1 Não sei se o caro leitor reparou há umas semanas quando a ministra Ana Abrunhosa anunciou no final do Conselho de Ministros a redução de 30% do valor das portagens em algumas auto-estradas no interior. A ministra da Coesão Territorial fez questão de fazer o anúncio com uma écharpe da Louis Vuitton — uma griffe de luxo francesa que não está ao alcance do poder de compra da esmagadora maioria da população portuguesa.

Sendo eu defensor da economia de mercado, do direito à propriedade, do direito às heranças e do sistema de meritocracia que assenta numa concorrência leal e justa entre empresas e trabalhadores, por norma não me incomodam as manifestações de riqueza. Seja o Porsche de Pedro Nuno Santos , seja a écharpe Louis Vuitton de Ana Abrunhosa, sejam futuras revelações de fãs da Gucci, de Valentino, da Dior ou da Chanel no Governo António Costa — aviso já que não contarão com a minha crítica.

Parto sempre do princípio de que os fundos que financiaram tais aquisições foram ganhos com mérito, suor e trabalho — e que as écharpes, malas ou cintos não são contrafação, claro.

Por outro lado, fico satisfeito por pessoas dos estratos sócio-económicos mais elevados já não terem receio do escrutínio da comunicação social e de entrarem na política. Pelo menos, a acreditar em Ana Abrunhosa.

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2 O meu ponto é outro e tem mais a ver com a memória de um papel que Ana Abrunhosa desempenhou no verão com grande à vontade (e sinceridade, refira-se sem ironia): o de Rainha das Marchas do belo povo de Ponte Lima.

É quase como se Ana Abrunhosa tivesse levado a sério o seu posto de Rainha e ainda continuasse com a sua coroa e o seu vestido de rainha cor de rosa, enquanto distribui o bodo aos pobres em forma de descontos nas portagens.

Repare, caro leitor, que a ministra da Coesão Territorial faz questão de dizer que os descontos são dados aos “territórios do interior” porque “as pessoas não têm outra alternativa senão estas autoestradas: não há vias alternativas, nem sequer têm transportes coletivos”.

O que dá vontade de perguntar ao Governo Costa o que anda a fazer há oito anos nessa área da coesão territorial — e em muitas outras áreas da saúde, da educação, do ensino superior, da segurança social e em tantas outras — em que apenas distribui subsídios e fundos, sem resolver coisa alguma?

Ou à própria Ana Abrunhosa que foi presidente da CCDR do Centro e presidente da Comissão Diretiva do Programa Operacional do Centr, entre 2014 e 2019 — entre muitos outros cargos públicos que desempenhou desde que o PS de António Costa chegou ao poder. Oito anos não chega para mostrar nem que seja um princípio de obra?

3 A écharpe Louis Vuitton também pode ser vista como uma metáfora do Governo Costa como um super-cobrador de impostos com um crescimento de receita ao nível de uma griffe de luxo. Não são só os mais de 13 mil milhões de euros que o Estado cobrou a mais nos últimos dois anos por via do efeito do aumento da taxa de inflação.

É que o nível da receita fiscal nominal há muito que ultrapassou o nível do tempo da troika — e continua a aumentar todos os anos. Só para dar uma ideia:

  • A receita fiscal nominal (excluindo contribuições sociais) rondou entre 2011 e 2014 cerca de 40 mil milhões de euros, com a exceção do ano de 2012 que alcançou apenas 37,8 mil milhões de euros;
  • Na proposta de lei de 2024, a receita fiscal nominal já ultrapassou os 60 mil milhões de euros — um aumento de cerca de 50%  face à receita de 2014.

Acresce a tudo isto que a ideia de que há um alívio fiscal na proposta de Orçamento de Estado para 2024 é uma grande falácia produzida pelo Governo. Isto porque, como muitos analistas têm referido, o Governo dá com uma mão e tira com a outra.

Falando apenas dos dados previstos para o próximo ano, o valor do alívio fiscal em sede de IRS, que é calculado em cerca de 1,6 mil milhões de euros, é largamente ultrapassado pelo aumento dos impostos indiretos de cerca de 2,7 mil milhões de euros. 

Se partirmos dos cerca de 13 mil milhões de euros que o Governo cobrou a mais nos últimos dois anos e se juntarmos o aumento de 50% da receita fiscal total entre 2014 e 2024, pergunta-se: como é possível as escolas terem falta de professores, os hospitais terem médicos profundamente descontentes, vários milhões de portugueses continuaram sem ter um médico de família?

