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Quando o Porto parou para ver o casamento de D. João I e D. Filipa de Lencastre

D. João I e D. Filipa de Lencastre deram o nó a 2 de fevereiro de 1387, na Sé do Porto. Falámos com o historiador Vitor Pintor, que nos guiou aos bastidores de uma cerimónia com 630 anos.

“Não consentiu a morte tantos anos
Que de herói tão ditoso se lograsse
Portugal, mas os coros soberanos
Do Céu supremo quis que povoasse.
Mas, para defensão dos Lusitanos,
Deixou quem o levou, quem governasse
E aumentasse a terra mais que dantes:
Ínclita geração, altos Infantes.”*

Foi a 26 de dezembro de 1386 que D. João I viu pela primeira vez D. Filipa de Lencastre. O encontro deu-se na cidade do Porto, nos Paços do Bispo, em frente a uma comitiva da nobres e representantes da Igreja. Se foi amor à primeira vista, não há como saber: as crónicas da época, sem romantismo nenhum, dão apenas conta de uma breve troca de palavras antes da hora de jantar. Mas de uma coisa podemos ter certeza: foi da união entre o filho “natural” de D. Pedro I e a filha de um príncipe inglês que nasceram os “altos Infantes” que marcaram, como nenhuns outros, a História de Portugal. Aqueles a que Camões chamou de “ínclita geração”.

Apesar da fama que os filhos de D. João e D. Filipa acabaram por conquistar, não podemos esquecer o papel fundamental dos pais. D. João, fundador de uma nova dinastia, lutou pela independência portuguesa e D. Filipa de Lencastre desempenhou um papel importante na salvaguarda das alianças luso-inglesas. Foi, aliás, durante o reinado do Mestre de Avis que se firmou o mais antigo tratado em vigor: o Tratado de Windsor, a 9 de maio de 1386. Por essa razão, falar da história de D. João e D. Filipa significa também contar a história das relações entre Portugal e Inglaterra que, se tudo correr bem, sobreviverão a tudo — até ao Brexit.

Foi também por essa razão que, passados 630 anos deste casamento histórico, Vitor Pinto decidiu revisitar uma das cerimónias mais marcantes da história da cidade do Porto e, também, da História de Portugal. Licenciado em História pela Faculdade de Letras da Universidade do Porto e Mestre em Estudos Medievais pela mesma instituição, o historiador e professor decidiu retomar o tema da sua tese de mestrado e embarcar numa Viagem aos Bastidores do Casamento de D. Filipa de Lencastre e D. João I. O resultado saiu recentemente em livro (numa edição da Livros Horizonte). Aproveitámos a boleia para conhecer o que se passou naquele mês de fevereiro de 1387.

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O livro começa com um longo enquadramento histórico, que recua até ao reinado do primeiro rei português, D. Afonso Henriques. Porque é que achou necessário recuar tanto tempo na História para falar do casamento de D. João I e D. Filipa de Lencastre?
Tudo começa com a ajuda que D. Afonso Henriques pede para a conquista de Santarém e Lisboa, em 1147. É daí que datam os primeiros contactos com Inglaterra que, neste caso, foram feitos com os cruzados da chamada Segunda Cruzada [1147-1149]. Curiosamente, a cidade do Porto era, a nível ocidental, o último porto de abastecimento. Mais ou menos do Porto para baixo, só havia mouros. Era a terra dos infiéis, como eram chamados naquela época. O Porto era a última cidade onde se podia abastecer com segurança.

Depois da conquista de Lisboa, o rei elegeu um inglês, Gilberto de Hastings, para ser o primeiro bispo da cidade, procurando já aí estabelecer uma relação forte com Inglaterra.
Exato. Digamos que foi uma maneira diplomática que D. Afonso Henriques encontrou para agradecer o apoio dos cruzados ingleses. E há outro pormenor interessante, que não escrevi no livro: D. Afonso Henriques estava totalmente encaminhado para tentar conquistar Sevilha e pediu a influência de Gilberto de Hastings, o tal primeiro bispo de Lisboa, para conseguir o apoio militar inglês. Só que o rei de Inglaterra, Henrique II, não teve possibilidade de ajudar militarmente os portugueses, e Portugal ficou como ficou.

