Há uma cena famosa no O Padrinho onde, paralelamente ao batizado do sobrinho de Michael, o novo líder da família mafiosa Corleone, decorre, por ordem deste, o assassinato dos chefes das restantes famílias mafiosas a operar em Nova Iorque. O episódio surge ritmado pela oração do credo, para tornar ainda mais evidente que, o homem que “renuncia a satanás, a todas as suas obras e seduções”, é o mesmo que comanda um poderoso crime de vingança pela morte do pai, Vito Corleone. O batismo é o alibi perfeito para justificar a sua inocência.

Em certa medida, receio que uma determinada tentativa de retoma da religião, e do Cristianismo por defeito, enquanto momento central da identidade europeia esteja a seguir o mesmo esquema. O cristianismo tem sido, não raras vezes, transformado num poderoso amuleto de combate. Outrora, reis e imperadores estendiam estandartes e altares no campo de batalha. Hoje, não são poucos os “enviados de Deus”, os que defendem a “verdadeira religião”, os que anseiam por uma “reconquista”, os que a cada escrutínio ou pergunta vestem a pele de Cristo perseguido pelos pagãos.

Tal como nos filmes de Francis Ford Coppola, a abordagem à religião não precisa de ser coerente. Ela surge tanto como a aspirina que limpa a consciência, como aquela que é capaz de justificar o que de mais desumano se possa fazer. Tal como nos filmes de Coppola, a religião é o último reduto, a mascote, o talismã, quase num retrocesso a um certo paleolítico religioso.

Hoje é impossível falar de um desaparecimento dos rituais, como descrito por Byung-Chul Han, sem detetar um fenómeno paralelo: o entrincheiramento religioso, que se assemelha quase sempre à experiência Disneyland. Tudo é pintado em cores infantis. O inferno é muito carregado e o paraíso muito azul. À porta existe um quadro de bom comportamento. Tudo é feito para criar um “ambiente seguro” e “sem maus à solta”. Lá sentimo-nos iguais ao homem aranha, porque, simplesmente, vestimos o mesmo fato. E ainda que tudo seja artificial e uma construção, não haverá uma falha ou um arranhão, porque se houver poderemos sempre fazer uma reclamação.

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A verdade é que não é só a ciência que tem que enfrentar tentativas de charlatanice. No campo religioso também as há e não estão só localizada nas “ciências do oculto”. Muitos têm, por exemplo, denunciado que a homeopatia, uma das mais célebres áreas da medicina alternativa, não passa de um placebo. Mas parece difícil explicar que há uma abordagem ao fenómeno religioso que é, antes de tudo, individualisticamente narcísica, e que recorre ao mesmo mecanismo da pseudociência: uso de termos “científicos”, argumentos de autoridade – muitas vezes descontextualizados – e a criação de controvérsias artificiais.

No caso particular do Catolicismo, o recurso a termos como tradição ou lei natural, as citações de Papas, maioritariamente de nome Pio ou Bento, ou a recente questão sobre a liturgia “pré-vaticano II” são tudo formas de miopia, que tendem a fazer esconder que a história da Igreja e da teologia é acima de tudo marcada pela polémica, pelo debate e pela disputa.

A verdade é que é mais próprio do Cristianismo, ser o estrangeiro a revelar a verdade, do que aquele que guarda a lei. É mais próprio do Cristianismo, gerar desassossego que proteção. É mais próprio do Cristianismo, dispor-se a morrer, do que a matar, porque ele, treinado através da luta contra a idolatria e a superstição, desenvolveu, no seu interior, um espírito de crítica permanente sobre o religioso, uma dinâmica subversiva, que Adolphe Gesché definiu como “ateísmo suspensivo”. Porque, como em tudo, não basta surgir ajoelhado numa igreja, para ser religioso ou cristão.