É, praticamente, uma estrutura ministerial. Para coordenar a Comissão Executiva que fica responsável por preparar o programa oficial das comemorações dos 50 anos do 25 de Abril, António Costa convidou o ex-secretário nacional do PS Pedro Adão e Silva. O comissário executivo (com direito a motorista) desta estrutura lidera uma equipa com, pelo menos, outras oito pessoas: um comissário adjunto na coordenação de uma “estrutura de apoio técnico” composta por outros três adjuntos, três técnicos especialistas e um secretário pessoal — elementos “equiparados, para efeitos de designação e estatuto, a membros do gabinete de membro do Governo”.

Mas esse grupo pode ainda crescer, se forem recrutados — como se admite na resolução do Conselho de Ministros — “até quatro técnicos superiores”, em regime de mobilidade. E esta é apenas uma das diferenças face às celebrações de anos anteriores. Um Ministério da Revolução, portanto.

Em termos comparativos, nas comemorações dos 30 anos do 25 de Abril, António Costa Pinto foi convidado para ser comissário executivo de uma equipa de três pessoas. Além dele próprio, faziam parte dessa comissão de honra a historiadora, e também professora universitária, Maria Inácia Rezola e, ainda, um membro da antiga Comissão Nacional para as Comemorações dos Descobrimentos Portugueses.

Nesse caso, António Costa Pinto foi requisitado para aquelas funções sem acumular o salário com qualquer outro tipo de rendimentos decorrentes das novas responsabilidades. E, durante um ano, interrompeu a sua atividade como docente. Mas — como acontece agora com Adão e Silva — tinha direito a motorista.

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Dez anos mais tarde, a coordenação dos 40 anos do 25 de Abril recaiu sobre Miguel Poiares Maduro. Foi o próprio ministro Adjunto de Pedro Passos Coelho quem coordenou a equipa responsável por organizar os eventos comemorativos das quatro décadas passadas sobre a Revolução.

Criou-se um grupo de trabalho com elementos externos ao seu gabinete para preparar as comemorações, estabeleceram-se parcerias com órgãos de comunicação social, convidaram-se artistas para reeditar canções de autor, montou-se uma exposição itinerante pelo país — e estimavam-se, segundo o então ministro, gastos totais de cerca de 300 mil euros nos vários eventos. Segundo o Observador apurou, o valor não terá, na verdade, ultrapassado os 250 mil euros. Desde logo porque muitos dos intervenientes participaram em regime de pro bono, o que reduziu os gastos a pouco mais que custos de logística: o maestro Rui Massena (no concerto em Grândola), o arquiteto José Mateus (com a exposição itinerante e nos vários locais emblemáticos do 25 de Abril) e a designer e empresária Guta Moura Guedes (com a exposição sobre o design da Revolução) são exemplos de comissários que colaboraram com a preparação das celebrações nesse regime.

4500 euros por mês só para comissário executivo

Agora, só o salário de Pedro Adão e Silva andará à volta dos 300 mil euros. Foram essas as contas que Rui Rio fez: cerca de 320 mil euros até ao final de 2026 (tempo de vida da estrutura de missão das comemorações), apontou o líder do PSD, numa reação ao nome do comissário executivo das comemorações.

“É absolutamente escandaloso, pode perfeitamente ler-se que é um pagamento pelos serviços prestados ao PS com impostos dos portugueses”, atirou o líder do PSD, numa alusão aos espaços de comentário e análise política em que Adão e Silva tem assento (tem presença regular no programa Bloco Central, na TSF, é colunista do semanário Expresso, faz comentário político na RTP, entre outros órgãos de comunicação social).

Marcelo admite que deu “aval” a Adão e Silva e diz ser escolha “muito consensual”

Rio não foi o único a condenar a escolha de Pedro Adão e Silva e os contornos da cerimónia. Francisco Rodrigues dos Santos, líder do CDS, acusou o Governo de “não olhar a meios para promover um dos protegidos do ‘socialistão’, amplamente conhecido enquanto porta-voz da propaganda socialista“.

Na Madeira, onde vai estar a assinalar o 10 de junho, o Presidente da República não podia ter estado mais alinhado com o primeiro-ministro (afinal, coube-lhe a escolha da figura institucional de proa das comemorações, Ramalho Eanes). Marcelo garantiu que a escolha do comissário executivo foi feita com o seu “aval”.

Marcelo chegou mesmo destacar os traços de “historiador” e de “politólogo atento à realidade contemporânea do país” do ex-dirigente socialista para justificar esta escolha. No final, defendeu Marcelo, tratou-se de uma escolha “muito consensual”.

Telegráfico, António Costa veio também defender a sua escolha,  apontando diretamente a Rui Rio: “É uma declaração tão insultuosa que, por uma questão de respeito com o líder da oposição, me exige que a ignore”.

O nome de Pedro Adão e Silva foi oficializado no final da semana passada. E, na mesma resolução em que se confirma a escolha do antigo dirigente socialista para liderar a Comissão Executiva que irá preparar as comemorações do 50º aniversário da Revolução, ficou também a saber-se que essas funções vão valer-lhe uma remuneração mensal de cerca de 4500 euros brutos: o documento refere que Adão e Silva e o seu futuro “adjunto” (o nome ainda não é conhecido) “são equiparados, para efeitos remuneratórios e de competências, a dirigentes superiores de 1.º e de 2.º graus, respetivamente”.