Apesar de o primeiro contacto ter acontecido durante o reinado de D. Afonso Henriques, foi com D. Fernando que se firmaram as primeiras alianças de cariz militar, como referiu há pouco.
O reinado de D. Fernando foi um bocadinho complexo, mas a nível interno funcionou muito, muito bem. Na minha opinião, e também depois de consultar muita documentação, ele foi muito mal aconselhado. Fizeram-lhe crer, e talvez até com uma certa razão, que o reino castelhano lhe pertencia. Por essa razão, e por mau aconselhamento, decidiu impor três guerras contra Castela que resultaram numa coisa muito simples: Portugal perdeu-as todas. Sempre que havia uma paz com Castela, havia um tratado, o Tratado de Alcoutim [1371], o Tratado de Santarém [1373]… E logo a seguir voltava a virar armas para Castela. E voltava a perder. Foi sempre um conflito bélico muito complicado em solo europeu e, logicamente, se Castela tinha o apoio de França, Portugal só tinha uma solução — procurar o apoio de Inglaterra.

A batalha mais famosa travada por D. João I foi a de Aljubarrota, em 1385. Por causa dela, o rei chateou-se com o Condestável de Portugal

Isso significa que, de certo modo, Portugal e Castela acabaram envolvidos no conflito entre França e Inglaterra?
Sim. E mais tarde foi John of Gaunt, o pai de D. Filipa de Lencastre, que também reclamou o trono de Castela, em 1386. Porquê? Porque tinha casado em segundas núpcias com a filha de D. Pedro I de Castela [D. Constança]. Deu-se então a invasão portuguesa e inglesa de Castela para que John of Gaunt conquistasse aquilo a que tinha direito. Mas as coisas acabaram por sair todas furadas e esse projeto caiu por terra. As tropas de D. João I e as tropas inglesas invadiram Castela mas pouco avançaram no terreno e, passados uns meses, voltaram para território português e cada um seguiu a sua vida. E depois, John of Gaunt até foi obrigado a assinar um acordo que o proibia de voltar a pousar os pés em solo castelhano.

E quem é que era exatamente este John of Gaunt?
Era o terceiro filho de Eduardo III, rei de Inglaterra. Não era filho para herdar, quem ia herdar o reino era o Príncipe de Gales, Eduardo, o chamado Príncipe Negro. Mas, apesar de não poder aspirar ao trono inglês, John of Gaunt podia aspirar a herdar o de Castela. E foi isso que fez. Quando houve a famosa Batalha de Nájera [que opôs D. Pedro I ao meio-irmão Henrique de Trastâmara], em 1367, D. Pedro I pediu ajuda aos ingleses, John of Gaunt e o Príncipe Negro, que estavam ali pertinho, na zona atual de Bordéus. Os dois ajudaram-no e acabaram por vencer. Mas houve um problema: Pedro I prometeu mundos e fundos, até a nível financeiro, e não teve hipóteses de pagar. Então, fez uma coisa que era típica na altura: ofereceu as filhas como seguro.

Só que, ao contrário do que seria de esperar, D. Pedro I nunca chegou a pagar o que devia.
Não chegou a pagar. Dois anos depois da Batalha de Nájera, D. Pedro I acabou por morrer às mãos de Henrique de Trastâmara sem pagar a dívida. John of Gaunt, como tinha grandes interesses até a nível territorial, casou pouco tempo depois, em 1372, com D. Constança [uma das filhas de Pedro I] e acabou por se tornar herdeiro de Castela por parte da mulher.

