Foi só em 1967 ou 1968 que vimos a Terra a cores, no caso o azul porque essa é a luz que os oceanos reflectem. A Terra já era “azul” há uns quatro mil milhões de anos, e continuou a sê-lo por mais cinquenta e pico. De repente, aí por 2020 ou 2021, deixou de o ser. O planeta mudou de “pantones”, pelo menos a acreditar nos mapas meteorológicos nos meses de Verão, que passaram a mostrá-lo laranja, vermelho, púrpura e, presume-se que para os territórios carbonizados, preto, de acordo com as temperaturas de cada lugar. Antes, os mesmos mapas, e para as mesmas temperaturas, mantinham-se fiéis ao azul, intercalado com o verde para distinguir os continentes do mar. Agora é o inferno. Um inocente que consulte as previsões do tempo a fim de averiguar se amanhã pode ir à praia é imediatamente atacado por imagens retiradas do Livro da Revelação, com um fogo perpétuo (ou de Junho a Setembro, vá) no lugar do areal, do país e do hemisfério inteiro. As temperaturas máximas, informam os meteorologistas, atingirão os trinta e tal graus, fenómeno sem precedentes desde a última vez que aconteceu.

A causa disto são as alterações climáticas. Corrijo: a causa disto é o medo que se deseja suscitar a propósito das alterações climáticas. Há por aí a ideia de que é urgente que a humanidade viva aterrorizada com as consequências da sua própria existência. Idealmente, a humanidade nem devia existir, com excepção das ilustres cabeças que alcançaram semelhante conclusão. Com fastio, e vasta generosidade, as ilustres cabeças lá permitem a nossa sobrevivência, mas sem os luxos a que a tecnologia nos acostumou, como carros e comida. Bicicletas e larvas chegam perfeitamente. Com regularidade, os senhores do mundo viajam em jactos privados para reuniões onde, em redor de mesas frequentadas por foie gras, condenam o uso de combustíveis fósseis e as refeições. E depois mandam pechisbeques espalhar a mensagem pelos ímpios: pequenas Gretas, celebridades sortidas, “líderes” (tosse) políticos, Guterres e portentos em geral discursam enojados com os excessos de quem ganha mil e poucos euros e mal consegue pagar a casa (a qual, não tarda, vai parar ao Estado).

A Covid demonstrou que os esforços para salvar a Terra e arruinar os respectivos habitantes não se reduzem às questões do clima. Porém, o “imaginário” apocalíptico transforma o clima no instrumento perfeito. Não é à toa que há décadas nos massacram com previsões do iminente Juízo Final, que nunca finda nem é muito ajuizado. Descontados os inúmeros antecedentes históricos, a actual vaga de histeria começou na alvorada dos anos 1970, ou seja logo após a publicação das tais fotografias do planeta “azul”. Coincidência? Provavelmente. Certo é que de então para cá se multiplicaram profetas empenhados em informar as massas de que as massas não iriam longe. Motivos? A fome, que dizimaria metade da espécie em 1974. O buraco do ozono, que nos pulverizaria em 1980. As chuvas ácidas, prontinhas em 1985. A nova idade do gelo, a entrar em 2000. Os dilúvios, despejados em 2010. O desaparecimento do Ártico, consumado em 2015.

A boa notícia é que os especialistas na matéria parecem apenas especializados em falhar sempre. A má notícia é que isso não os impede de voltar a tentar – e voltar a falhar. Há centenas, talvez milhares, de exemplos de espalhanço. Gosto em particular do de Stephen Schneider, cientista britânico que em 1976 escreveu The Genesis Strategy, livrinho em que, à conta do arrefecimento global, anunciava o sumiço quase completo dos cereais cerca de 1979. A tese foi levada a sério por investigadores, estadistas e os “media”, que se lançaram num recomendável pânico até que, em 1977, uma série de outros estudos inabaláveis indicava que, afinal, o verdadeiro perigo vinha do aquecimento global. Schneider não demorou a inverter a marcha e abraçou com o fervor do costume a novidade. Nos trinta anos seguintes, serviu a Casa Branca em seis administrações, sendo um dos maiores peritos em alertar para as catástrofes decorrentes do aumento das temperaturas. Morreu em 2010. Num momento de rara pertinência, reflectiu sobre a necessidade de assustar as populações e de distorcer informação: “Cabe a cada um de nós encontrar o equilíbrio entre a eficácia e a honestidade”.

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A tendência para se desvalorizar a honestidade em prol da eficácia é uma das razões que me levam a desvalorizar o cataclismo climático em prol de uma modesta indiferença ao assunto. Não aprecio proselitismos, nas religiões tradicionais ou naquelas que substituíram o marxismo arcaico. De Jonestown a Waco, do Templo do Sol aos terraplanistas de Oliveira do Hospital, não sou propenso a cultos. E o clima, do modo excitado que nos é vendido pelos governos e pelas televisões, tornou-se um culto. Um culto com gurus, santinhos, dogmas, sacrifícios, fanáticos e, claro, hereges, que o catecismo designa por “negacionistas”.

Eu não nego coisa nenhuma. Pelo contrário, limito-me a constatar o imenso ridículo em que há meio século incorrem as profecias do ramo, recorrentemente desmentidas pela realidade, a autêntica “negacionista” disto tudo. Por azar, nos cultos milenaristas o falhanço das profecias não diminui a crença nas ditas: os gurus arranjam maneira de fintar os factos, e os devotos arranjam maneira de prosseguir a devoção. Ao segundo exercício, os psicólogos chamam redução da dissonância cognitiva. Ao primeiro, os juristas chamam fraude. E quando, ainda esta semana, um estudioso local afirma que a Irlanda – e suponho que Portugal – está a sofrer um “aquecimento global assintomático” (não faz lembrar nada?), uma boa dose de fraude parece evidente.

Por mim, não sei se o mundo está a aquecer ou a arrefecer. Não sei se qualquer das hipóteses nos é alheia ou provocada pelo homem, essa excrescência que convém extirpar à natureza. Não sei se, a provar-se, a influência antropogénica tem retorno, e o que é que, descontado o folclore, o retorno implica. Sei que não faz sentido abdicar do relativo conforto adquirido, e regressar ao Paleolítico ou ao maoismo, a pretexto de um Apocalipse constantemente adiado e a troco de uma salvação claramente duvidosa. E sei que, após berrarem que se farta, os cultos terminam em suicídio colectivo, no fundo a confirmação possível das profecias. Fica a sugestão.