Nesta quinta-feira de manhã estava a orar com o Pedro na Igreja quando ele disse uma frase que me atropelou. O Pedro é um rapaz novo que veio parar à nossa casa de oração na Lapa há cerca de um ano. Como nasceu na Marinha Grande, terra do meu pai, tem aquela pronúncia única e cantada que os de Leiria, vizinhos mais cultos e privilegiados do que os da terra do vidro, amaciam. Quando um marinhense fala, a primeira sílaba pode ser um mi e a segunda desce para um lá—é melodia forte mesmo. Logo, quando ouço o Pedro, ouço os meus primos, os meus tios, a minha avó (ouço até o meu pai quando ele, falando com gente da terra dele, recupera provisoriamente a pronúncia).

O Pedro tem um hábito que infelizmente tende a perder-se à medida que passam os anos depois da nossa conversão: ele ora o que pensa. O que ele diz a Deus é o que ele diz a si mesmo. E há uma riqueza incrível nisso. Quanto mais respeitados na fé somos, mais tentados nos sentimos em agir em conformidade com o património que ela alcança no reconhecimento dos outros. E, não me entendam mal: é suposto que a nossa fé amadureça ao ponto de poder ser confirmada pelas pessoas à nossa volta (é também isso que está em causa quando Jesus, no Sermão do Monte, explica que a luz não é para ser colocada debaixo do alqueire, mas no velador). Mas também é verdade que todos os grandes tombos se dão quando a nossa qualidade se consensualiza.

O bom orador torna-se, então, a oficina perfeita de Satanás. O discurso redondo, ajustadinho, lustroso até, podendo dizer o que é devido, anuncia a pior blasfémia que depende sempre da auto-satisfação. Não há nada tão difícil na vida de um Pastor como sabermos que falámos bem (até este texto atamancado corre esse risco). De certo modo, quando se aprende a pregar o evangelho, desaprende-se a precisar dele. É por isso que precisamos mesmo de Jesus: porque até nos momentos em que o elogiamos arranjamos formas de o trair. Somos criaturas dificilmente salváveis e por isso é que só uma história tão árdua como a cruz é capaz de redimir gente omni-condenável.

Quando o Pedro ora, encontro-me a mim mesmo na oração dele—o Tiago sem punchlines, desvalido de remates verbais, completamente à nora diante de Deus. E é quando nos sentimos realmente à mercê que, vejam bem o óbvio!, descobrimos que Deus tem mercês para nós, tem misericórdias mesmo. Sabemos que somos seriamente amados quando não temos mais linhas para dizer no palco e a acção já não é nossa. Ser amado é ser recebido, desistindo de qualquer conquista, seja ela feita pelo que falamos ou pelo que fazemos. Diante do amor de Deus somos totalmente passivos e por isso o melhor é não atrapalhar mesmo. Sobretudo com as nossas qualidades.

O Pedro estava a orar e disse uma frase que me atropelou. Disse assim enquanto falava com Deus e comigo: “é uma dificuldade que eu tenho em detalhar todo o bem que me fazem”. Quando terminou a oração, dei-lhe o meu “amém”. Mas fiquei logo meio engasgado. Ele tinha acabado de confessar uma fraqueza que descreve a minha vida toda. E que nunca fui capaz de exprimir de um modo tão claro e conciso. Tentei dizer-lhe isso, quando me despedia dele, mas o melhor que consegui, depois de fechar a porta da igreja, foi sentar-me num dos bancos do salão de culto e fazer o que os judeus faziam junto às margens dos rios da Babilónia.

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