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Jackie com o comité de Belas Artes, criado para o efeito de renovação na Casa Branca

Jackie com o comité de Belas Artes, criado para o efeito de renovação na Casa Branca

"Tornar a Casa Branca elegante outra vez". Quando Jackie renovou, melhorou e mostrou as assoalhadas através da televisão

Em 14 de fevereiro de 1962, Jacqueline Kennedy liderava uma inédita tour nos ecrãs norte-americanos, no primeiro documentário do prime time dirigido ao público feminino. E que lhe valeu um Emmy.

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O lema podia ter sido este: “tornar a Casa Branca elegante outra vez”. Não seriam precisos bonés mas é quase certo que a artífice da proeza não esperava menos que um resultado digno de bater a pala. Sentados nas suas salas, frente ao televisor, nesse 14 de fevereiro de 1962, os espectadores norte-americanos fariam a verificação dos factos ao assistirem a um momento inédito no ecrã. “A Tour of the White House with Mrs. John F. Kennedy” estreava-se na antena da CBS e NBC, umas semanas depois de a primeira-dama do país ter aberto as portas da Casa Branca para uma visita guiada pelo número 1600 de Pennsylvania Avenue, com o correspondente Charles Collingwood a acompanhar a cicerone de serviço ao longo das recém-renovadas assoalhadas. O entusiasmo não era para menos. Pela primeira vez na história, as câmaras filmavam o interior do histórico endereço, um acontecimento que humanizava a relação do casal Kennedy com os milhões do outro lado. Jackie, a “mulher que compreendeu a arte do marketing pessoal muito antes da existência das Kardashians“, estendia os dotes de anfitriã e a ponte estrategicamente construída entre a presidência e o público — recorde-se como umas semanas antes dessa receção, a senhora Kennedy se esmerara na decoração da árvore de Natal na Casa Branca, uma tradição que sobrevive até hoje, temática após temática, num ritual encetado na Sala Azul pela antiga-primeira dama.

[Um dos momentos do documentário, com Jacqueline Kennedy a apresentar ao público a sala reservada aos banquetes de Estado e a discorrer sobre os talheres e a porcelana usada]

Em “Jackie”, filme de Pablo Larraín que valeu três nomeações aos Óscares, incluindo o de melhor atriz a Natalie Portman, percebe-se como a visita, recriada ao pormenor, continua a ressoar tantos anos depois. Uma tour televisiva que levou Mary Ann Watson, professora da Universidade do Michigan, a debruçar-se numa tese sobre o impacto do périplo. No resumo de “A Tour of the White House: Mystique and Tradition”, editada no inverno de 1988 pela Presidential Studies Quarterly, a autora admitia que o conceito de analisar um objeto televisivo como um artefacto histórico era relativamente novo mas garantia que o mesmo se trata de um “rico documento social, com a simbiose entre o ocupante da Sala Oval e as câmaras de televisão a pautarem toda uma presidência, altamente telegénica. Mas, antes de mais, importava renovar.

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A primeira visita, a “pavorosa Maison Blanche”, e o Comité de Belas Artes

A afinidade de Jacqueline Kennedy com o edifício começou muito antes desse presidencial check in. Para a história passou a entrevista de Jackie a Hugh Sidney, que nas páginas da revista Life recordou o momento, em 1941, quando, ainda muito jovem, viu pela primeira vez a Casa Branca, numa visita turística com a mãe a a irmã. “De fora, lembro-me da sensação do lugar. Mas por dentro, tudo o que me lembro é de vasculhar por ali. Não havia sequer um guia que se pudesse comprar. Mount Vernon e a Galeria Nacional de Arte causavam uma impressão muito maior.”

Haveria de voltar à Casa Branca antes da tomada de posse do marido, a convite da primeira-dama Mamie Eisenhower, para mais uma desilusão com a aparência deste reduto. De tal forma que a classificou como “aquela pavorosa Maison Blanche”, com aspeto de “casa do século XVIII”, que não refletia o património artístico dos EUA nem o estilo das presidências passadas.

