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“Pessoas frágeis, doentes e dependentes.” É assim que a sociedade vê os idosos — ou, pelo menos, é esse o estereótipo — e essa visão precisa de ser radicalmente alterada. Como? Há 30 recomendações práticas da Associação Portuguesa de Apoio à Vítima que passam, por exemplo, por ser possível deserdar um filho que não trate bem (ou maltrate) um pai idoso, por rever o conceito de violência doméstica para que mais agressores possam cair nessa categoria e gerar conhecimento, e dados, sobre os crimes de que os mais velhos são vítimas.
Estas recomendações constam do Relatório “Portugal Mais Velho”, uma iniciativa da APAV apoiada pela Fundação Calouste Gulbenkian, que será apresentado esta quinta-feira, Dia Internacional da Pessoa Idosa. Para além do relatório, assumido como uma “reflexão ética”, há propostas muito concretas apresentadas na forma de recomendações que pretendem melhorar os direitos dos seniores.
O objetivo é explicado no próprio documento: “Após esta profunda reflexão, a APAV adotou uma lista de 30 recomendações, dirigidas a várias entidades públicas e privadas com o objetivo de contribuir para reflexão sobre a legislação, as políticas públicas e as práticas em Portugal no que toca aos direitos das pessoas idosas.”
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A necessidade destas propostas prende-se com o facto de predominar uma visão negativa do envelhecimento e, também por isso, algumas das recomendações passam por mexidas nas leis laboral e fiscal: “[As pessoas idosas] são frequentemente vistas pela sociedade como pessoas frágeis, doentes e dependentes. Por sua vez, todo o grupo populacional a que pertencem estas pessoas é encarado pelas camadas mais jovens da população – a população ativa – como um encargo económico e social que pesa nos bolsos do Estado e que lhes retira oportunidades de crescimento e prosperidade.”
O paradoxo vem a seguir: “No entanto, um dos maiores sinais de prosperidade é, na verdade, o aumento da esperança média de vida, um dos fatores que tem vindo a contribuir precisamente para este envelhecimento populacional e que muitos rotulam como um dos maiores problemas da atualidade.”
Benefícios fiscais e licenças para quem cuida dos mais velhos
Uma das principais recomendações passa assim por definir uma Política de Família. Debaixo deste chapéu cabem várias alterações legislativas, como a proposta de rever o Direito Sucessório. Aqui, o objetivo é claro: permitir uma maior liberdade na disposição de bens, “garantindo que numa situação em que os descendentes de uma pessoa idosa que não a apoiem ou até maltratem possam ser ‘deserdados’”.
Mas nem só de castigos se faria esta alteração legislativa. Se quem não trata deve sofrer a punição, neste caso ficando impedido de beneficiar dos bens materiais do idoso maltratado, quem trata deve ser beneficiado.
Assim, a importância dos familiares na prestação de cuidados a pessoas idosas deve resultar na alteração do Código do Trabalho, já que a conciliação entre a vida profissional e a prestação de cuidados é uma das maiores dificuldades apontadas pelos cuidadores informais ouvidos durante a elaboração do relatório. É, por isso, “urgente combatê-la na prática”, já que a lei “continua a prever apenas licenças, reduções ou flexibilizações de horário para assistência a descendentes e não a progenitores ou outros familiares idosos”, lê-se no documento.
Por outro lado, recomenda-se também “alterar o regime de benefícios fiscais para promover a manutenção da pessoa idosa em sua casa (ou, pelo menos, no seu meio normal de vida)”.
Proteção de seniores, uma comissão que se inspira na experiência com menores
É quase como uma comissão de Proteção de Jovens e Menores, mas para adultos — adultos de todas as idades e não apenas idosos. No relatório, explica-se o porquê desta opção, depois de se discorrer sobre os argumentos a favor e contra a criação de uma estrutura que apenas cuidasse dos direitos dos mais velhos.
“Advoga-se que se se criar uma entidade que se dedique exclusivamente às pessoas idosas e às vulnerabilidades que estas podem experienciar, aumenta-se a estigmatização destas como grupo vulnerável (vistas meramente como vítimas do isolamento, doença ou violência) e consequentemente difculta-se a sua plena integração na sociedade. Ou seja, uma estrutura que pretendesse promover os direitos das pessoas idosas acabaria por produzir o efeito inverso, excluindo-as ainda mais da sociedade”, lê-se no documento.
