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Minutos antes de chegarmos ao Epur, a Dora faz cair granizo na calçada já molhada. O céu escurece e, por breves instantes, teme-se o pior. A tempestade previamente anunciada consegue ter momentos de imprevisibilidade, um pouco como a pandemia que desde o início de 2020 tem paralisado a restauração no mundo e no país — neste caso em concreto, no Largo da Academia Nacional de Belas Artes.
Há sensivelmente um ano, Vincent Farges celebrava a primeira estrela Michelin pelo trabalho feito no projeto pessoal (esteve antes no também estrelado Fortaleza do Guincho). Em novembro de 2019 a festa acontecia em Sevilha, depois de no final de outubro ter recebido um convite para comparecer na cerimónia de entrega daquela que é, muito provavelmente, a mais alta distinção gastronómica. “Eles não convidam só pelo prazer de convidar”, comenta Vincent já no interior do restaurante que abriu portas em maio de 2018: quase duas dezenas de meses bastaram para colocar o Epur na rota das estrelas. E se há um ano a festa era feita com a equipa, celebrando-se os muitos “esforços, sacrifícios e disciplina”, agora a realidade é outra. “A minha esperança, por enquanto, é chegar a 2021 com o restaurante aberto. É um grande ponto de interrogação. Se conseguirmos é porque somos muito fortes, mas não sou assim tão otimista. Antes era.”
Antes o restaurante surfava a onda das estrelas e gozava de uma faturação e ocupação crescentes. Em janeiro o Epur faturou mais do que em setembro e agosto do ano anterior (nos primeiros dois meses do ano houve um acréscimo grande, 30 a 40% de faturação). Até meados de março, explica o chef, “estávamos mesmo a começar a encher, ao almoço e ao jantar, todos os dias”. A chegada da pandemia veio de forma abrupta e tirou o chão à equipa deste e de muitos outros restaurantes: “De repente, passámos de 15 almoços e 20 jantares a zero”.
Dias antes do confinamento generalizado imposto pelo Governo, e na sequência de sucessivos cancelamentos, já a equipa antecipava o fecho do Epur, que reabriu apenas em julho. Foram meses nunca antes vividos, marcados pelo lay-off e pela aposta no take-away, serviço que “não rentabiliza um restaurante” mas que retomou nos sábados cuja circulação nas ruas está interdita a partir das 13h. Essa foi também a forma encontrada para escoar parte dos produtos já encomendados, enquanto outros foram “infelizmente” congelados. Aquando da abertura, em maio de 2018, o Epur contava com 90 produtores reunidos de norte a sul do país: “Tentamos o mais possível trabalhar com eles. O nosso papel é tentar safar essa economia. Estamos em dificuldade, mas eles estão pior do que nós. Houve produtores que pararam por completo e, com a ocupação que tenho, custa-me mandar vir alguns produtos do norte”, exemplifica.
Vincent Farges, com mais de duas décadas dedicadas à alta gastronomia, não traça o melhor dos cenários, mesmo em dia de casa cheia dadas as reservas para jantar. “Seria bom se fosse sempre assim”, desabafa enquanto navega na cozinha a trabalhar a meio gás numa tarde de sexta-feira. Três cozinheiros — um alemão, um franco-português e uma portuguesa — e dois copeiros do Bangladesh ocupam nem metade do espaço que se divide em duas áreas, preparação de pratos frios e de pratos quentes. Ninguém usa máscaras: ao início estranha-se a ausência do equipamento de proteção mais associado a 2020, mas o seu uso “não é recomendado nas zonas de gás”, tal como dita o plano de contingência criado a pensar na pandemia.
Pelas 15h ainda são poucos os preparativos a acontecer — daqui a três horas é feito o briefing e às 18h30 a equipa é convidada a jantar. Até por volta das 19h30 ninguém deverá entrar pela porta do Epur. O silêncio é por enquanto interrompido pela Dora que, no exterior, faz-se ouvir e pela conversa miúda que, no interior, os cozinheiros vão tendo com o chef. Apesar das diferentes línguas num só espaço, Vincent assegura: discute-se em bom português.
