimento e o pensamento, que havia também em Antero [de Quental], um dos seus mestres, que ele colocava no topo da lista dos ‘poetas-pensadores’“, explicou o investigador espanhol. “Pessoa é um poeta que pensa e que faz pensar, mesmo quando quer fugir do pensamento que é, como sabiam bem [Bernardo] Soares e [Alberto] Caeiro, dor e impossibilidade de existir.”
Depois de um labirinto chamado Fernando Pessoa, Pérez López mergulhou no “labirinto chamado espólio”, onde trabalhou de 2007 a 2009. Não apenas por curiosidade, mas porque compreendeu desde muito cedo que ainda havia muito por explorar no interior da mítica arca. Por divulgar. Além disso, “as edições nem sempre eram fiáveis”. “Não se pode ter uma ideia real do que Pessoa é, era ou significa sem mergulhar nos papéis. Ainda hoje há muitas coisas desconhecidas ou mal conhecidas.” E isso, em si, é um paradoxo. Mas, como se sabe, Fernando Pessoa era um grande fã de paradoxos.
Depois disso, publicou o livro Poesía, Ontologia y Tragedia en Fernando Pessoa (2012), fez parte da equipa responsável pelas obras do poeta na Ática e co-editou a obra Ibéria. Introdução a Um Imperialismo Futuro (2012), que reuniu pela primeira vez os textos pessoanos sobre o assunto ibérico e as relações de Portugal e Espanha, entre muitas outras obras e trabalhos. E assim se passaram dez anos.
“No meu caso, pode-se dizer que a minha paixão provém desse diálogo essencial entre poesia e pensamento, dessa dimensão trágica que persiste na sua obra e através da qual sempre tentei olhar para Pessoa”, admitiu. “Para ele, mas também para o mundo, porque Pessoa não acaba em Pessoa. É sempre uma janela para o mundo e para nós próprios. Um espelho mágico, aliás, inesgotável.”
Pablo Javier Pérez López vai apresentar a comunicação “O Pessoa Anarquista” na quinta-feira, 9 de fevereiro, no bloco das 17h15. Na mesma sessão participarão também os oradores Ana Maria Freitas e Rui Sousa.