Assim não dá! Eu estava adoentado, tinha-me sentado sossegadamente a ler, e, num rápido scroll, dou por mim diante de algo tão sem sentido, que o meu primeiro instinto foi começar a escrever este texto. E digo que “assim não dá”, porque tinham prometido que nunca iria escrever algo que seria tendencialmente apologético ou vagamente reacionário. Mas há mínimos.

O Livre havia aprovado um programa eleitoral em que se propunha a retirada da “Disciplina de Educação Moral e Religiosa [EMRC] do currículo”. Patrícia Gonçalves, líder da Assembleia do Livre, afirmara, no congresso do partido, que “as crianças não devem ter de estudar isso”, por haver “tanta coisa para aprender”, “no respeito pelo princípio da laicidade da Escola Pública”. Um clássico. O próprio partido postou no “X” a citação do militante Rodrigo Brito, em que se fala de “abolição da Educação Moral”.

Espantado, fui ao Google, e comecei a escrever “a-b-o-l-i-ç-ã-o”, e todas as respostas rápidas falavam da abolição da escravatura. Certamente terá sido incúria de todos os enciclopedistas a opção de associar a palavra abolição ao conceito de escravatura, quando tinham, lado a lado, uma causa igualmente importante para a humanidade como a abolição da EMRC. A verdade é que as palavras têm o seu peso, e, se a palavra usada por militantes do Livre para falar do término da disciplina de EMRC é “abolição”, receio que Robespierre não tarde em ressuscitar, para a satisfação de todos os cutileiros e amoladores.

Ora, não é este o único problema linguístico da proposta. Dizer que “as crianças não devem ter de estudar” Educação Moral impõe um nexo de obrigatoriedade que não existe. A disciplina é clara e rigorosamente facultativa. Afirmar algo parecido é o mesmo que dizer que as crianças estão obrigadas a colocar foguetes no topo dos bolos de aniversário, quando toda a gente sabe que é algo opcional. Mas ainda bem que, depois de tantos debates, ficamos a saber que um dos males do nosso sistema de ensino é uma disciplina não obrigatória. É ela que está a privar os alunos de adquirir novas capacidades.

PUB • CONTINUE A LER A SEGUIR

Na verdade, aquilo que somos levamos a pensar ao ler esta proposta, é que a educação religiosa no sistema de ensino é, em rigor, insuficiente. Como afirmou Alain Touraine, a escola laica baseia-se num “espírito de objetividade e de verdade”. O facto, é que, no contexto das sociedades plurais em que vivemos, respeitar as identidades particulares, em que se insere, não poucas vezes, a dimensão religiosa, é permitir que elas sejam apresentadas criticamente aos alunos.

Quando o Livre propõe que a educação religiosa deve “ser deixada ao critério das famílias e concretizada nas respetivas congregações religiosas”, não será isto a porta mais encancerada para a tribalização e o fundamentalismo religioso? É um tique comum: mostrar-se moderno, tolerante e inclusivo, quando, na verdade, se é o absoluto contrário.

Por outro lado, se Habermas – claramente um não perigoso crente ou extremista religioso – tem razão, e conceitos como “moralidade e ética, pessoa e individualidade, liberdade e emancipação” se tornam “inacessíveis”, sem o acesso à “substância do pensamento histórico-salvífico de origem judaico-cristã”, a omissão desta dimensão num currículo escolar pode criar um perigoso problema de fundamentação. Devemos até questionar se o ensino da dimensão religiosa, de forma plural, crítica e neutra, não é um contributo fundamental para a manutenção de um Estado laico, vertido, constitucionalmente, no princípio de “liberdade de consciência, de religião e de culto”, em que se inclui a não crença.

Isso é que seria, verdadeiramente, respeitar o “princípio da laicidade da Escola Pública”, conforme está escrito na proposta do Livre, porque laico ou laicidade não é a “eliminação” da religião, laico e laicidade – palavras que, aliás, nunca surgem na Constituição portuguesa – é exercer a liberdade de crer ou de não crer, e a escola presta um mau serviço ao não dotar os alunos de capacidades, grelhas de análise e critérios para exercer esta liberdade. Quer dizer, não presta, digo eu, que o Livre acha que sim.