Da mesma forma que a política europeia tem primado sobre a política doméstica para efeitos de regulação interna, também a política internacional prevalecerá, cada vez mais, sobre a política europeia, razão pela qual a política externa, em todas as suas dimensões, se deverá constituir como um dos principais vetores de reputação da política europeia, em especial, na forma como contribuirá para a formação dos bens globais da Humanidade.

Não tenhamos qualquer dúvida. A União Europeia irá confrontar-se, a breve prazo, com overbooking de responsabilidades internacionais e uma tensão permanente quanto à repartição de recursos escassos entre política interna e política internacional, independentemente dos meios que os “sistemas” ONU, OTAN e EUA mobilizarem para o efeito. Por isso, perguntamos, até quando continuará a União Europeia a conceber a sua high politics como se se tratasse de uma superpotência silenciosa? A médio e longo prazo,  e talvez já a curto prazo, a União Europeia será obrigada, pela força das circunstâncias, a “especializar-se” em política externa, atuando em diversos teatros de operações, umas vezes em versão hard power, outras vezes em versão civil soft power, ao mesmo tempo que descentralizará e devolverá, cada vez mais, a low politics para os Estados nacionais, as macrorregiões, as euro-regiões, as regiões infranacionais, as redes de cidades e outras organizações de interesses mais representativas e próximas dos problemas e das pessoas.

As linhas vermelhas e o choque de política externa

Recordemos as principais linhas vermelhas da política externa europeia: o regresso da geopolítica da guerra fria na frente russa, uma crise profunda da ordem multilateral do pós-guerra,  a crise recorrente do médio-oriente e o puzzle sunita-xiita-semita,  a crise aberta da relação transatlântica,  a crise dos estados falhados do Norte de Africa e do Médio-Oriente, as correntes migratórias e a crise dos refugiados, o refluxo protecionista e o fracasso dos grandes tratados comerciais, a ascensão dos movimentos nacionalistas e populistas e a fragmentação do espetro político-partidário tradicional, as alterações climáticas e a crise das políticas do ambiente. Salta à evidência, a força gravitacional da União Europeia não tem correspondência na sua política externa e a incapacidade para lidar com algumas destas linhas põe em causa a reputação cosmopolita de um ator global como a União Europeia assente maioritariamente num civil soft power. Em definitivo, a União Política Europeia (UPE) precisa desesperadamente de um “choque de política externa”. Acresce que o alarme provocado por estas linhas vermelhas alimenta os movimentos regionalistas, autonomistas e mesmo separatistas, ao mesmo tempo que o radicalismo e o conservadorismo de esquerda e direita se sentem “órfãos de estado” e não consentem uma reforma das instituições no sentido de um “choque de política externa”.

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Num plano mais analítico, podemos afirmar que há um nexo de causalidade entre o movimento em direção à União Política Europeia (UPE) e a reconfiguração da política externa e de segurança comum (PESC) sobre o qual importará refletir e que pode ser formulado de acordo com várias perspetivas ou abordagens:

  • Em primeiro lugar, e no contexto geopolítico em que vivemos, em que medida serão os “factos da PESC” a determinar a sorte da UPE, seguindo uma espécie de impulso vital exterior que é ditado pela força das circunstâncias, isto é, pelos acontecimentos?
  • Em segundo lugar, haverá um “momento instituinte” que ditará o aprofundamento político-institucional, geoestratégico e geopolítico da UPE e determinará a doutrina, o conceito estratégico, a política diplomática e os meios afetos à nova PESC?
  • Em terceiro lugar, em que medida serão as “coligações variáveis” ditadas ou impostas pelo diretório dos países grandes e das denominadas “cooperações estruturadas permanentes” a determinar a natureza e a intensidade das ações prioritárias externas da União?
  • Por último, será a “inércia do sistema PESC” e o incrementalismo próprio aos diferentes serviços diplomáticos a determinar o processo e o procedimento em matéria de política externa?