“Se trabalhássemos só com portugueses estávamos todos cheios”
Onde antes sentavam até 36 pessoas, sentam agora 26. Vincent Farges faz as contas à medida que circula pela sala de refeições de soalho de madeira e janelas largas viradas para o casario lisboeta. Mesmo de chuva, a vista cativa e só não está presente numa divisão privativa que acomodava até oito lugares, agora seis. Lá dentro, uma tela em branco serve para projetar a paisagem do exterior transmitida por uma câmara preparada para o efeito. Se no passado uma Lisboa filmada chegava, atualmente os clientes preferem as luzes da cidade in loco — muito provavelmente consequência da pandemia que nos tem trancado em casa. “Antes não havia problema, mas agora as pessoas preferem a janela”, refere.
Os clientes estrangeiros que no início do ano representavam cerca de 60 a 70% foram substituídos essencialmente por portugueses com menos dinheiro para gastar, isto é, com maior tendência para optar por “um menu mais pequeno” ou para “dividir os pairings de vinho”. “Se trabalhássemos só com clientes portugueses estávamos todos cheios”, atira o chef, referindo-se aos colegas da praça, como os vizinhos Alma e Belcanto (os três restaurantes com estrelas Michelin concentram-se na zona do Chiado). Vincent insiste no argumento: se o turismo não voltar a ser o que era, Portugal não representará uma carteira suficiente de clientes para encher todos os restaurantes Michelin que existem no país. “O mercado só vai retomar em 2022. Em 2021 ninguém passeia. Se passearem não vão querer gastar 100 ou 150 euros por pessoa para comer num restaurante.” Há quem possa fazê-lo, reconhece, mas isso não vai permitir a todos “faturar o que faturavam antes.”
Para Vincent Farges, o fine dining terá essencialmente que se reinventar. Nem de propósito, nos meses de verão o restaurante serviu petiscos mais acessíveis à janela. A iniciativa que ajudou nas contas encontrou, porém, alguns entraves, sobretudo os 40 graus Celsius que chegaram a fazer junto às portadas de madeira. “Ninguém parava para tomar um copo de vinho”, lamenta. O grande desafio de 2020, diz, é manter a cabeça erguida perante um inimigo invisível e esperar, em parte, pela noite de passagem de ano — na noite de 31, o funcionamento dos restaurantes é permitido até à uma da manhã. A única restrição é que no dia 1 os restaurantes só poderão estar abertos até às 15h30, para almoço, nos concelhos de risco muito elevado.
Posso ir passar o Natal à terra? E no Ano Novo posso juntar amigos? O que pode e não pode fazer
A data não é meramente simbólica: a noite da passagem de ano pode render cerca de 5 mil euros ao Epur. O número importa sobretudo considerando que no mês de novembro o restaurante faturou cerca de 15 mil euros. “Entre o Natal e Ano Novo é a maior ocupação no mês de dezembro.” Na entrevista, feita um dia antes de António Costa anunciar as novas medidas, Vincent fazia notar a preocupação: “Se o Costa amanhã diz que no dia 31 de dezembro não se pode fazer festa, que as pessoas têm de ficar em casa,…PUM!”, gesticula com as mãos uma bomba imaginária.
Apoios: “Não estamos numa retoma e a filosofia foi de uma retoma”
A pandemia não se limitou a reduzir lugares em nome do distanciamento social. Além de materiais básicos como álcool em gel, máscaras e luvas, o restaurante apostou num sistema de ventilação ecológico, o qual permite renovar permanentemente o ar, assegura o outro sócio do Epur, Pedro Mendonça, ligado ao design e responsável pela Desenhabitado, um showroom de mobiliário de interiores. Outra despesa foi a contratação de serviços externos para recorrer aos apoios do Estado em tempos de pandemia.
Durante o confinamento geral, “havia a expetativa de que o Governo queria dar apoios, mas a informação saía demoradamente ou incompleta, ou estava sempre a mudar”, comenta Pedro Mendonça, sentado num dos bancos da zona lounge do restaurante. Foram tempos de stress, recorda, dada a ânsia em encontrar uma resposta para a situação do restaurante. “Sem apoios ia ser bem difícil. Isso foi assim até que tivemos um financiamento que nos permitiu continuar e reabrir”, diz, referindo-se ao lay-off simplificado como “um apoio mais real”.