Como é possível o nosso Estado Social funcionar muito pior do que em 2014, se o Estado tem muito mais dinheiro?

4Tenho dúvidas que estes dados sejam devidamente valorados pelos contribuintes — porque o pagamento dos impostos indiretos não é sentido da mesma forma como um imposto direto. Para todos os efeitos, o Governo faz da proposta de Orçamento de Estado para 2014 uma verdadeira árvore de natal antecipada.

Não são só os escalões do IRS serão alvo de um alívio até ao 5.ª escalão, como o Governo aumentou o mínimo de existência, de forma a que os beneficiários do salário mínimo nacional continuem a não pagar IRS.

É bastante provável que mais de 50% dos contribuintes continuem a não pagar IRS — algo que as almas progressistas entendem que faz todo o sentido mas que inquestionavelmente implica que alguém (leia-se a classe média) terá de pagar mais IRS.

Os presentes de natal continuam com os aumentos das pensões, sendo que o aumento médio deverá superar os 6%, quando o Governo prevê uma inflação na ordem dos 3%. E haverá ainda aumentos salariais significativos para médicos, professores e outros funcionários públicos.

Repete-se para que não existam equívocos: este aumento da despesa será financiado com um aumento superior dos impostos indiretos.

5 O grande objetivo político de António Costa com esta autêntica árvore de natal antecipada em forma de Orçamento de Estado — a que se juntam muitos outros apoios sociais anunciados recentemente para apoio ao crédito à habitação e no programa Mais Habitação — é fácil de adivinhar: ganhar de forma folgada as eleições europeias do próximo ano.

Como os portugueses (ou qualquer outro eleitorado ocidental) votam com o bolso, nada melhor do que tentar rechear os bolsos dos eleitores com fundos públicos.

António Costa olha para as europeias como uma forma de matar três coelhos com uma só cajadada:

  • Evitar a qualquer custo que a hipótese de dissolução do Parlamento criada pelo próprio Presidente da República seja concretizada. Uma vitória folgada do PS faz com que seja politicamente impossível a Marcelo Rebelo de Sousa concretizar tal ameaça e poderá deixá-lo num beco sem saída político;
  • Obrigar o PSD a mudar de líder, o que faz com que o maior partido da oposição fique mais enfraquecido e à procura de um quarto líder desde 2015;
  • E, consequentemente, encontrar uma via verde para uma candidatura a um cargo europeu antes do final do mandato.

O calcanhar de Aquiles desta estratégia prende-se precisamente com a promessa mais antiga de Marcelo Rebelo de Sousa, feita no dia da tomada de posse deste Governo de maioria absoluta: se Costa sair, haverá eleições.

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O lado mais positivo desta proposta de Orçamento de Estado tem obviamente a ver com a disciplina orçamental — a tal narrativa estratégica que António Costa roubou ao centro-direita. Taticismos politico-partidários à parte, qualquer português só pode estar satisfeito por finalmente o PS ter aderido à ideia de que é importante termos contas orçamentais equilibradas.

Ter excedentes orçamentais positivos durante dois anos consecutivos, não gerando défice orçamental, são boas notícias. Melhor ainda é o objetivo de fazer baixar a dívida pública para um nível abaixo dos 100% do PIB, ficando em melhor posição do que a Grécia, Itália, a França, a Espanha e a Bélgica.

O Estado, as empresas e os cidadãos vão ganhar muito a longo prazo com o cumprimento desse objetivo.

Muito provavelmente será este o legado dos governos de António Costa: deixar o país com uma dívida abaixo dos 100%. Sem uma veia reformista — que Costa nunca quis verdadeiramente ter — é capaz de não ser um mau legado.

Sendo o primeiro-ministro um sampaísta de sempre, não deixará de ser uma ironia que contrarie uma das ideias centrais do Presidente Jorge Sampaio que jurava que havia mais vida para lá do défice e da dívida. António Costa descobriu que não há.

Quem é capaz de beneficiar muito com isso poderá ser Fernando Medina — que, claramente, é o favorito de Costa para a sua sucessão no PS. A não ser que os processos judiciais da Câmara de Lisboa lhe preguem uma partida, Medina está claramente a marcar pontos com os seus bons resultados orçamentais e terá de ser um nome a ter em conta no futuro pós-Costa.