Estes vetores da política externa e de segurança – os acontecimentos, a doutrina e o conceito, as coligações de interesses e a inércia do sistema – nascem e movem-se no interior do sistema de relações internacionais e, ao mesmo tempo que cresce a consciência dos limites e da nossa finitude, não deixa de ser surpreendente e, mesmo, assustador que na segunda década do século XXI o maior problema do nosso tempo seja, ainda, a falta de crescimento económico. E neste plano, o essencial da governação económica da União Europeia nas próximas décadas será um desafio constante para a PESC, senão vejamos:

  • Em primeiro lugar, aumentará o peso económico e político dos países emergentes, em especial, os desafios lançados pelos cinco grandes países da linha do Indico-Pacífico, a saber, China, Rússia, Paquistão, Índia, Indonésia. O recuo dos EUA no que diz respeito ao Tratado Transpacífico de comércio deixa um vazio de poder naquela zona que a China se prepara para ocupar.
  • Em segundo lugar, a atual União Europeia não reúne, ainda, nem sabemos se alguma vez reunirá, as condições para patrocinar o mesmo tipo de operação junto dos 27 países do Mediterrâneo, no sentido de articular e conformar o modelo de desenvolvimento da margem sul do Mediterrâneo às necessidades de mudança e modernização do seu próprio modelo económico e social. Do Processo de Barcelona à  Política Europeia de Vizinhança e à União para o Mediterrâneo, a União Europeia tem dados sinais, por vezes contraditórios, sobre as suas prioridades políticas para a margem sul do Mediterrâneo. A primavera árabe não facilitou esse trabalho de revisão dos instrumentos PESC nesta área geográfica vital para os interesses da União Europeia.
  • Em terceiro lugar, a projeção euroasiática da Rússia e a estruturação da sua comunidade económica são ainda recentes. Todavia, se pensarmos nas razões que conduziram à guerra na Ucrânia temos motivos para pensar que outros conflitos poderão emergir no horizonte próximo, com países da Europa de Leste e do Cáucaso, mas, também, com países do Grande Médio Oriente e do Norte de Africa. Pense-se, por exemplo, nos problemas energéticos e no trânsito dos grandes oleodutos e gasodutos.
  • Por último, a “geopolítica dura” não parece fazer parte do ADN da União Europeia; desde cedo, a União Europeia abrigou-se atrás do seu soft power remetendo para os “sistemas ONU, OTAN e EUA” a tarefa de organizar o hard power necessário em cada caso. Nos anos mais recentes, depois da grande crise de 2008, o debate centrou-se sobre a política doméstica e a governação económica da zona euro e, só agora, com a guerra da Ucrânia, o drama dos refugiados e as guerras do Médio-Oriente parece haver algum sobressalto no business as usual da PESC da União Europeia.

Dito isto, importa reafirmar que a continentalização do pós-guerra fria marcou o período mais recente da construção europeia, se pensarmos no “Grande Alargamento”, mas, também, a extensão da fronteira OTAN até à fronteira russa, ao mesmo tempo que se operava a “dessovietização” da Europa Central e de Leste e de uma parte do Cáucaso. Em conjunto, esta ocidentalização do mundo e a expansão do capitalismo global que lhe é inerente tiveram, como era de esperar, reações e efeitos contraproducentes entre os quais  se contam: a “ressovietização” do regime russo na definição das suas áreas de influência, a emergência do 2º mundo e dos BRICS em especial, a nova geopolítica do petróleo e a grande crise de 2008 que marcam uma viragem decisiva na capacidade do sistema capitalista para prover soft policy suficiente às relações internacionais mais problemáticas. É neste momento que a relação entre low politics e high politics se fragiliza dramaticamente no quadro da UPE tal como a conhecemos hoje. Com efeito, a agenda PESC da União Europeia é reativa e incrementalista em matéria de soft policy e modesta quanto baste em matéria de high politics na medida em que são, muitas vezes, as potências do eixo franco-alemão a substituir-se ao Conselho Europeu na condução da PESC da União.

Com efeito, o que importa, agora, destacar é a contextualização muito especial deste imenso alargamento, o seu efeito de continentalidade e o traço fortemente securitário que o caracteriza, se pensarmos no estado em que se encontram os seus vizinhos de sempre: os países do Magrebe após a primavera árabe a sul, o Grande Médio-Oriente, o Irão, a Turquia e a Rússia. Estamos perante um sistema de vasos comunicantes que transporta fluxos de toda a ordem e que liga, estreitamente, as economias da Europa ocidental, da Europa central e leste e dos países seus vizinhos. Estamos, portanto, perante uma orla fronteiriça europeia extremamente instável, pronta a explodir a qualquer momento, e que se alonga desde o Magrebe Ocidental até ao norte da Federação Russa.

