A morte do cientista Mohsen Fakhrizadeh-Mahabadi, mentor do programa nuclear iraniano, na última sexta-feira, foi o episódio mais recente de uma série de ataques clandestinos lançados por Israel no sentido de boicotar os esforços nucleares do Irão e que pode comprometer o regresso a uma solução diplomática internacional — a que o governo israelita abertamente se opõe. A menos de dois meses da tomada de posse de Joe Biden como Presidente dos Estados Unidos, o assassinato de Fakhrizadeh-Mahabadi poderá ter contribuído para consolidar a abordagem implementada pela administração Trump (que, em maio de 2018, rasgou o acordo nuclear) e para dificultar a vida a Biden — que já se encontra em conversações para ressuscitar o acordo de 2015.
A oposição entre os dois países não é nova. O Irão rompeu as relações diplomáticas com Israel em 1979, depois da Revolução Iraniana, quando o aiatolá Khomeini depôs o último xá, Mohammad Reza Pahlavi, um aliado dos EUA e de Israel, para instituir a república islâmica. Atualmente, o Irão não reconhece a legitimidade de Israel — país que Khomeini chegou a classificar como “pequeno Satanás”, à semelhança do epíteto “grande Satanás”, usado habitualmente pelos líderes iranianos para demonizar os Estados Unidos. Em 2002 — ano em que o Presidente norte-americano George W. Bush incluiu o Irão no “eixo do mal” —, a revelação de que o país estava a levar a cabo um programa de enriquecimento de urânio deteriorou ainda mais as relações internacionais do Irão, que continua a manter que o seu programa não se destina à produção de armas.
O Irão nunca escondeu a sua intenção de “aniquilar” Israel e devolver o território aos palestinianos. Por seu turno, o governo israelita considera o Irão como uma ameaça existencial, sobretudo tendo em conta o seu programa nuclear, suficiente para produzir armamento capaz de destruir o pequeno país. Desde 2010, uma série de ataques direcionados, em grande parte atribuídos a Israel e ao modus operandi da Mossad, têm procurado frustrar o programa nuclear iraniano. Em 2018, o primeiro-ministro israelita, Benjamin Netanyahu, deixou antever que um ataque a Fakhrizadeh-Mahabadi poderia acontecer no futuro. “Lembrem-se desse nome”, disse Netanyahu numa conferência de imprensa, depois de Israel ter capturado milhares de documentos confidenciais sobre o programa nuclear iraniano.
Uma década de ataques
Há mais de uma década, no dia 12 de janeiro de 2010, o físico iraniano Masoud Ali Mohammadi foi assassinado num atentado à bomba à porta de sua casa, em Teerão. O cientista morreu na sequência da explosão de uma bomba controlada remotamente que estava instalada numa mota perto da habitação. Ali Mohammadi, de 50 anos de idade, era professor de física na Universidade de Teerão e tinha-se especializado em física de partículas, mas, de acordo com o que o governo disse na altura, não estava oficialmente envolvido no programa nuclear iraniano.
Também em 2010, a unidade de enriquecimento de urânio situada na cidade iraniana de Natanz sofreu um ataque informático que destruiu uma parte significativa da capacidade nuclear do país. O vírus Stuxnet, considerado a primeira arma digital do mundo, foi lançado a partir de uma origem desconhecida e infiltrou-se nos sistemas informáticos que controlavam as centrifugadoras da unidade, obrigando-as a girar mais rápido, com consequências desastrosas para o funcionamento das instalações. Um ano depois, viria a ser noticiado que o vírus havia sido testado em Israel antes do ataque, nas instalações onde o país alegadamente produz armamento nuclear — embora não o admita publicamente.