"Só por volta de finais de dezembro de 1386 é que D. João I viu pela primeira vez D. Filipa. Encontraram-se também no paço episcopal do Porto, a 25 de novembro de 1386."
Vítor Pinto, historiador

E como é que D. João I acabou envolvido nesta questão que, mais tarde, levou ao casamento com D. Filipa?
Em finais de 1386, John of Gaunt obteve autorização por parte do pai, Eduardo III, e dirigiu-se para a Península Ibérica. As tropas inglesas entraram pela Galiza e atacaram no local que hoje conhecemos como Corunha. No entanto, chegaram à conclusão de que as tropas não eram suficientes e pediram ajuda ao rei português. D. João I respondeu prontamente e, mais tarde, realizou-se o famoso encontro de Ponte de Mouro [a 1 de novembro de 1386], no qual se decidiu a ajuda militar a ser prestada pelo rei português e o posterior casamento com D. Filipa.

A proposta inicial previa o casamento com uma das filhas de John Gaunt e não falava necessariamente em D. Filipa. Porque é que D. João escolheu casar com esta filha do nobre inglês?
A outra, D. Catarina, era bastante nova, então só podia escolher D. Filipa para casar. [John of Gaunt tinha ainda uma outra filha, Elizabeth, que já tinha entretanto casado com o inglês John Hastings, Conde de Pembroke].

Quantos anos tinha então D. Filipa?
Filipa teria 26 anos e ele pouco mais do que isso. Não havia grandes diferenças de idade como era típico na Idade Média. Depois do acordo ter sido celebrado, D. Filipa saiu do sítio onde estava com o pai, que estava instalado na Galiza, e foi diretamente para o Porto, onde ficou à espera de D. João I e do casamento no antigo paço episcopal medieval, ao lado da Sé do Porto. Ela chegou em novembro de 1386 e ficou muito tempo à espera. Porquê? Com a assinatura do Tratado de Ponte de Mouro, D. João prometeu que ia arranjar militares portugueses para ajudar John of Gaunt. Então, ele e o Condestável português, D. Nuno Álvares Pereira, andaram por terras do centro e sul a arranjar homens para a campanha de Castela. E, só por volta de finais de dezembro de 1386, é que D. João I viu pela primeira vez D. Filipa. Encontraram-se também no paço episcopal do Porto, a 25 de novembro de 1386.

O casamento aconteceu na Sé do Porto, a 14 de fevereiro de 1387

D. João I era uma personagem muito interessante e aconteceu uma coisa curiosa: ele estava tão empenhado na situação da conquista de Castela que, a páginas tantas, tiveram de lhe lembrar, quando ele estava em Guimarães a cativar mais militares para agradar ao futuro sogro, que ou se casava em inícios de fevereiro [de 1387] ou então não se podia casar por causa da Septuagésima, a chamada Quaresma. Por causa da lei católica, só podiam casar passados “x” meses e isso ia atrasar a campanha. Então, ele foi à pressa de Guimarães para o Porto e pediu ao bispo para lhe fazer as bênçãos. Como se costuma dizer nos dias de hoje: casou pelo civil logo ali [a 2 de fevereiro], para a coisa ficar resolvida. E só no dia 14 de fevereiro de 1387 é que se fez o cerimonial.

Porque é que D. João escolheu a cidade do Porto para o seu casamento?
O Porto foi uma escolha pensada. Nessa altura, embora fosse uma cidade pequenina, era o centro de algumas decisões políticas. Os conselheiros de D. João gravitavam em torno da cidade do Porto, e o que era decidido podia partir daqui. Além disso, era muito emblemática por tempos passados — pela famosa reunião que houve para a conquista de Lisboa e não só. D. João I tinha uma certa admiração e uma certa estima pelo Porto porque foram os portuenses que, em 1384, ajudaram os lisboetas que estavam a morrer à fome durante o cerco de Castela. Mas também por razões geoestratégicas, digamos assim — a cidade do Porto ficava mais perto de onde estava sediada a corte de Lencastre, que estava na Galiza, e por ser uma cidade portuária, o caminho podia ser feito de barco ou a cavalo. E depois pela Sé do Porto. O Porto era uma cidade do bispo, não pertencia ao rei.