Uma política externa para os bens comuns e globais da Humanidade

A política externa e de segurança comum (PESC) da União Europeia foi instituída pelo Tratado da União Europeia (TUE) em 1993 com o objetivo de preservar a paz e a segurança internacionais, promover a cooperação internacional, desenvolver e consolidar a democracia, o estado de direito, os direitos humanos e as liberdades fundamentais. Com o Tratado de Maastricht, o TUE introduziu o sistema dos três pilares – a união económica e monetária, a política externa e de segurança, a cooperação policial e judicial – sendo, portanto, a PESC, o 2º pilar dessa estrutura político-institucional a três dimensões. No plano da tomada de decisão a PESC passou a adotar estratégias comuns, posições comuns e ações comuns, com base em procedimentos intergovernamentais e no consenso político entre Estados-membros.

O Tratado de Amesterdão de 1997 estabeleceu um procedimento decisório mais eficaz com a abstenção construtiva e o voto por maioria qualificada. Em dezembro de 1999, o Conselho Europeu criou a função de Alto-Representante para a PESC bem como a de Secretário-Geral do Conselho. O Tratado de Nice de 2003 introduziu novas modificações para afinar o processo decisório, tendo mandatado o Comité Político e de Segurança (CPS), que fora criado por uma decisão do Conselho de Janeiro de 2001, para exercer controlo político e assumir a direção estratégica das operações de gestão de crises. Na sequência do fracasso do projeto de constituição europeia em 2005, as disposições institucionais fundamentais foram reformuladas num novo tratado reformado assinado em Lisboa em outubro de 2007.

Tendo entrado em vigor em 1 de janeiro de 2009, o Tratado de Lisboa deu à União Europeia personalidade jurídica internacional e uma corporização institucional do seu serviço externo, tendo também eliminado a anterior estrutura em pilares. O Tratado de Lisboa criou, assim, uma nova série de atores PESC, incluindo o Alto-Representante da União Europeia para os Negócios Estrangeiros e Política de Segurança, que exerce também as funções de Vice-Presidente da Comissão Europeia, e um novo Presidente permanente do Conselho Europeu. Além de criar o serviço externo diplomático, o tratado de Lisboa elevou a um novo patamar a Política Comum de Segurança e Defesa (PCSD) que constitui parte integral da PESC. A base jurídica da PESC foi igualmente revista pelo Tratado de Lisboa. Os artigos 21º a 46º do Título V do TUE estabelecem as “Disposições gerais relativas à ação externa da União e Disposições específicas relativas à PESC”. No tratado de funcionamento da União Europeia, a ação externa encontra-se prevista na Parte V, artigos 205º a 222º. São também aplicáveis os artigos 346º e 347º da parte VII.

O Tratado de Lisboa é, neste contexto, a consagração de um novo equilíbrio político entre Estados membros da União Europeia, uma vez que entre 1989 e 2009 assistimos a alterações radicais nos equilíbrios internacionais e no mapa geopolítico europeu no sentido da sua continentalização. Nesta matéria, os traços principais do TUE podem ser definidos nos termos seguintes:

  • São estabelecidas duas cláusulas de reciprocidade: a cláusula de defesa mútua, à semelhança do que acontece na OTAN e a cláusula de solidariedade coletiva (artigo 222º do tratado de funcionamento) em caso de catástrofes naturais ou provocadas e atentados terroristas;
  • Devido à escalada de conflitos no “estrangeiro próximo” são alargadas as “missões PESC” que passam a abranger uma gama muito variada de missões civis e militares;
  • Está prevista a aplicação dos princípios da “cooperação reforçada” na área da segurança e defesa;
  • Apesar de se manter a unanimidade intergovernamental, passa a existir maior flexibilidade operacional com as chamadas “cooperações estruturadas permanentes”, na medida em que as principais potências europeias se disponham a cumprir mais diligentemente as suas obrigações internacionais.

Por outro lado, no imenso arsenal de instrumentos da política externa da União Europeia já constam, entre outros:

  • Uma série de acordos, pactos e parcerias de cooperação, estabilidade e crescimento, tanto no âmbito do multilateralismo formal como informal, para lá de uma economia de vizinhança que vincula os parceiros a determinadas obrigações;
  • Uma série de redes para a distribuição da ajuda humanitária e da assistência civil;
  • A negociação, intermediação e gestão de conflitos regionais e as operações de manutenção de paz;
  • A assistência, o acompanhamento e a monitorização de organizações regionais que se queiram constituir e beneficiar da experiência de integração europeia;
  • A investigação sobre riscos globais e a organização das missões e fundos de solidariedade para os casos de grandes calamidades;
  • A organização da cooperação europeia e internacional em matéria criminal e judicial e todas as matérias conexas com o espaço de liberdade, segurança e justiça.

