Ao segundo dia da guerra, o governo americano propôs a Zelensky que fugisse. Percebe-se porquê. A deserção do presidente ucraniano teria quase de certeza desmoralizado a defesa do país. Biden poderia então lavar as mãos da Ucrânia, como lavou do Afeganistão: eis a prova de que se tratava de um Estado falhado, incapaz de se defender. Dentro de uns meses, tudo estaria esquecido e o novo gasoduto Nord Stream 2 a funcionar. Como depois da invasão de 2014 e da ocupação da Crimeia.

A história, porém, já não vai ser assim. Zelensky respondeu que precisava de munições, não de uma boleia. Não imitou o presidente afegão. Ficou em Kiev, foi para a rua, e animou o exército e o povo a resistirem. Entretanto, o exército russo já admitiu mais baixas mortais numa semana do que o exército americano durante o primeiro ano no Iraque. Ninguém estava à espera. Zelensky obrigou assim os governos e os públicos ocidentais a sair do seu calculismo e indiferença. Foi só então que vieram as sanções, as armas e as manifestações. Nesta terça-feira, o presidente ucraniano disse ao parlamento europeu: “Nós provámos que somos como vocês”. Não, presidente Zelensky, o senhor e o seu povo provaram muito mais do que isso: provaram que são os únicos, nesta geração, que conhecem “o preço da liberdade” e que estão dispostos a pagá-lo.

É preciso repetir: o Ocidente podia ter evitado tudo isto. Deveria ter subido a parada, sem esperar que Putin avançasse: imposto sanções à Rússia, ao nível das atuais, logo em 2014, e oferecido imediatamente à Ucrânia a proteção da UE e da NATO. Não queriam provocar a Rússia? Mas nada provoca tanto como a fraqueza. A Ucrânia tem problemas para resolver antes de integrar a UE e a NATO? Mas os países bálticos não os teriam, se estivessem de fora? Vamos entender-nos: na situação da Ucrânia, as garantias da UE e a NATO não deveriam ser vistas como um ponto de chegada, mas como o ponto de partida. Só em segurança a Ucrânia poderá arrumar a casa, e não antes.

A Ucrânia veio lembrar, contra a mitologia de auto-flagelação do “pós-colonialismo”, como a liberdade no mundo precisa do Ocidente. Fala-se muito do isolamento da Rússia. Mas não se tem reparado no isolamento ocidental. É verdade: muitos países votaram a resolução da ONU a condenar a invasão. Mas entre os que se abstiveram, estão “apenas” alguns dos maiores Estados do mundo em território e população: a China, a Índia, o Paquistão, o Bangladesh, o Irão, a Argélia e a África do Sul. E entre os que votaram a favor estão muitos onde a conversa oficial é toda de neutralidade, como o Brasil, onde Bolsonaro e a esquerda encontraram finalmente um ponto de consenso na indiferença pela Ucrânia. Alguns destes países até são democracias, mas não se preocupam com a liberdade dos outros. É essa preocupação que define o Ocidente, para eterna irritação do “realista” Dr. Kissinger. Por enquanto, o Ocidente confia no seu poder financeiro e económico. Isso, porém, não dispensa que alguém tenha de lutar. É o que os ucranianos estão a fazer. “Não nos abandonem”, pediu Zelensky. Os líderes ucranianos não abandonaram os valores do Ocidente. O Ocidente tem a obrigação de não abandonar os líderes ucranianos.

Não haja ilusões. Vai ser um horror. Putin precisa de vencer, e recorrerá a tudo. Sabemos o que fez em Grozny. Terá o que quer? O seu objetivo não é impedir a Ucrânia de aderir à Nato, mas de ser uma nação. Só que depois desta semana, nunca mais ninguém poderá dizer que a Ucrânia não é uma nação. É essa a vitória da Ucrânia. Em 1916, houve uma revolta em Dublin pela independência da Irlanda. Os rebeldes estavam sozinhos, foram esmagados. Mas as coisas nunca mais foram as mesmas. Yeats resumiu a mudança num poema (“Easter, 1916”), com o refrão “a terrible beauty is born”. Também na Ucrânia acabou de nascer uma beleza terrível: a beleza terrível de um povo disposto a sacrificar-se pela sua liberdade, e que com esse sacrifício mudou tudo.

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