Como já referiu, a festa aconteceu dias depois, a 14 de fevereiro de 1387. Foi um evento de grandes dimensões, onde todos puderam participar.
Como escrevi no livro, a cidade era tipicamente medieval — suja, não havia grandes cuidados com a higiene. Havia normas internas que diziam que era proibido deixar lixo na rua, mas muitas vezes não eram cumpridas. Era uma cidade medieval como tantas outras e os cheios eram nauseabundos. Mas, na altura do casamento, transformou-se por completo. As ruas foram lavadas com flores, flores de bom cheiro, fizeram-se jogos e justas. Tudo para que a cidade ficasse mais respirável, vamos dizer assim [risos]. Houve um grande cuidado por parte do Concelho do Porto, que hoje conhecemos como a Câmara Municipal do Porto. Segundo as crónicas e o registo das atas do Concelho, houve muita despesa por parte dos portuenses para poderem participar na festa.

"Durante 15 dias, a cidade foi totalmente transformada. Trabalhou-se de noite e de dia para que, no dia 14, os reis e as pessoas se pudessem sentir bem."
Vitor Pinto, historiador

Foi uma festa que saiu cara.
Não deve ter sido barata. Creio que há coisas que o rei deve à cidade do Porto. No entanto, as coisas foram feitas. Durante 15 dias, a cidade foi totalmente transformada. Trabalhou-se de noite e de dia para que, no dia 14, os reis e as pessoas se pudessem sentir bem. Afinal, estamos a falar de um rei que abriu uma nova dinastia. Muita gente diz que D. João I era um filho bastardo, mas não era — era um filho natural de D. Pedro I [e D. Teresa Lourenço]. O que é que eu quero dizer com isto? Quando existe o termo “bastardia” significa que o rei já era casado e que enganou a mulher. Aí é um bastardo. D. João I era um filho natural porque nasceu antes do rei casar. Naquela época era assim que se chamava. Isto para dizer que foi um rei diferente. Foi um rei que lutou pela independência de Portugal depois de D. Fernando ter praticamente entregado o país a Castela. Poucas cidades portuguesas apoiaram a sua causa. Uma delas foi Lisboa e a outra foi o Porto.

Mas, apesar disso, foi um rei que sempre teve um grande apoio por parte do povo.
Sempre. Aliás, a região do norte, que era uma região de muita nobreza, preferiu ficar do lado de Castela. Por uma simples razão: estava a perder um bocadinho o protagonismo à medida que os anos iam avançando. Como a reconquista já estava feita há muito tempo, tinha estagnado. Se Portugal passasse para as mãos dos castelhanos, a nobreza receberia novas terras [por terem ficado do lado de Castela]. Por isso é que o norte de Portugal não apoiou D. João I e que, antes da famosa Batalha de Aljubarrota, ele e D. Nuno Álvares Pereira tiveram de “conquistar” Guimarães, Ponte de Lima, Braga, Bragança — uma quantidade de praças portuguesas do norte de Portugal que ainda clamavam a voz de Castela, de D. Beatriz [filha de D. Fernando, casada com o rei de Castela e uma das pretendentes ao trono português]. D. João é um rei diferente, é um rei do povo.