De acordo com o estatuto remuneratório dos dirigentes da Função Pública, a um cargo de direção superior de 1º grau — como é o caso — são atribuídos 3745,26 euros brutos mensais, a que se somam 780 euros referentes a “despesas de representação”. No caso do adjunto, está em causa uma  remuneração de 3183,47 euros, mais 585,56 euros em despesas de representação.

Adão e Silva e o seu adjunto poderão, além disso, manter as suas funções de docentes. O ex-dirigente socialista é professor universitário na Escola de Sociologia e Políticas Públicas do Instituto Superior de Ciências do Trabalho e da Empresa – Instituto Universitário de Lisboa (ISCTE-IUL).

A Comissão Executiva é um dos três órgãos da estrutura de missão oficializados no final da semana passada. Haverá ainda um Conselho Geral, nomeado pelo primeiro-ministro, com “individualidades de reconhecido mérito e ativismo em dimensões fulcrais na construção da democracia” e que dará um parecer sobre o programa oficial das comemorações; e ainda uma Comissão Nacional, para a qual o Presidente da República convidou o antigo Presidente da República Ramalho Eanes e à qual caberá dar a última palavra (ou seja, aprovar) sobre esse programa.

Delfim de Ferro e um convite para a moção de Sócrates

Mas a polémica à volta do nome de Pedro Adão e Silva não se faz apenas devido ao vencimento que lhe está destinado nas novas funções. É, também, e como apontava Rui Rio, uma questão de proximidade ao universo socialista aquilo que tem animado as críticas das últimas horas.

Em 2002, o então secretário-geral do PS, Eduardo Ferro Rodrigues, chamou Adão e Silva para o seu secretariado nacional. O sociólogo fez, aliás, parte do “Movimento Imaginar Portugal”, um clube de reflexão política onde pontuavam outros jovens quadros do PS — como Mariana Vieira da Silva, Fernando Medina e Filipe Nunes.

Mais tarde, em finais de 2008, quando já tinha iniciado o seu afastamento em relação à militância no PS, foi “surpreendido” com o convite para colaborar na preparação da moção que José Sócrates leva ao congresso do ano seguinte. Depois disso, não voltou a ter intervenção direta na política partidária.

O quase “silêncio” de Adão Silva

O Observador tentou contactar o agora formalmente comissário executivo das comemorações dos 50 anos do 25 de Abril. Mas não conseguiu, até ao momento, obter qualquer reação.

Apesar de se ter tornado um caso político — Rio e Rodrigues dos Santos criticaram a escolha; Marcelo e Costa defenderam — Adão e Silva ainda não se pronunciou publicamente sobre a controvérsia e tem optado pelo “quase” em silêncio.

Esta terça-feira, ainda antes de o caso ter atingido as proporções que atingiu, o professor universitário recorreu ao Twitter para reagir às críticas de que era alvo. Confessando “algum otimismo em relação ao atual estado da democracia”, acabaria por admitir a possibilidade de estar “equivocado”, ao constatar a “vasta” frente de figuras que foram criticando a escolha.

“Afinal, é bem mais vasta do que antecipava a coligação de quem pensa que celebrar os 50 anos da nossa democracia não merece nem ambição programática nem dignidade institucional“, escreveu.

Antes disso, em entrevista ao Público, Adão e Silva disse que as comemorações de meio centenário de democracia “têm de ser uma celebração daquilo que nos une enquanto comunidade política e encerram um grande desafio: conciliar a celebração da memória da resistência e da revolução com a capacidade de imaginar o futuro da democracia portuguesa”.

Dois anos a celebrar “o arco democrático”

Era também isso que transparecia da resolução que formalizou a estrutura de missão para 2024, onde se revela, de resto, uma diferença substancial em relação a comemorações de datas redondas anteriores. Ao contrário do que aconteceu em 2004 e em 2014, o esboço do programa oficial que Pedro Adão e Silva deverá apresentar até ao final deste ano não se esgota nas cerimónias do 25 de Abril.

“O propósito destas celebrações”, refere a resolução do Conselho de Ministros da semana passada, “é juntar, no mesmo ciclo, um arco democrático que se iniciou no 25 de Abril de 1974 e que, ao longo do ano de 1976, passou pela aprovação da Constituição, pelas primeiras eleições legislativas, presidenciais e regionais e que culminou com as autárquicas no final desse mesmo ano”.

Essa abrangência temporal explica, por um lado, a longevidade da estrutura de missão, que se prolonga até 31 de dezembro de 2026. E, por outro, pode servir de justificação para a reunião de uma Comissão Executiva mais alargada, além da existência de uma Comissão Nacional e de um Conselho Geral.

Até porque as celebrações não se esgotam num dia: “Devem valorizar os momentos evocativos da Revolução e ser também uma oportunidade para deixar uma marca que associe o passado a uma projeção do futuro que perdure”, assinalada a resolução do Conselho de Ministros.