Entretanto, passou uma década sobre o Tratado de Lisboa e a grande crise de 2008 e a política externa europeia, apesar dos progressos já verificados, não tem, ainda, uma expressão financeira relevante no atual orçamento comunitário, que é, fundamentalmente, um orçamento de política interna, isto é, um orçamento de low politics. Estamos, agora, no início de 2019, algures entre os “episódios Brêxit” e as campanhas eleitorais para o Parlamento Europeu e esperando ansiosamente pelo dia 29 de março, o dia oficial da saída do Reino Unido.

No atual contexto, extraordinariamente saturado, a política externa da União Europeia parece estar sob sequestro. A fronteira do multilateralismo está cada vez mais próxima, os regimes iliberais lançam uma sombra pesada sobre as relações exteriores, o capitalismo multinacional financeiro e tecnológico torna-se extra-territorial e adensa ainda mais essa imensa sombra. Ora, para lá dos impactos da conjuntura económica externa e da crise da zona euro, que são relevantes, os “riscos globais e as grandes transições” que já abordámos na tese nº 8 recordam-nos que existe uma “outra política externa” muito mais crítica nos tempos que correm, aquela que se reporta aos bens comuns e globais da sociedade cosmopolita e das comunidades humanas. Nesta “outra política externa” há um facto da maior relevância que é, justamente, o alargamento da extra-territorialidade, qual terra de ninguém, em consequência dos recuos nacionalistas, protecionistas e populistas e dos avanços do capitalismo multinacional. Nesta matéria, a década que passou revelou-nos dois tipos de capitalismo. Um capitalismo doméstico muito vulnerável e dependente da proteção do Estado-nação e um capitalismo multinacional – financeiro e tecnológico – que tira partido da sua posição privilegiada para “contornar por fora” o Estado-nação. Este comportamento extra-territorial do capitalismo multinacional visa condicionar não apenas as instituições internacionais e o multilateralismo prescritivo da União Europeia, mas, também, retardar o surgimento do “governo dos bens globais” no interior do qual o capitalismo multinacional seria mais regulado e domesticado.

No início de 2019, em face da multipolaridade do sistema de relações internacionais e suas áreas de influência e da emergência de vários regimes iliberais, só há razões para estar moderadamente otimista em matéria de global and common goods Este facto leva-me a formular a tese da reputação cosmopolita do ator global, nos seguintes termos: a única política externa consequente é aquela que promove a médio e longo prazo o desenvolvimento sustentado dos países menos desenvolvidos, pois o refluxo e o retorno desse investimento virtuoso serão o corolário lógico do aumento de bem-estar das populações desses países; assim, o orçamento da União Europeia deveria refletir adequadamente esta prioridade política mais elevada sob pena de importar para o seu interior os conflitos, o subdesenvolvimento e os problemas acumulados ao longo da sua extensa orla fronteiriça.

O exemplo do mundo mediterrânico desde a experiência do Processo de Barcelona até à formação da União para o Mediterrâneo e, mais recentemente, ao Pacto para as Migrações, constitui, em si mesmo, um excelente case study para testar até que ponto a PESC de uma entidade com as responsabilidades internacionais da União Europeia foi capaz de criar reputação suficiente para fazer beneficiar aquele território dos benefícios globais e regionais que essa reputação ajudou e ajuda a promover. A falta de estabilidade, em todas as suas dimensões, nesta imensa área do mundo, é um sério aviso para a União Europeia, não apenas no que diz respeito à gestão da sua PESC mais convencional, mas, sobretudo, e mais importante, na profunda interação e convulsão que mantém com toda a sua política interna. De facto, a política mediterrânica atual será uma verdadeira prova de fogo, uma espécie de concentrado de todos os problemas da PESC, e uma autêntica linha vermelha da futura União Política Europeia, por onde passará, em grande medida, o futuro próximo do projeto europeu.

Neste contexto, a high politics do mediterrâneo não se pode resumir a uma política eufemística de cariz diplomático e humanitário no quadro de um direito internacional público em redor da defesa dos direitos humanos. Hoje em dia, estes direitos e conceitos, em elaboração e validação constantes, encerram um potencial normativo indiscutível e podem, sem dúvida, promover um aperfeiçoamento permanente da global governance, mas, mais decisivo, devem ser entendidos e praticados no contexto de uma sociedade de riscos globais e na base de uma agenda global que considere em conjunto: a renúncia à força nas relações internacionais, a promoção do património comum da Humanidade, o desenvolvimento sustentável, o capital social das gerações futuras, a responsabilidade internacional, a reparação de injustiças e a democracia global.

