Enquanto chefe de Estado, o prof. Marcelo costuma dividir-se entre dois tipos de intervenções públicas. A primeira é a que corresponde às corriqueiras obrigações do cargo (desde que o cargo é ocupado por ele, note-se): viajar ao estrangeiro, conviver com líderes corruptos e autocráticos, posar para “selfies”, despir-se à frente das câmaras de televisão, nadar no oceano que se puser a jeito, assistir a jogos da bola, analisar jogos da bola, etc. O segundo tipo de intervenções são as que o prof. Marcelo aproveita para dizer coisas tão escabrosas que uma pessoa ouve aquilo e fica a pensar se realmente ouviu aquilo.

A abordagem escabrosa acontece sempre que, confrontado com assuntos sérios e susceptíveis de lhe beliscarem a popularidade, Sua Excelência não se limita a despachar os assuntos com uma frase que é um monumento ao narcisismo e ao desinteresse: “É preciso apurar responsabilidades, doa a quem doer”. Aconteceu, por exemplo, a propósito dos abusos sexuais na Igreja, quando o prof. Marcelo considerou que 424 testemunhos não eram um número “particularmente elevado”. E quando pediu que esquecêssemos a questão dos direitos humanos no Qatar para nos concentrarmos na selecção de futebol. E quando, em 2017, resolveu a tragédia de Pedrógão em poucos minutos, mediante a lendária sentença: “O que se fez foi o máximo que se poderia ter feito”.

Na passada terça-feira, o prof. Marcelo voltou a demonstrar a sua portentosa incapacidade para avaliar as situações – ou a desastrada habilidade para fugir delas. Perguntado por jornalistas sobre a profusão de trapalhadas governamentais, respondeu: “É bom para a democracia haver exigência em antigos e novos partidos políticos no sistema partidário, na comunicação social. O contrário é que seria uma situação pantanosa. Mais vale ver se há problemas, levantá-los, depois uns são, outros não são, e isso é uma democracia viva, a ser uma democracia pantanosa”.

Se percebi correctamente, um governo que se esfarela sob o peso de compadrios, incompetência e desonestidade endémica é sintoma de uma democracia “viva”. E porque não dizer pujante? E porque não dizer invejável? E porque não dizer gloriosa? Porque ainda há quem tenha vergonha na cara, a vergonha de habitar um país em que, por meio de anestesia e propaganda, os desastres são convertidos em proezas. “Pântano”, a herança do eng. Guterres, hoje é favor. E saudade. Em qualquer lugar do Ocidente, uma pequenina fracção das misérias perpetradas pela agremiação do dr. Costa seria suficiente para, num ápice, derrubar a agremiação, o dr. Costa e as últimas esperanças na reabilitação do sistema político. Em Portugal, o senhor presidente da República manda-nos agradecer tamanha dádiva.

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Toda a gente suspeita que são as guerras internas no PS a estar na origem da súbita “exigência”, leia-se a revelação diária dos casos e casinhos que exibem a verdadeira natureza do partido. E toda a gente suspeita que, à revelia do buraco escuro em que os portugueses se afundam, a única preocupação do prof. Marcelo é a “estabilidade”, leia-se a fobia dele a incómodos pessoais e ao desamor das massas. Porém, é um exercício útil fingir que o levamos a sério e, até para expor o carácter medonho do seu raciocínio, levarmos o dito às últimas consequências.

Assim, se uma sucessão inédita de trafulhices lícitas ou ilícitas mostra que a democracia está bem, uma quantidade maior de trafulhices mostrará que a democracia está óptima. É pois desejável que venham novas e mais arrepiantes notícias dos desvarios no governo, e que cada uma seja encarada como sinal de maturidade civilizacional. Já depois das afirmações do prof. Marcelo, aprendemos que o pai de uma ministra se fazia passar por advogado e que, talvez por isso, acabou indicado pelo PS para o Conselho do Ministério Público. É positivo, mas pode melhorar, quiçá se o pai da senhora tivesse currículo no narcotráfico e a senhora, que afinal se fazia passar por ministra, fosse nomeada PGR.

Em prol da democracia, tudo pode ser melhorado, incluindo a história do ex-ministro que aliviou os contribuintes em 3.200 milhões de euros e se esquece no WhatsApp de indemnizações de 500 mil (o alívio podia ter sido de 15.000 milhões, e a aplicação o TikTok). E imaginem o fulgor democrático se, em vez de uma dúzia de governantes envolvidos em branqueamento de capitais, fuga ao fisco ou fraude qualificada houvesse três dúzias metidos em culto satânico e homicida. Mal surgissem suspeitas de canibalismo no “executivo”, a democracia atingia o nirvana.

O esforço de terça-feira do prof. Marcelo, a que por cansaço ou banalização ninguém ligou, pretendia varrer as polémicas passadas e evitar as futuras, de modo a que desistam de o interrogar acerca da dissolução da AR e ele possa ir a banhos em paz. Não sei se funcionou. Sei que, ao decretar que a putrefacção do regime é marca do respectivo vigor, o prof. Marcelo está a tratar a democracia com o cinismo com que as peixeiras tratam a sardinha, que juram “vivinha” após ser capturada e sofrer barbaridades antes de cair na grelha. Há muito que o prof. Marcelo ajuda a preparar as brasas. E, ao contrário da sardinha, ele regressa ao mar.