Assim, a recomendação final é a da criação de estruturas para atuar sobre as vulnerabilidades das pessoas de todas as idades — as Comissões para Pessoas Adultas em Situação de Vulnerabilidade, de âmbito local. Para além destas, advoga-se a criação de uma comissão nacional que monitorizaria os organismos locais.
APAV ajudou mais de 5600 idosos vítimas de crime nos últimos quatro anos
“A intervenção junto das pessoas em situação de vulnerabilidade deverá seguir um modelo de intervenção mínima: as comissões só poderão atuar na estrita medida do necessário, não estando autorizadas a interferir na vida pessoal dos utentes para além da vulnerabilidade que justifica a intervenção em primeiro lugar”, explicam os relatores do documento.
Assim, a sinalização de adultos só poderá ser feita pelo próprio, por entidades por ele autorizadas ou pelo seu acompanhante em caso de incapacidade cognitiva. Ou seja, a atuação das comissões ficaria sempre dependente do consentimento do visado.
De resto, há experiências anteriores onde se pode ir beber a prática: “O desenvolvimento destas estruturas partiria da experiência adquirida das comissões de proteção de crianças e jovens e, ainda que tal não fosse imediatamente possível, caminhar-se-ia para a consolidação de uma única estrutura que atue sobre as vulnerabilidades de todas as pessoas independentemente da sua idade.”
Violência doméstica. O agressor não tem de morar na casa da vítima
É a recomendação número 12: em caso de violência doméstica, agressor e vítima não têm necessariamente de morar na mesma casa. Os relatores pedem assim para que seja conferida uma maior tutela às pessoas idosas vítimas de crime perpetrado em contexto doméstico. Para que isso seja possível, será necessário mexer no conceito de coabitação do Código Penal.
“A atual redação desta alínea [d) do n.º 1 do artigo 152.º] exige coabitação entre o agressor do crime e a vítima particularmente indefesa em razão da idade. Uma vez que em muitos casos de violência contra pessoas idosas o agressor não vive com a vítima (por exemplo, filho que tem a sua própria casa), alguns comportamentos violentos não são qualificados como violência doméstica à luz do critério da coabitação”, argumenta-se no relatório.
A solução passa por considerar-se que há coabitação desde que o agressor visite a habitação da vítima de forma tão frequente que seja razoável “considerá-lo como membro daquela, mesmo que aí não resida”.
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Por outro lado, a APAV reconhece que há poucos dados sobre os diferentes tipos de violência a que a população sénior está exposta — sublinhando que estas agressões são “uma manifestação da generalizada perceção negativa e dos constantes atropelos à autonomia das pessoas idosas” — sendo necessário produzir mais informação, principalmente sobre os fenómenos menos conhecidos e onde pode haver mais cifras negras.
“É premente produzir e disseminar mais informação acerca da violência contra pessoas idosas, em especial aquelas dimensões e tipos de violência que são ainda mais invisíveis do que o fenómeno como um todo, por exemplo, a violência institucional, a violência económico-financeira ou a violência sexual”, escreve-se no relatório. Um dos problemas apontados, e que merece uma recomendação própria, é o abandono de idosos nos hospitais.
Sobre este assunto, defende o relatório que apesar de não existirem estatísticas oficiais, há a perceção de que os casos de abandono, incluindo em instituições de saúde, “é extremamente elevado” sendo urgente compreender as suas causas.
O próprio bullying entre pessoas idosas em contexto institucional, lares e hospitais, deve ser alvo de atenção de forma a que possa haver mais conhecimento sobre as situações existentes.
Ainda entre as várias recomendações para produção de dados, a APAV sugere que se realize um estudo sobre o impacto da população idosa nas contas do Estado — à semelhança do que foi feito em 2003 à população imigrante. O objetivo seria “compreender a ‘economia da terceira idade’ e outras formas através das quais as pessoas idosas contribuem ativamente para a economia”.
Melhorar a imagem, aumentar a formação
Para além das várias mudanças legislativas, as recomendações da APAV também se ligam a questões de mentalidade. “É fundamental desconstruir os mitos que persistem acerca do envelhecimento, dissociando as ideias de envelhecimento, doença e encargos sociais, e conferir às pessoas idosas uma participação mais equitativa e uma visibilidade mais justa.”
Para chegar a essa meta, defende, é preciso capacitar e empoderar os mais velhos para reivindicarem os seus direitos, como se explica no documento: “Nesta necessária mudança de paradigma, as pessoas idosas deixam de ser um sujeito passivo, pessoas que precisam de ajuda e proteção, e passam a ser vistas como seres humanos com direitos.”