No final do mesmo ano, dois novos ataques atingiram outros dois importantes cientistas nucleares iranianos: Majid Shahriari, que morreu, e Fereydoon Abbasi, que ficou gravemente ferido. O primeiro era um especialista na separação de isótopos e uma das figuras-chave do programa nuclear iraniano — tanto que o então Presidente do Irão, Mahmoud Ahmadinejad, acusou as forças ocidentais de terem orquestrado o ataque e garantiu que o Irão continuaria a desenvolver o seu programa nuclear. “É possível ver sem dúvidas as mãos de Israel e dos governos ocidentais no assassínio que, infelizmente, aconteceu”, disse o Presidente. O ministro do Interior iraniano, Mostafa Mohammad Najjar, afirmou o mesmo: “A Mossad e a CIA são inimigos dos iranianos e procuram sempre atingir esta nação. Querem particularmente parar o nosso progresso científico”. Os ataques contra três relevantes especialistas iranianos em apenas um ano fez, na altura, o jornal The Guardian lançar a pergunta: “Quem está a matar os cientistas nucleares do Irão?”
“Esta tem de ser a profissão mais perigosa do mundo”, escreveu em julho de 2011 a revista The Atlantic, quando divulgou a notícia da morte de mais um iraniano especialista em física nuclear. “Mais um cientista nuclear iraniano abatido”, lia-se no título da notícia que dava conta da morte de Darioush Rezaeinejad, um cientista envolvido no desenvolvimento técnico do armamento nuclear iraniano. Rezaeinejad foi morto a tiro por dois atiradores que surgiram de mota — exatamente o mesmo método usado no ano anterior contra Shahriari e Abbasi.
Passariam apenas seis meses até ao ataque seguinte. Em janeiro de 2012, o professor universitário e cientista nuclear Mostafa Ahmadi-Roshan, que também trabalhava na unidade de enriquecimento de urânio de Natanz, foi assassinado quando conduzia o seu carro em Teerão. O atacante surgiu de mota e colocou uma bomba no interior do automóvel do académico de 32 anos. Novamente, as autoridades iranianas culparam Israel pelo ataque. O vice-presidente do Irão, Mohammad Reza Rahimi, classificou a explosão como ato de “terrorismo patrocinado pelo governo” israelita, enquanto o vice-governador de Teerão assinalou que a bomba usada era “trabalho dos sionistas”, ou seja, dos israelitas.
Depois dos ataques contra os cientistas iranianos, multiplicaram-se as ofensivas dirigidas à operação nuclear do Irão. Em abril de 2018, o primeiro-ministro Benjamin Netanyahu anunciou que as forças israelitas tinham invadido um armazém secreto em Teerão, onde as autoridades iranianas guardavam milhares de documentos confidenciais relacionados com o programa nuclear, e capturado mais de 100 mil ficheiros em papel e em formato digital que comprovariam como o Irão tinha um projeto nuclear secreto em curso. No verão de 2018, viriam a saber-se os detalhes de como os agentes israelitas tinham, em janeiro, precisado de apenas seis horas e meia para entrar no armazém, desativado os sistemas de segurança e roubado os documentos.
Foi naquela conferência de imprensa, em abril de 2018, que Netanyahu mencionou o nome de Mohsen Fakhrizadeh-Mahabadi, assassinado na semana passada em Teerão.
Já em 2020, em menos de um mês — entre junho e julho —, um conjunto de explosões atingiram pelo menos quatro estruturas onde decorriam partes fundamentais do programa nuclear iraniano: uma base militar onde eram testadas partes do armamento nuclear, um local onde era produzido combustível necessário para o armamento, a unidade de enriquecimento de urânio de Natanz e uma central elétrica na região centro do país.
O ataque contra Fakhrizadeh-Mahabadi, na sexta-feira da semana passada, foi o episódio mais recente. O cientista seguia de carro para a cidade de Absard, para visitar os sogros, quando sofreu um violento ataque: primeiro uma explosão, depois surgiram vários atiradores que o atingiram com tiros de metralhadora. O cientista, de 63 anos, morreu no local. Fakhrizadeh-Mahabadi era um dos mais relevantes cientistas nucleares do país e já tinha sido classificado como uma versão iraniana de Robert Oppenheimer — o cientista americano que desenvolveu o Projeto Manhattan, investigação que resultou na produção da primeira bomba atómica da história da Humanidade, usada no final da Segunda Guerra Mundial em Hiroxima.