Duas décadas volvidas, com a tomada de posse de Kennedy em janeiro de 1961, Jackie assumiu como desígnio para esse ano inaugural de presidência a renovação e redecoração da residência oficial. Um vasto projeto que haveria de ascender aos 2 milhões de dólares à época e que se seguiu à intervenção de outro consulado. Durante a administração Truman, a Casa Branca, que entretanto se tornara uma estrutura arquitetónica pouco segura (de tal forma que a família do presidente se teve que mudar do espaço), passara por uma renovação entre 1949 e 1952. Depois deste conserto de fundo, os Kennedy haveriam de reforçar o seu caráter e conferir-lhe o polimento que faltava.

Para o processo de extreme makeover haveria de recrutar dois nomes de peso: Henry Francis du Pont, conhecido pela veia de colecionador de artefatos americanos, e Stéphane Boudin, reputada designer francesa e responsável pela House of Jansen, empresa de decoração líder no mercado. Juntos, comporiam o Comité de Belas Artes que lideraria a transformação das assoalhadas. A esta equipa juntar-se-ia a influência de Lorraine Waxman Pearce, a primeira curadora da Casa Branca, que morreu em 2017. Pearce ajudaria a ampliar o leque de peças que viriam a granjear espaço nas diferentes divisões e seria a autora do primeiro guia sobre o mobiliário da Casa Branca, ainda que o trabalho com Jackie não tenha sido o mais sereno — demitiu-se de funções em 1962, sendo que a primeira-dama não terá aprovado a sua inclinação para tomar decisões dispensando a sua aprovação final.

Jackie durante um chá oferecido ao comité de Belas Artes, criado para o efeito de renovação na Casa Branca. Ao seu lado, o conhecido coleccionador Henry Francis du Pont

Facto é que o vasto restauro permitiu aumentar o espólio da Casa Branca graças às novas aquisições — mais de 500 — um acervo que, de acordo com uma lei aprovada durante a presidência Kennedy, transitaria para o Smithsonian caso a família em funções decidisse que não queria este ou aquele item na Casa Branca. Num lugar tão especial quanto este, Jackie apostava na distinção e história das peças, exemplares que vieram povoar a maior parte dos aposentos familiares no segundo andar e quase todas as áreas públicas do piso de Estado. A residência assumia assim as feições de um museu e, não por acaso, estabelecia-se a Associação Histórica da Casa Branca, que acabaria por assumir as funções de um valioso museu.

Para muitos um exercício de vaidade, a remodelação promovida por Jacqueline apostava em recuperar um certo orgulho americano numa morada que perdera algum desse brilho. Não por acaso, no final do formato especial transmitido na TV, o presidente John F. Kennedy sublinhava o papel da sua mulher no resgate do simbolismo. “Qualquer um que chegue à Casa Branca como presidente deseja o melhor para o seu país, mas acho que recebe um estímulo do conhecimento de viver perto das pessoas que são lendárias, mas que realmente estavam vivas e usaram estas salas.”.

Apesar do valor avultado que atingiram as obras, Jackie conseguiu angariar fundos a título privado e garantir peças que outrora pertenceram a anteriores presidentes, agora renascidas nesta nova encarnação da Casa Branca. Só faltava partilhar o resultado da mudança com o público, com um périplo pelo Red Room, Lincoln Bedroom, ou pela State Dining Room.

Do vestido encarnado de São Valentim à nova Sala Azul: as novidades sala a sala

A Collingswood, a sua companhia na visita pela Casa Branca que chegaria aos ecrãs norte-americanos, Jackie explicou como na residência encontrara muito poucos elementos anteriores aos anos 40 do século passado, e como passou cerca de um ano no encalço de peças de mobiliário e decoração entretanto desaparecidas. Para alargar o espectro do recheio, a primeira-dama escavou, pediu emprestado e apelou à generosidade de terceiros de forma a reencontrar algumas preciosidades originais. “Os americanos devem estar orgulhosos”, afirmaria Jacqueline Kennedy no documentário, depois de aturada maratona. “Temos uma grande civilização. Muitos estrangeiros não o compreendem. Penso que esta casa deve ser o local onde mais observamos essa qualidade”. Quando o especial televisivo foi para o ar, já a primeira-dama se desembaraçara das cortinas verdes do quarto, dos velhos cinzeiros e do ar pouco apelativo de um hall de entrada que, segundo a própria, mais parecia “um abrigo anti-bombas de um consultório de dentista”.

