A demissão surpreendente de João Cotrim Figueiredo despoletou um processo eleitoral interno no partido Iniciativa Liberal (IL), o qual se tem revelado ao comum dos mortais como uma luta singular: uma autofagia, na pior das hipóteses; uma discussão entre Dupond e Dupont, na hipótese menos má. O momento poderá ser importante para o futuro deste partido, pelo que me proponho apresentar o meu resumo sobre a sua história e sobre os sinais que ela nos dá.

A Iniciativa Liberal evoluiu rapidamente desde a incubadora até à infância. Miguel Ferreira da Silva foi o primeiro presidente (em 2017), sendo que, no seu mandato, mostrou pouca energia e uma vocação especial para posições típicas do extremo-centro. A mensagem “somos liberais em todas as frentes” soava um pouco estranha, porque o liberalismo político defendido pela IL não se distinguia do liberalismo do PS ou do PSD e, portanto, nada trazia de novo; já no plano social, o liberalismo poderia evoluir (como evoluiu) para o progressismo identitário – vem dessa altura a participação da IL em marchas de orgulho gay e em outros eventos do género, sendo que os seus dirigentes não ignoravam, com certeza, a forma como várias organizações identitárias de esquerda, a pretexto da defesa de direitos que em Portugal já estavam consagrados na lei (e muito bem!), aproveitavam esses certames coloridos para expandir a sua mensagem anti-capitalista. O moderninho e o politicamente correcto “partido dos liberais” visava, então, penetrar naquela franja entre o PSD e o PS e fugia, como ainda foge, a sete pés dos malditos conservadores.

Não terá sido por acaso que ocorreu o famoso episódio da página de apoio a Sócrates (quem dorme com cães acorda com pulgas, e aquela IL não tinha problemas em frequentar as mesmas águas dos partidos do centrão). Fosse por que razão fosse, este episódio terá servido de pretexto para que o presidente da altura aproveitasse para pôr uns patins em si próprio, desde logo a melhor e mais elegante atitude que tomou desde que tomou posse no partido.

Os fundadores trataram de arranjar uma alternativa e escolheram em boa hora o sucessor. Como presidente, Carlos Guimarães Pinto não terá feito tudo bem, mas quase: desde a revolução total da mensagem, que se focou sobretudo nos temas económicos e deixou as meias-tintas e o wokismo fundador nas trincheiras, até à forma como se exprimia: dinâmica, desempoeirada e desalinhada com a corte lisboeta (há muitas cortes… não só em Lisboa, mas não há corte como a de Lisboa). Não tinha a mesma capacidade comunicacional do “bulldozer” André Ventura, mas percebia-se que havia ali um contraste entre substância versus populismo; ideias certas versus ideias soltas (algumas delas esquisitas, no mínimo); reflexão versus impulsividade. Mais do que concordar sempre com um presidente da IL, para o potencial votante era e é importante, sobretudo, saber que estava ali alguém confiável e com ideias consistentes.

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A não eleição da Carlos Guimarães Pinto como deputado em 2019 resultou, evidentemente, na sua demissão e na ascensão natural de Cotrim Figueiredo, o único deputado eleito nas legislativas desse ano. Em balanço, o consulado de João Cotrim Figueiredo também foi positivo. Não foi meramente simbólico ele ter 100% de presenças na Assembleia e não é um mero detalhe a forma educada, sem deixar de ser incisiva, com que defendeu as ideias do partido (as boas e as más). Claro que a expansão da IL no parlamento e nas aparições na imprensa criaram as sementes da sua futura crise, sendo que essa parte negativa também teve a responsabilidade de Cotrim Figueiredo. Exemplos: alguma falta de pulso na defesa das propostas económicas da IL (onde já vai a flat rate?) e a evidente falta de coragem nas propostas de corte da despesa pública porque isso assustaria grande parte do seu eleitorado. Claro que houve também coisas boas, como, por exemplo, esta lei recentemente aprovada sobre as portagens nas EX-SCUTS. No entanto, se uma lei tem os votos a favor do Bloco de Esquerda, que até queria ir mais longe, será que é com este tipo de vitórias fáceis que a IL se afirmará como o partido das ideias? Mas que ideias? As de toda a gente, inclusive do BE?

Num contexto que já se assemelhava a um caminho para a vacuidade ideológica em benefício do pragmatismo da expansão eleitoral, a demissão surpreendente de Cotrim de Figueiredo poderia ser uma oportunidade para um realinhamento da estratégia, ou seja, uma oportunidade para um partido em que todos os liberais se sentissem confortáveis como eleitores. É certo que costuma dizer-se que quando temos quatro liberais à mesa teremos cinco opiniões (Já Vargas Llosa escreveu em torno do mesmo assunto, embora sobre os trotskistas, no seu A História de Maya), pelo que não resisto a dar a minha opinião.

Eu votaria num partido, este ou outro, que defendesse consistentemente o seguinte:

  • redução muito substancial e rápida do peso do estado (impostos, despesa pública e regulamentações),
  • defesa da identidade nacional, em particular da sua história, língua, cultura e tradições diversas,
  • defesa da soberania do indivíduo e dos seus direitos perante os abusos do poder do estado (democrático ou não democrático),
  • defesa da família como extensão natural do indivíduo,
  • defesa de um estado de direito,
  • defesa da democracia, sujeita aos limites do estado direito,
  • defesa do princípio da subsidiariedade,
  • o socialismo e o PS são os grandes adversários políticos.

Será que o partido da Carla Castro ou do Rui Rocha (um par estranhamente crispado quando defende praticamente a mesma coisa – são uma espécie de manos Dupond e Dupont zangados), ou mesmo do Carlos Guimarães Pinto (geralmente muito bem na parte económica e, ao mesmo tempo, frequentemente cego, surdo e mudo em tudo o resto), preenche os meus requisitos?

Ora, parece-me que o que se exige da IL de hoje tem de ser muito diferente do que se exigia na sua infância. É muito pouco exigente votar no mal menor, ainda por cima quando esse mal menor surgiu para reformar o sistema e nem sequer acerta na estratégia política de um caderno de encargos anti-socialista.

Portanto, tal como está, a IL é um mal menor, mas não deixa de fazer parte do mal.

Tendo em conta a sua história e as expectativas criadas, não deixa de ser lamentável.

Nota editorial: Os pontos de vista expressos pelos autores dos artigos publicados nesta coluna poderão não ser subscritos na íntegra pela totalidade dos membros da Oficina da Liberdade e não reflectem necessariamente uma posição da Oficina da Liberdade sobre os temas tratados. Apesar de terem uma maneira comum de ver o Estado, que querem pequeno, e o mundo, que querem livre, os membros da Oficina da Liberdade e os seus autores convidados nem sempre concordam, porém, na melhor forma de lá chegar.