Apoios à restauração mencionados em entrevista
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- Apoiar.pt (não específico da restauração): consiste na atribuição de um apoio a fundo perdido às micro, pequenas e médias empresas para as compensar pela quebra de faturação de, pelo menos, 25% nos primeiros nove meses do ano (apoios a fundo perdido no valor de 750 milhões de euros);
- Apoio à Retoma Progressiva (não específico da restauração): o apoio à retoma permite reduzir os horários (até 100%) de acordo com a quebra de faturação. Por exemplo, uma empresa que tem uma quebra de faturação igual ou superior a 40% mas inferior a 60% pode reduzir os horários de trabalho até 40%. Os funcionários recebem as horas trabalhadas a 100% e 80% das horas não trabalhadas — deste valor, a Segurança Social comparticipa 70%, tal como explicado neste artigo do Observador;
- Apoiar Restauração (específico da restauração, acoplado ao Apoiar.pt): visa compensar os restaurantes pelas perdas nos fins de semana de recolher obrigatório a partir das 13h00 – vale 25 milhões de euros; o Governo decidiu compensar os restaurantes com 20% das perdas nestes dias comparando com a média da faturação nos 44 fins de semana desde janeiro, tal como explicado neste artigo do Observador;
- Lisboa Protege (não específico da restauração): empresas da restauração, comércio, retalho e atividades artísticas podem solicitar apoio a fundo perdido, no âmbito do programa Lisboa Protege; s candidatos devem ter uma faturação anual até 500 mil euros e uma quebra superior a 25% este ano.
No entanto, Mendonça tece críticas ao Apoio à Retoma Progressiva, que sucedeu o lay-off simplificado. Sobre isso, o sócio do Epur diz que “0 que se verificou não foi uma retoma progressiva, antes o aprofundar da crise que teve o seu momento máximo, pelo menos para nós, em novembro, em que tivemos uma queda de faturação de mais de 50%”. “Não estamos numa retoma e a filosofia foi de uma retoma, estamos numa crise maior”, continua. Ainda assim, o Epur candidatou-se ao apoio “incipiente”.
Já sobre o Apoiar Restauração, que visa compensar os restaurantes pelas perdas nos fins de semana de recolher obrigatório a partir das 13h, Mendonça comenta que este é “tão inexpressivo que não faz sentido”. Sexta e sábado, assegura, são as grandes fontes de rendimento, correspondendo talvez a 30% da faturação semanal. Considerando ainda o Lisboa Protege, explica que a esse não pode concorrer, dado que está direcionado para micro e pequenas empresas que não tenham uma faturação anual superior a 500 mil euros.
Michelin: “Não vão dar nada a ninguém, não houve trabalho feito”
Logo após o desconfinamento, a organização do famoso Guia Michelin enviou um email ao Epur a perguntar pela reabertura do restaurante — não no sentido de fazer uma crítica gastronómica, as quais são confidenciais, mas como contributo para o setor, para mostrar “como o Michelin está do lado dos restaurantes”. Este ano, a cerimónia das estrelas, marcada para 14 de dezembro, acontece em formato digital. Não há convites para ninguém, logo fica difícil fazer previsões. Não obstante, Vincent Farges é da opinião que, em ano de pandemia, os responsáveis pelo guia “não vão dar nada a ninguém porque não houve trabalho feito”. Ainda assim, não acredita que a organização seja “inumana” ao ponto de retirar a estrela ao Epur.
A manter-se a distinção conquistada há praticamente um ano, o chef promete festejar, ainda que as celebrações fiquem sempre aquém do que aconteceu em 2019. “A primeira vez que recebi a minha própria estrela, essa consagração, foi mesmo forte. Quando estava na Fortaleza do Guincho era uma renovação, não é bem igual”, comenta. “Foi muito esforço, muito trabalho de equipa e muito sacrifício… Foi festejado com alívio, como se tivesse 12 leões dentro de jaulas, tivesse aberto a porta… e rauuu!”, gesticula outra vez com as mãos para imprimir vivacidade à fera fictícia entre nós. “Não vai ser uma festa assim tão grande. Agora, se nos derem uma segunda… aí é que já não percebo nada do Michelin.”
Passam das 17h quando arrancam os preparativos na sala. A cidade de Lisboa vai escurecendo e a chuva continua a cair enquanto Cláudia, um elemento equipa, de phones colados aos ouvidos, vai colocando sobre as mesas os pratos para o pão e para o azeite, ritual que antecede qualquer jantar no Epur. Absorta do que a rodeia — pandemia e estrelas incluídas —, fá-lo ao som da banda norte-americana Incubus e fá-lo como se estivéssemos em 2019.
Terça-feira a sexta-feira, das 19h as 22h30; take-away aos sábados (horário em vigor no estado de emergência)
Largo da Academia Nacional de Belas Artes 14, Lisboa. Tel.: 213 460 519 / www.epur.pt