Usando as nossas próprias palavras “os europeus parecem preferir um multilateralismo prescritivo e de baixa intensidade orçamental como se a precaução e a prudência fossem suficientes para fundar uma consciência internacional dos assuntos mundiais” (Covas, 2011: 27). Fica-nos a dúvida, de certo modo intrigante: em que medida 60 anos de Europa Comunitária enraizaram, de facto, nos europeus uma cultura internacionalista, de cariz cívico-política, legalista e, mesmo, pacifista, que não só lhes cria reserva mental quanto a opções estratégicas de força, como inibição e relutância em “investir paritariamente” em defesa e poder militar? (Covas, 2011: 27). Ou, ainda, mais claramente, os europeus só passaram à pós-história por que os americanos decidiram não o fazer, gastando mais em defesa e, afinal, protegendo os próprios europeus.

Acresce que, na aldeia global em que vivemos, a reputação internacional também é necessária em matéria de segurança interna e transfronteiriça. Estamos perante um complexo continental de situações e circunstâncias cuja mistura pode ser explosiva, pondo em risco a autoridade convencional do Estado-Nação, a saber: o renascimento das pulsões identitárias, os nacionalismos e integrismos, o racismo e a xenofobia provocados por migrações erráticas de população, as redes e associações criminosas traficando todo o tipo de mercadorias (pessoas, drogas, armas), os desastres ecológicos e a propagação de epidemias, a pobreza e a exclusão sociais provocadas pela desindustrialização e a correlativa desqualificação profissional, o terrorismo urbano e o terrorismo internacional.

Como facilmente se deduz, na sociedade dos riscos globais e dos bens comuns globais, as opções de política externa interferem, cada vez mais, com as opções de vida dos indivíduos em concreto. Na formação do espaço público europeu, esta linha de demarcação entre as opções de liberdade e segurança é uma espada que pende, nervosamente, sobre a cabeça de cada cidadão europeu e sobre a relevância política das instituições europeia para levar a bom porto o projeto europeu. Na economia da representação simbólica não há união política que resista à falta de reputação internacional neste território tão delicado. O desafio é gigantesco, pois trata-se de convencer o cidadão europeu dos imperativos categóricos impostos pela política externa europeia, traduzidos em diferentes opções orçamentais e financeiras, quando, ao mesmo tempo, não se consegue resolver os seus problemas mais imediatos em matéria de política doméstica.

Notas Finais

Aqui chegados, e tendo presente a gravidade das linhas vermelhas enunciadas, estamos perante uma União Política Europeia cujas características em matéria de política externa poderiam ser assim tipificadas e resumidas: uma superpotência silenciosa e em modo civil soft power, uma potência normativa em crise de reputação global, uma organização feita de multilateralismo prescritivo e baixa intensidade orçamental, por fim, uma organização dirigida por um diretório, ele próprio em estado crítico de revisão.

No preciso momento em que sublinhamos a gravidade e a urgência das linhas vermelhas ao longo da fronteira da União, todos concordamos em que a “geopolítica dura” não faz parte do ADN da União Europeia. Além disso, será interessante verificar como reagirá uma União Europeia mais continental a uma crise de segurança atlântica, dentro e fora da Organização do Tratado do Atlântico Norte, no preciso momento em que as fragilidades dos sistemas político-partidários domésticos são mais reticentes a tal desiderato.

Por todas estas razões, gostaria de terminar com um ato simbólico da maior relevância no plano da política externa europeia. Refiro-me ao Tratado Franco-Alemão de Cooperação e Integração assinado em Aix-La-Chapelle no passado dia 22 de janeiro por ocasião do 56º aniversário do Tratado do Eliseu de 1963. Recordemos os protagonistas, o Presidente Macron e a Chanceler Merkel, pois em qualquer momento eles poderão deixar de ser os atores principais, uma vez que estamos perante o fim da rotatividade bipartidária e a exceção alemã, por um lado, e do estado de graça do “movimento em marcha” do presidente francês, por outro. É muito significativo que o tratado tenha sido assinado nesta altura, em pleno Brexit e em plena campanha para as eleições europeias e onde, como dissemos, a política europeia parece sequestrada pela avalanche de acontecimentos anti-União. Apesar da sua generalidade, é muito relevante que se fale em “integração” e que se criem muitas instâncias de concertação e cooperação em muitos domínios, em especial no domínio da política externa e segurança. As portas estão abertas a todos os “estados de boa vontade”, veremos os próximos episódios. E, desde logo, quem se surpreenderá se Angela Merkel for a próxima Presidente do Conselho Europeu?

Universidade do Algarve