Biden que voltar ao acordo nuclear
Uma semana depois da conferência de imprensa de Netanyahu, a 8 de maio de 2018, o Presidente norte-americano, Donald Trump, anunciou formalmente que os EUA iriam abandonar o acordo nuclear com o Irão — assinado em Viena em 2015 pela China, França, Alemanha, Irão, Rússia, Reino Unido, EUA e União Europeia. A desistência dos EUA do acordo e a reimposição de sanções económicas contra o Irão aumentou a tensão nas relações entre os dois países, depois de a administração Obama ter conseguido uma relativa aproximação. No verão de 2019, essas tensões materializaram-se em ataques a petroleiros no golfo de Omã, pelos quais os EUA acusaram o Irão.
Israel, por seu turno, apoiou a decisão de Trump — aliás, Netanyahu já tinha classificado o acordo nuclear como um “erro histórico”, com potencial para piorar as tensões regionais. O primeiro-ministro israelita opôs-se firmemente ao levantamento das sanções económicas ao seu arqui-inimigo e chegou a afirmar que o acordo serviria para financiar o “regime terrorista de Teerão com centenas de milhares de milhões de dólares” e ajudar o Irão nos “seus esforços para destruir Israel”. Uma das principais críticas de Israel, e também de Donald Trump, prende-se com os prazos do acordo: em 2030, o Irão poderia retomar o programa nuclear; já as inspeções às instalações nucleares iranianas prolongar-se-iam até 2040. Netanyahu alegava que o Irão guardara materiais do programa nuclear desmantelado para o retomar depois desses prazos. No início de 2020, o Irão anunciou que, perante as sanções impostas pelos EUA, deixaria de cumprir as obrigações do acordo nuclear. O ataque mortal dos EUA contra o general Qassem Soleimani, um dos principais líderes militares do Médio Oriente, autorizado pessoalmente por Donald Trump, foi a gota de água para os iranianos que precipitou o abandono do acordo nuclear. Mais tarde, a ONU viria a considerar que o assassínio de Soleimani pelos EUA foi “ilegal e arbitrário” à luz do direito internacional.
O recém-eleito Presidente Joe Biden, que toma posse a 20 de janeiro, já anunciou que pretende que os EUA regressem ao acordo nuclear, se o Irão também se voltar a comprometer com as suas obrigações. Já depois da eleição presidencial norte-americana, o primeiro-ministro israelita veio alertar Biden: “Não pode haver um regresso ao anterior acordo nuclear. Temos de manter uma política que não nos comprometa e que assegure que o Irão não desenvolve armas nucleares”.
Irão diz que cientista nuclear foi assassinado remotamente por Israel
Como escreveu David Sanger no The New York Times, o recente ataque mortal contra Fakhrizadeh-Mahabadi poderá ter dificultado a vida a Joe Biden no que toca ao regresso ao anterior acordo nuclear. Sanger cita as palavras de um ex-funcionário do Departamento de Estado dos EUA envolvido nos esforços de não-proliferação do armamento nuclear, Mark Fitzpatrick: “A razão para o assassínio de Fakhrizadeh não foi impedir o potencial de guerra do Irão, foi impedir a diplomacia”. A menos de dois meses da tomada de posse de Biden, o Irão tem sido encorajado a aguardar pela entrada em funções do novo inquilino da Casa Branca, que deverá recuperar a abordagem que permitiu em 2015 alcançar o acordo nuclear.
Porém, a ação de Israel na reta final do mandato de Trump poderá ter minado o terreno.
O Irão, através do porta-voz do parlamento, já prometeu “vingança severa” pela morte do cientista, que foi classificado como “mártir”. Se isso acontecer nos próximos dias, poderá ser o ponto de partida para mais uma escalada de tensões entre Irão e Estados Unidos que fará com que Joe Biden herde uma situação de grande instabilidade na região, durante a qual o regresso ao acordo nuclear será uma tarefa muito mais complexa — algo que agradará a Israel, que rejeita o acordo. Por outro lado, se o Irão esperar pela tomada de posse de Biden antes de avaliar a nova postura norte-americana, Israel terá pelo menos conseguido matar o cérebro por trás do programa nuclear iraniano, o que leva o mesmo analista do The New York Times a afirmar que Israel pode ter ganhado “de qualquer das formas”.