Julian Assange saiu em liberdade, por acordo judicial, após sete anos exilado na embaixada do Equador em Londres e cinco anos preso na cadeia de Belmarsh. É um mundo muito diferente, este para onde volta aquele que parecia o profeta de um novo tempo ainda difícil de entender em 2006, quando lançou o WikiLeaks, e que agora sabe a ícone fora de moda, totem pop de uma época que a geração Z, ironicamente, terá dificuldade em compreender. E a culpa é dele. Querem dizer: o mérito? Fiquemos por “responsabilidade” e não se fala mais nisso. A responsabilidade, ou pelo menos muitos, muitos gigabytes dela, é do próprio Assange.

O pai do “hacktivismo” e do “jornalismo de denúncia” contribuiu, como poucos, para a construção da ideia de uma internet concebida sem pecado, onde os pequenos, os cidadãos, as partes “desinteressadas” denunciavam estados e corporações e o indivíduo mais anónimo poderia derrubar a maior das organizações. Ao revelar milhares de documentos classificados do governo americano, expôs os ataques contra civis no Iraque, as torturas em Guantánamo e Abu Ghraib, enfim, as violações dos direitos humanos feitas em nome da defesa desses mesmos direitos humanos.

À vista de hoje, e considerado só por estes actos, Assange seria um mártir e talvez o paladino da liberdade de imprensa que desmascarava os abusos da então única super-potência que tantos quiseram ver nele. Como chegou a parodiar, então, o histórico “Saturday Night Live”, Assange dava de graça aos cidadãos informações sobre as grandes corporações e era um vilão; Mark Zuckerberg, fundador do Facebook, vendia às grandes corporações as informações confidenciais dos cidadãos e era o homem do ano.

Só que aquele antigo programador de jogos com pinta de líder de seita nunca poderá ser considerado só por esse prisma. Ele foi e é também o homem a quem Trump agradeceu a divulgação de uns emails em que Hillary Clinton fazia nunca ninguém entendeu bem o quê, mas que serviram para decidir as Presidenciais americanas em 2016. O santo padroeiro dos whistleblowers Chelsea Manning e Edward Snowden, que divulgaram segredos militares americanos e, não por acaso, (no exemplo do segundo; a primeira foi presa) só encontrariam exílio na Rússia de Putin.

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18 anos depois das primeiras revelações do WikiLeaks e 12 de encarceramentos de Assange, a obsessão pela “transparência” como valor sacrossanto conduziu-nos a um mundo que os antigos jamais previram: um onde a verdade pura e simplesmente desapareceu enquanto valor. Não vale nada. Cada um tem a sua. Confrontar um adversário com factos durante uma discussão tornou-se tão inútil como levar um colete salva-vidas para o deserto. Dito de outro modo: foi o dogmatismo da verdade que a destruiu. A busca por ela, a ideia de que era o maior dos valores, que estava acima de tudo e tinha de ser revelada, não importava a troco de quê.

Já não se propagam documentos confidenciais, como nesses remotos anos zero, mas memes e gifs, fake news e deep fakes, o que quer que seja que diga o que nós queremos dizer e possa servir para convencer os outros da nossa verdade. A figura a um só tempo angélica e metálica de Julian Assange, branco ou platinado como criatura neutral, aterrado de outro mundo, folha em branco sobre a qual escrever um testamento novo, trouxe, afinal, uma outra queda do paraíso. Se ninguém estava inocente, se eram todos tão humanos como nós, porque lhes obedecíamos?

A ideia da “denúncia” enquanto acto virtuoso generalizou-se. O dedo apontado à procura da mácula, da falha, a competição para ser o primeiro a descobrir o pecado, atirar a pedra, destruir, derrubar. Como se fôssemos imaculados. Como novos Prometeus que não sabiam o que fazer ao poder da chama que a internet lhes colocara nas mãos, incendiámos tudo, na esperança primitiva de purificar o que quer que fosse pelo fogo. Lentamente, perdemos a confiança nas instituições, na imprensa, nos estados. Convencemo-nos de que, sozinhos e armados com um smartphone, poderíamos aceder directamente à virtude, à liberdade e à justiça.

Mas o “jornalismo de denúncia” era uma contradição: se o primeiro se reduz à segunda, sem exercício crítico, auto-destrói-se. Um jornalista não é um megafone. Um dedo apontado não é uma filosofia do direito. A indignação não chega para programa político. A fúria com que perseguimos a verdade e quisemos, à força, tudo expor ao olho e julgamento público, revelou apenas a evidência: a nudez da verdade, como quase toda a nudez, não é necessariamente coisa agradável de se ver à crua luz do dia. Precisa de contexto e ponderação. Fica melhor vestida, tratada e bem iluminada, como era suposto sabermos já, depois de tantos séculos de arte e civilização.

Aos deuses antigos não admirávamos a transparência, mas a transcendência – não era por acaso. A transparência, a denúncia, a obsessão por uma suposta verdade que vai dividir o mundo entre puros e impuros, em vez de aproveitar aos Putins da vida, isso é tudo muito bonito, mas eu prefiro ficar com o realismo do velho Bismarck: gosto de salsichas e de leis. Quanto menos souber como são feitas, melhor durmo de noite.