Estou totalmente de acordo com o dia de reflexão imposto pela Comissão Nacional de Eleições. Nem que seja por 24 horas, é preciso parar para reflectir. E desanuviar. Há semanas que os portugueses não fazem outra coisa excepto discutir a Europa. Nas ruas, nos cafés, nos restaurantes, nas salas de estar, nos transportes públicos, nos transportes privados, nos andaimes das obras, nas bancadas dos estádios, nos lavabos dos postos de combustíveis, nos corredores das feiras de enchidos a Europa é a única coisa a encher a boca dos cidadãos (além dos enchidos, naturalmente). Cumprimento a senhora da padaria e ela desata a confessar preocupações com o futuro do euro. Cumprimento o empregado da oficina e ele produz uma opinião acerca do Brexit. Não cumprimento o vizinho e ele chama-me malcriado – e depois convida-me a visitar os belos retratos de eurodeputados que pendurou nas paredes de casa. Chiça, que é demais: não admira que a taxa de abstenção nas “europeias” de amanhã prometa rondar os 0%. Ou menos, que há gente tão entusiasmada que tentará votar duas ou três vezes.

Por mim, apenas tenciono votar uma. Não digo em quem, ou no quê, porque a CNE não deixa. E faz muito bem. É tempo de obrigar as pessoas a dedicar o tempo delas a assuntos diferentes, que também os há. Há a bola, claro, sempre uma fonte riquíssima de alegria, racionalidade e bordoada. Há o caso da triviúva que, em conluio com o triamante, é acusada (triplamente, suponho) de matar um (um?) senhor que era triatleta e seu trimarido. Há o drama do dr. Moita Flores, que após anos a comentar crimes, bicrimes e tricrimes, se vê agora suspeito de pentacrimes enquanto autarca. Há a continuação da polémica, com um só lado, em volta das comendas do comendador Berardo, de longe o ponto de maior interesse na corrupção do regime. Há a baba generalizada com a atribuição de um prémio qualquer a Chico Buarque, bom letrista, prosador fraquinho e imbecil de gabarito. Há o “contingente” [sic] da Protecção Civil dispensado para, a expensas públicas, ajudar uma telenovela da SIC a recriar os incêndios de 2017. Há as proezas do governo, que nos enriqueceu a ponto de podermos pagar os combustíveis e a electricidade mais caros da UE.

Acima de tudo, ou exactamente abaixo, há a segunda “greve climática estudantil”. Não sei se a adesão foi maior ou menor do que a primeira, realizada em Março. Sei que desta vez as nossas crianças (salvo seja) não precisaram de seguir uma modelo sueca (salvo seja), a divertida “activista” Greta. Em dois meses, o empreendedorismo pátrio conseguiu produzir “activistas” próprios, e logo em dose dupla: Alice Gato e Gil Ubaldo. A menina Alice e o menino Gil concederam uma entrevista à Renascença e ao Público, e a entrevista é um primor.

Para começar, uma das jornalistas parece falar com a menina Alice e com o menino Gil como se falasse com a pequenita Maria Armanda à época em que “Eu Vi Um Sapo” venceu o Sequim D’Ouro. Para continuar, a menina Alice e o menino Gil falam com as jornalistas como se fossem a pequenita Maria Armanda – mas sob os efeitos de uma educação deficitária em juízo e pródiga em clichés.

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Exemplos? Vamos a eles: “O 15 de Março foi o início de uma luta e o 24 de Maio é para demonstrar que não nos vamos embora até essa luta ter alguma resposta”; “Para sermos rebeldes e agirmos contra o sistema, temos de começar na juventude. Temos reivindicações sérias e vamos sair à rua para mostrar isso até ao fim”; “Nós até temos crianças da primária a irem às nossas manifestações. E há um grande envolvimento dos professores e dos pais”; “Sim, é verdade, nós faltamos às aulas. A greve estimula muita gente a ter uma acção diária. Faltar às aulas é o menor do nosso problema. Não vale a pena estarmos a ir a uma aula, quando o nosso sistema de ensino não nos incentiva a agir por aquilo que nós acreditamos”; “É como a Greta diz: Nós não conseguimos mudar o clima sem mudar o sistema”; “A nossa luta é transversal e, enquanto lutamos pelo clima, não podemos deixar para trás a luta laboral. Além disso, reivindicamos o melhoramento eficaz da rede de transportes públicos, de modo a reduzir o uso do transporte particular”. E a minha atoarda favorita, a propósito dos objectivos do “movimento”: “Termos 100% de energias renováveis até 2030 e a proibição da exploração de energias fósseis em Portugal”.

Só não é impossível compilar resma comparável de ignorância, criancice, ócio mental e sintomas da desgraça em que estão o ensino e a paternidade actuais na medida em que existe o esquerda.net. Suponho, aliás, que, para a menina Alice e o menino Gil, o site constitua leitura de referência e referência profissional: não faltam carreiras disponíveis para quem, munido de uma “visão” para o “futuro” e fé cega, decide enveredar pelo encantador caminho das “causas”.

Se eu soubesse, teria aproveitado a oportunidade. Na idade da menina Alice e do menino Gil, fiz diversas greves à escola a pretexto do clima: mal o sol aquecia, trocava as aulas pela praia. Faltou-me ser entrevistado pelos “media”. E faltaram-me as “redes sociais” para divulgar o que talvez passasse por uma “ideia”. E faltaram-me os telemóveis e os computadores para multiplicar os parceiros de “luta”. E faltaram-me a lembrança e a lata de transformar a preguiça num modo de vida. E faltaram-me familiares que acolhessem as gazetas, perdão, as greves com orgulho e não com uma sova. Hoje, falta-me a paciência para explicar à menina Alice e ao menino Gil que o “sistema” que “combatem” é justamente aquele que lhes tolera, aceita e, nos momentos de masoquismo, aplaude esse “combate”. Se calhar eles já sabem.