Ainda voltando à festa: diz no seu livro que “o Condestável exerceu o cargo de mestre-sala da boda real, porque o seu amplo espírito abarcava tudo na corte de D. João I”. Era uma prática normal para um Condestável?
O Condestável D. Nuno Álvares Pereira era uma pessoa que hoje fazia falta em Portugal. Era uma pessoa simples e altamente prestável. Esteve com D. João I em todas as problemáticas, vitórias, derrotas — esteve sempre ao lado dele. Na minha opinião, foi uma das pessoas mais importantes da História de Portugal e ainda está para sair uma boa biografia de D. Nuno Álvares Pereira. Era uma pessoa impressionante — esteve em Aljubarrota com D. João, no cerco de Lisboa, na Batalha dos Atoleiros, na conquista das praças de Guimarães, Ponte de Lima, em todo o lado. E depois, em 1415, passados não sei quantos anos, já eles andavam nos 50 anos, ainda foram para Ceuta. Estamos a falar de uma personagem que organizou a festa [de casamento], que fez de mestre-de-cerimónias, que organizou os comes e bebes [risos]. Era um fiel seguidor do rei, a 500%. Além disso, era extremamente inteligente, inclusive a nível militar — a Batalha de Aljubarrota foi ganha graças a ele, Ceuta foi praticamente tomada em meio dia. Depois, passou os seus últimos dias num convento em Lisboa e, segundo dizem as lendas, dormia ainda com a armadura. Não sei se é verdade ou não, mas às vezes as lendas têm um quê de verdade. Isso mostra a disponibilidade que tinha.

Depois do casamento, os reis fizeram um desfile pelas ruas do Porto, montados em cavalos brancos

Deixe-me só contar um pequeno episódio que se passou na Batalha de Aljubarrota: dois dias antes, em agosto de 1385, segundo as crónicas, o Condestável zangou-se com D. João I. Este sabia que vinha uma hoste castelhana enormíssima para conquistar Lisboa e que os portugueses não tinham como se defender, mas deu-lhe na cabeça querer fazer uma coisa diferente de todas as outras — atacar Sevilha para que as tropas castelhanas em vez de atacarem Lisboa, fossem defender Sevilha. O Condestável disse-lhe que, se fizesse isso, para não contar com ele. O que D. Nuno Álvares Pereira queria era o fator surpresa, escolher o terreno. D. João I ficou a matutar naquilo e acabou por dar razão a D. Nuno Álvares. E depois a batalha aconteceu como se sabe.

Curiosamente, foi na cidade do Porto que nasceu aquele que é talvez o filho mais conhecido de D. João I e D. Filipa de Lencastre — o Infante D. Henrique.
Em 1394. Nasceu aqui e foi também aqui que foi batizado. Mas repare: nós no Porto temos a mania de dizer que “o Infante nasceu aqui”. Ele nasceu aqui porque calhou! Na altura, a corte era itinerante — estavam no Porto como estavam em Coimbra, em Lisboa, Évora, Santarém. Calhou! A corte ia a serviço a Guimarães, pararam aqui e foi aqui que ele acabou por nascer. Estiveram no Porto uns oito, nove meses desde o período em que ele nasceu. Depois disso, o Infante D. Henrique praticamente não regressou ao Porto. Quando tinha 20 e poucos anos, veio supervisionar a armada que partiu para Ceuta. Saiu daqui uma quantidade enorme de navios.

"D. Filipa de Lencastre teve um papel importante até na altura da conquista de Ceuta [em 1415]. Mesmo sabendo de antemão que os três filhos iam para a frente da batalha, foi ela que mandou fazer as espadas."
Vitor Pinto, historiador

Até porque ele acabou por se estabelecer no sul do país.
Sim, exatamente. Foi para a zona sul do país, para a zona de Lagos e Silves, e aí ficou. E aí morreu. Nasceu aqui no Porto, é verdade, mas poucas vezes veio ao Porto. E depois existe a questão de onde é que ele nasceu. Refiro isso no livro. Defendo a hipótese de que ele, provavelmente, terá nascido na Casa do Infante. O meu orientador, curiosamente defende que foi no palácio episcopal.

