Foram 15 dias de um tropel de candidatos, todos languidez e visco, correndo pelas ruas «ao encontro da multidão». Coloco a expressão entre aspas porque não estou convicto de que seja possível realmente ir ao encontro de uma multidão – uma multidão não tem rosto. Costuma dizer-se da turbamulta que tem «um só coração» ou «um só espírito», mas suspeito fortemente de que não tenha nem um nem outro: as arenas das modernas chusmas – estádios e festivais – demonstram que ela terá emoções, talvez, e vontade, mas não muita razão. Um pesadelo voluntarista, enfim, untuoso e balofo, pronto a resvalar para onde o azeite escorrer.

Recordo-me de um dia ter ouvido que os fundadores das ordens religiosas medievais dispuseram expressamente nas respectivas Constituições a obrigatoriedade de uma discussão participada e colectiva, reservando contudo algumas decisões para um único indivíduo por uma razão: era necessário assiná-las com o seu próprio nome. O exercício democrático, por ser anónimo, não tem consciência e tem uma memória muito curta e, apesar ao tempo não existirem redes sociais, Domingos, Francisco e Bento sabiam que dificilmente alguém teria coragem para gritar sozinho as mesmas palavras que usaria quando diluído num grupo; que ninguém assinaria com o seu próprio nome as alarvidades que com fervor bolça quando amparado na vozearia de comparsas.

A precariedade e exigência da democracia é consequência desta reivindicação por uma voz individual (mesmo que delegada noutros) da qual nos pedirão contas. Nada pode substituir a nossa busca pessoal pela verdade. Não é por acaso, aliás, que os regimes totalitários odeiam o indivíduo, procurando anulá-lo em paradas operáticas de submissão e em encenações maniqueístas das suas certezas.

Se a tragédia fosse, como por vezes gostamos de pensar, uma representação do conflito entre o Certo e o Errado, não seria tão envolvente: a sua tensão deriva de algo muito mais complexo e interessante, que é o conflito entre dois Certos. Antígona de Sófocles – em muitos aspectos, a tragédia por excelência – termina com o sepultamento prematuro de uma jovem, depois de ser condenada à morte pelo tio.

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Esta peça acompanha o funesto percurso dos filhos de Édipo, o malfadado rei tebano cuja descoberta da sua terrível natureza dupla – filho/marido, irmão/pai, rei/bode expiatório, salvador/destruidor – é o tema de Édipo Rei. A ação de Antígona ocorre um dia após os dois filhos de Édipo se terem matado numa batalha pelo trono de Tebas. O herói de Édipo Rei, não tem ideia de quem realmente é, e passa a peça a, com genuíno desejo, descobri-lo; a heroína de Antígona sabe exatamente quem é e – de certa forma, perversamente, mas também inevitavelmente – decide prová-lo à custa da sua própria vida.

Depois de Édipo descobrir o seu terrível segredo, a sua esposa/mãe, Jocasta, mata-se; Édipo cega-se, integrando aquela longa fileira dos mitológicos sábios cegos, homens cuja visão interior tão arduamente conquistada lhes reclamou os olhos. Édipo abdica do trono que a inteligência lhe conquistara e parte para o exílio. Os seus dois filhos – que, por causa do casamento incestuoso, são também seus irmãos – Polinices e Etéocles, concordam com um governo rotativo: cada um reinará por um ano, permitindo que o outro assuma o cargo imediatamente após. Sendo a rivalidade entre irmãos o que sabemos, o acordo não dura muito. Num determinado momento, Etéocles recusa-se a renunciar; o seu irmão Polinices foge e, com seis companheiros, planeia uma invasão de Tebas – invasão que acaba por ser repelida pelos tebanos que lutam sob o comando de Etéocles, mas apenas após amargo derramamento de sangue. No clímax da batalha, os irmãos desferem golpes mortais um sobre o outro precisamente no mesmo momento.

É aqui que começa a ação de Antígona. Creonte, irmão da esposa/mãe de Édipo, Jocasta, tio dos filhos do cego, assume o governo da cidade. O seu primeiro édito como rei versa o destino dos corpos dos dois irmãos caídos. Etéocles, que defendeu a cidade, receberá um extraordinário funeral de estado, enquanto o corpo de Polinices será atirado aos cães, “insepulto e não chorado”; qualquer pessoa que lhe dispense os ritos funerários será apedrejada até à morte. Antígona ignora as advertências da sua irmã Ismene para se manter discreta e evitar problemas; dirige-se ao local onde jaz o corpo insepulto do irmão e borrifa-o com alguns punhados simbólicos de terra, algumas gotas rituais de água, obedecendo assim tanto à obrigação religiosa como ao dever familiar. Fazendo-o, viola o decreto do tio, que acredita apenas na primazia da Lei. Antígona é capturada e condenada à morte, não apedrejada, mas enterrada viva numa caverna.

A brava princesa adolescente, que não vê outra escolha senão ouvir a sua própria consciência; que insiste no primado do sangue sobre todas as coisas, provavelmente teria sobrevivido, nalgum outro universo não trágico, num universo de perdão e compromisso em que o seu oponente não estivesse tão vinculado à convicção da justiça do seu caso como Antígona estava do dela. Um universo, por outras palavras, onde os homens e o ideal fossem contíguos, em vez de, como tantas vezes são, implacavelmente opostos.

São incrivelmente jovens os protagonistas de várias tragédias: Antígona, Penteu, Hipólito, Fedra – todos são, no fundo, adolescentes. A extrema juventude destes heróis, e a maior idade dos antagonistas que muitas vezes procuram frustrá-los, sugere um outro conflito trágico: o conflito entre o feroz absolutismo da juventude e os compromissos exigidos pela maturidade.

No ano em que a nossa democracia celebra 50 anos, a singular precariedade de um boletim de voto recorda-nos que é absolutamente imprescindível preservar o quotidiano – esse anátema de que a tragédia ri – com os compromissos possíveis que a esperança conseguir engendrar para que, renunciando ao furor dos idealismos e de maniqueísmos, nenhuma Antígona tenha de morrer.