Para alcançar este objetivo, que implica mudanças de fundo, há várias recomendações que passam, por exemplo, por abordar estes temas na educação académica das crianças e jovens. “As camadas mais novas da população são, muitas vezes, o motor da mudança do pensamento da sociedade, tendo a capacidade de aprender e de ensinar valores aos outros. Se, desde cedo, desenvolverem o pensamento crítico, mais facilmente reagirão de forma ativa aos estereótipos e preconceitos que lhes são transmitidos pela sociedade.”
Não são apenas as crianças que a APAV defende ser necessário formar sobre estas questões: também os jornalistas fazem parte desse rol. Ainda na comunicação social, uma das recomendações passa por alterar a representação normalmente feita das pessoas idosas. Tão importante como a imagem são as palavras e outra proposta pede que se adotem termos mais adequados no que diz respeito aos cuidadores: cuidadores informais passariam a ser cuidadores familiares, e no caso dos formais passariam a chamar-se cuidados profissionais.
Por último, há mais seis recomendações ligadas ao conhecimento de quem trabalha com idosos e que passam, entre outras, por garantir uma melhor formação dos profissionais de saúde e da área social, assim como dos dirigentes ou proprietários de equipamentos para pessoas idosas.
Veja aqui a lista completa das 30 recomendações
Pode ler aqui o relatório na íntegra
- Adotar uma perspetiva de direitos humanos transversal a diversas áreas da atuação do Estado.
- Promover uma visão positiva das pessoas idosas
- Generalização (mainstreaming) do conceito de envelhecimento ativo e saudável
- Realizar um estudo sobre o impacto da população idosa nas contas do Estado
- Traçar o retrato continuamente atualizado da violência contra pessoas idosas em Portugal
- Apresentar dados desagregados sobre a vitimação de pessoas idosas nas Estatísticas da Justiça
- Sensibilizar a sociedade para as consequências da violência contra pessoas idosas
- Perceber e combater a invisibilidade da violência institucional
- Melhorar os procedimentos de fiscalização das instituições que acolhem pessoas idosas
- Compreender os fatores de proteção que podem diminuir a vulnerabilidade de uma pessoa idosa
- Compreender as causas e a incidência de situações de abandono de pessoas idosas em hospitais
- Conferir uma maior tutela às pessoas idosas vítimas de crime perpetrado em contexto doméstico
- Promover a adoção de termos mais adequados no que diz respeito aos cuidadores
- Promover a formação dos profissionais de saúde e da área social para a adequada prestação de cuidados a pessoas idosas
- Desenvolver uma estratégia nacional para a formação de cuidadores/as informais ou familiares
- Garantir a formação dos dirigentes ou proprietários de equipamentos para pessoas idosas
- Certificação/reconhecimento da carreira profissional nas áreas da gerontologia
- Criar mecanismos de supervisão e de apoio dos/as cuidadores/as formais ou profissionais e informais ou familiares
- Definição de uma Política de Família
- Produzir mais conhecimento sobre a violência entre pessoas idosas em contexto institucional (bullying entre pessoas idosas)
- Desenvolvimento de uma estrutura de base comunitária com competência para atuar sobre as vulnerabilidades das pessoas de todas as idades — Comissões para Pessoas Adultas em Situação de Vulnerabilidade
- Desenhar uma estratégia de informação sobre os tipos de violência contra pessoas idosas, como preveni-los e como reagir
- Adoção de manuais de boas práticas a utilizar pelos/as profissionais/as que trabalham com pessoas idosas
- Alterar a representação normalmente feita das pessoas idosas nos meios de comunicação
- Promover a formação de jornalistas sobre violência, em particular violência contra pessoas idosas
- Estimular a aprendizagem ao longo da vida
- Promover programas e soluções intergeracionais com impacto positivo comprovado, estimulando, desde logo, as relações entre as gerações no seio da família
- Integrar o paradigma dos direitos humanos na educação e formação académica das crianças e jovens
- Melhorar implementação, avaliação e impacto dos programas e/ou projetos na área do envelhecimento ou que tenham por destinatárias pessoas idosas
- Monitorizar e avaliar as políticas públicas na área do envelhecimento através da criação de um grupo de trabalho interdisciplinar e interministerial e com participação da sociedade civil na dependência do Gabinete da Ministra de Estado e da Presidência.