Porque é que acha que foi na Casa do Infante?
Como disse anteriormente, o Porto não era uma cidade do rei. A única propriedade que lhe pertencia era a Casa do Infante, onde ficava a alfândega, que foi fundada por D. Afonso IV. Embora nos pisos inferiores passasse muita mercadoria, é bem provável que nos andares de cima houvesse condições mais do que suficientes para que a corte se lá instalasse durante oito meses. É a minha opinião, vale o que vale. Isto é uma daquelas dúvidas que vai ficar para a eternidade.

Camões chamou a esta família a “ínclita geração”. A verdade, é que cada um deles, à sua maneira, deixou uma marca na História portuguesa. Como é que se pode explicar isso?
Na minha opinião, a cultura inglesa pesou muito na decisão de certas e determinadas alianças diplomáticas. Por exemplo, no caso de D. Beatriz, filha natural de D. João I, foi a própria D. Filipa que tratou do casamento [com o inglês Thomas, conde de Arundell, Surrey e Warrenne]. Ela não se importava que fosse sua enteada e até negociou o casamento. Isabel de Portugal, filha legítima de D. João I, casou com Filipe III da Borgonha, um casamento que também foi negociado com D. Filipa por causa da sua influência. Foi ela que preservou a linhagem.

Durante o banquete, comeu-se peixe, carne e fruta. A bebida de eleição foi o vinho, está claro

Portanto, D. Filipa de Lencastre também teve um papel importante?
Importantíssimo. O irmão dela, Henrique, tornou-se rei de Inglaterra [Henrique IV] e foi ela que tratou das alianças diplomáticas com ele. Alianças que foram oleando cada vez mais as relações entre Portugal e Inglaterra. D. Filipa de Lencastre teve um papel importante até na altura da conquista de Ceuta [em 1415]. Mesmo sabendo de antemão que os três filhos iam para a frente da batalha, foi ela que mandou fazer as espadas. Por capricho deles — dos infantes D. Pedro, D. Henrique e D. Duarte –, que queriam ser armados cavaleiros não numa festa, mas numa batalha. Ela acabou por morrer de pestes uns dias antes de eles partirem, em julho de 1415. A armada saiu em agosto.

Aconselho vivamente o livro da professora Manuela Santos Silva sobre D. Filipa de Lencastre, A Rainha Inglesa de Portugal. Tem um nome bastante interessante e a professora é exímia a escrever sobre ela. Há, aliás, duas obras que toda a gente devia ler — a da professora Manuela Santos Silva e a da professora Maria Helena da Cruz Coelho, sobre D. João I. Quem quiser conhecer as características destas duas personagens que — não só na minha opinião mas também na de outros colegas –, foram das mais importantes em Portugal. Espalharam-se, ramificaram-se por esse mundo fora.

A verdade é que, passados mais de 600 anos, elas continuam vivas na memória de todos. D. João é um rei que dificilmente se esquece.
Aliás, ele tem mesmo o cognome O de Boa Memória. É o que fica. Todos foram importantes, é verdade, mas uns mais do que outros. Afonso Henriques foi o nosso conquistador, o fundador da nação, mas D. Dinis também foi importante, por exemplo. Foi ele que fez o Tratado de Alcanizes, em 1297, quando Portugal praticamente não tinha fronteiras. Neste momento, Portugal deve ser dos países do mundo com as fronteiras mais antigas. D. João também [foi importante]. Iniciou uma nova dinastia e os filhos dele espalharam-se. E, graças a um deles, além de se espalharem por essa Europa fora, espalharam-se pelo mundo. O Infante D. Henrique tinha aquela obsessão de ir mais além e conseguiu quebrar a barreira do Bojador. A partir daí, foi estender a passadeira vermelha para que os portugueses conseguissem explorar as costas africanas e, mais tarde, a Índia e o Brasil. E isto tudo graças a estas duas personagens — D. João I e D. Filipa de Lencastre.

*Estância 50 do Canto IV de Os Lusíadas (edição da Guerra & Paz), de Luís Vaz de Camões.

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