Transmitido no Dia de São Valentim, a protagonista respeitou a toada, optando por um vestido encarnado, e absteve-se dos habituais três maços de tabaco enquanto as câmaras estiveram presentes. O cenário estava oficialmente pronto para receber no futuro todas as glamorosas receções organizadas pela mulher que converteu a Casa Branca numa montra das principais conquistas intelectuais e culturais. Autores e atores, artistas e cientistas, cruzar-se-iam com políticos, diplomatas e outras figuras do Estado — na East Room, Jackie ergueu um palco desmontável para atuações de música e teatro.

Das zonas privadas às áreas públicas, a intervenção da primeira-dama estendeu-se às diferentes assoalhadas, conhecidas pelas suas cores distintivas

Revelador foi também o encontro com uma revista francesa de 1946 que terá alimentado a recolha histórica feita pela primeira-dama, que assim descobria que a Casa Branca chegou a exibir mobiliário de madeira ao estilo francês, construído por Pierre-Antoine Bellangé. Conseguiu ainda determinar o posicionamento original das peças encomendas pelo presidente James Monroe em 1818 — encontraram por exemplo um busto de George Washington numa casa de banho masculina, que foi reconduzido à dignidade do Blue Room. E se a Diplomatic Reception Room ganhou novo papel de parede, originalmente concebido pela Jean Zuber et Cie, de 1834, na State Dining Room a ênfase foi colocada no trabalho de Charles Follen McKim, cuja empresa McKim, Mead & White assegurara boa parte da renovação da Casa Branca em 1902.

A Red Room adquiriu semblante gaulês e acomodou sofás como os que pertenceram à neta de George Washington, Nelly Custis, ou um lustre de 1820. Já o Green Room foi o que gerou maior consenso entre o comité de Belas Artes, com um espelho de George Washington a transitar para este espaço, e a chegada de um sofá que pertenceu a Daniel Webster. As doações ajudaram a completar o cenário: Maurine Noun de Des Moines, Iowa, enviou à primeira-dama uma secretária de Baltimore. Uma pintura de Andrew Jackson rumou ao Lincoln Bedroom e o Yellow Oval Room passou a ser usado pelos Kennedy como sala de desenho.

O espectáculo que não agradou a todos — mas valeu um Emmy para uma primeira-dama

A produção do documentário ficou a cargo de Perry Wolff, enquanto Franklin J. Schaffner realizou o formato que haveria de ser financiado conjuntamente pelas três principais emissoras, CBS, NBC e ABC, numa transmissão conjunta. A direção musical foi confiada ao maestro Alfredo Antonini. Oito foram as horas de gravações, com 54 técnicos a marcarem presença no local. O resultado final chegou a mais de 80 milhões de espectadores e 50 países.

O sorriso semi fechado e a forma monocórdica como a certos momentos debitou uma lista infindável de items foram acolhidos como falhas menos graves, incapazes de ditar o fracasso. De resto, certa crítica chegou a considerar o conteúdo “televisão no seu melhor”, enquanto de toda a América chegaram cartas, postais, telegramas e outras palavras elogiosas para a primeira-dama. Mas nem todos anuiram.

JFK Library

Em julho de 1962, no ensaio para a revista Esquire “An Evening With Jackie Kennedy”, o escritor Norman Mailer recordou um encontro com a primeira-dama em Hyannisport, a escassa distância da sua casa de verão em Provincetown. “Gostei dela”, admitiu, “mas não era genuína”. A célebre tour realizada uns meses antes não escapava à sua pena. Mailer comparou o som da voz de Jackie no documentário com o timbre que lhe conhecia, distante desse registo melodioso para as câmaras, e revelou que a primeira escuta “produziu um pequeno choque contínuo”. Criticou ainda a infindável enumeração de objetos e os nomes dos ricos que os haviam doado. “À medida que os olhos seguiam a Sra. Kennedy … [….] enquanto aos ouvintes era oferecida uma referência ao sofá favorito de Dolly Madison, ou ao relógio Minerva do Presidente Monroe, ao sofá de Nellie Custis, à pobreza em fim de vida da Sra. Lincoln, ao sofá de Daniel Webster… a apresentação começou a assumir o ar desnutrido e exagerado de um espectáculo de caridade, ou de angariação de fundos para uma nova doença”, escreveu, compensando com um soneto mal emendado. “De alguma forma, gerou empatia o facto de ela circular por ali como uma estrela sem talento algum“.

Jackie On Tour Jackie's Pre-Tour

A circular pela Casa Branca e num momento de pausa durante as gravações do documentário

Getty Images

O veredito foi um ponto final nos convites dos Kennedys para receber Mailer em Hyannisport.

Nada que bulisse com o entusiasmo generalizado do grande público. Contas feitas, Jackie venceria o Academy of Television Arts & Sciences Trustees Award na cerimónia de entrega dos Emmy nesse ano de 1962, um troféu recebido por Lady Bird Johnson.

A inspiração para outros formatos no feminino e um livro

“Em fevereiro de 1962, Jacqueline Kennedy apresentou-se ao país”, abria assim a sua intervenção Tom Pullman, o então diretor da Biblioteca Presidencial e Museu Kennedy, lembrando em 2012 como muitos conheciam a primeira-dama enquanto mulher do presidente, mãe de filhos e figura charmosa que encantaria líderes políticos. Mas com a visita televisionada, 46 milhões de norte-americanos viram nessa noite uma mulher mais “substancial”, muitos outros nos dias seguintes, destacando a crítica a performance virtuosa e os dotes de crítica de arte — de tal forma, sendo essa uma das peripécias das filmagens partilhada neste registo, que foi necessário voltar a gravar um segmento em que Jackie abafara por completo o presidente.

“O que Jackie fez foi um primeiro passo. Quis que cada família seguinte contribuísse com doações de forma a ver crescer o museu”, continuou o então curador William Allman, que assumira funções na biblioteca em 1976.

Não é que a tour tenha sido decisiva para lançar o interesse nas visitas à Casa. Em 1961, adiantava Allman, cerca de 3 milhões haviam passado pela morada ao longo de todo o ano. Mas de certa forma o formato permitiu reforçar “o interesse pela preservação histórica”. O curador conta ainda que dependências como a East Room mantiveram-se praticamente fiéis às mudanças introduzidas pelo presidente Roosevelt em 1902, com o amplo espaço a permitir que os skates dos filhos deslizassem à vontade — décadas mais tarde, Barbara Bush haveria de dispor tapetes sobre o soalho para reduzir os níveis de barulho.

Quando os apontamentos pessoais de Jacqueline Kennedy foram publicamente divulgados em 2012, encontraram-se várias notas sobre a visita que guiara. Nesses registos, a outrora primeira-dama deixava bem claro que os nomes de quem contribuíra com doações e donativos deveriam ser incluídos no guião do programa. Um formato que haveria de fazer escola entre outros rostos femininos com estatuto de celebridade, com o surgimento de semelhantes documentários destinados a uma audiência maioritariamente composta por senhoras, incluindo um regresso à própria vida de Jackie, com “O Mundo de Jacqueline Kennedy”. Idêntica fórmula se aplicou a “O Mundo de Sophia Loren” ou “Elizabeth Taylor em Londres” (1963), com direito a banda sonora à altura.

Mrs. Jacqueline Kennedy & Charles Collingwood

Jackie à conversa com o apresentador, sob o olhar atento de George Washington

Getty Images

Também Grace Kelly, então princesa do Mónaco, abriu as portas do principado em mais uma gravação de 1963, com um documentário chamado “A Look at Monaco”. Um ano que do outro lado do Atlântico se haveria de revelar negro para o clã Kennedy. Em novembro, a trágica morte do presidente dos EUA travou de forma abrupta a marcha das renovações e novas aquisições para a Casa. No entanto, o guia histórico que Jackie lançara um ano antes manter-se-ia ativo e as receitas recolhidas com a sua venda aplicadas em restauros futuros. Se a primeira-dama deixara os aposentos do rés-do-chão e primeiro andar praticamente terminados, os senhores que seguiram em Washington DC, o casal Johnson, manteve intactas a generalidade das divisões, por respeito à anterior presidência. Seguindo uma natural evolução com os anos, ao sabor dos gosto das presidências que se sucederam, os inquilinos não esqueceram a fasquia elevada por um dos pares mais famosos da América.

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