Os povos já se habituaram a conviver com o hábito de os políticos que desempenharam funções de relevo, na fase tardia da vida, depois de abandonarem a vida política ativa, escreverem as suas memórias, embora nem sempre recorrendo a esse título.
Uma regra aceite com alguma benevolência ou condescendência, pois tem sempre presente dois elementos. Primeiro, que a memória é piedosamente seletiva e, como tal, só se lembra daquilo que quer. Segundo, que a escrita do livro obedece à teoria da justificação, ou seja, há sempre uma razão explicativa da ação ou da inação política em todos os momentos.
Raros são os casos em que o político assume o erro. Por isso se saúda a exceção de Jean Monnet quando admitiu que, se lhe fosse concedida a hipótese de voltar atrás no processo que conduziu à atual União Europeia, teria dado prioridade ao elemento cultural em detrimento da dimensão económica, embora não sejam muitas as vozes que veem um erro na opção tomada por Monnet e pelos outros Pais Fundadores. Afinal, o dinheiro conta e de que maneira!
Ora, como Aníbal Cavaco Silva já tinha escrito os volumes relativos à sua Autobiografia Política, muitos portugueses acreditaram que o político que, durante mais tempo, exerceu os cargos de Primeiro-Ministro e Presidente da República se contentaria com alguns artigos de opinião, suficientemente espaçados no tempo para não serem vistos como uma forma de magistratura de intromissão na política do executivo. Afinal, esses portugueses enganaram-se e, aliás, o engano foi em duplicado como o título do novo livro de Aníbal Cavaco Silva – O Primeiro-Ministro e a Arte de Governar – deixa claro.
Verdade que o político que nunca se enganava e raramente tinha dúvidas não ousou ir tão longe como Margaret Thatcher, a Dama de Ferro que, uma vez retirada da vida política, publicou, no início deste século, um livro intitulado A Arte de Bem Governar.
Que o ato de governar pode e deve ser uma arte poucas dúvidas coloca. Porém, grande poderá ser a diferença entre ‘governar’ e ‘bem governar’. Uma simples palavra é passível de alterar totalmente o sentido de um título. Recorde-se o cuidado colocado nessa escolha pelo príncipe D. Duarte quando escreveu o Livro da Ensinança de Bem Cavalgar Toda Sela.
Cavaco Silva defende que o livro não atribui qualquer influência aos acontecimentos políticos dos últimos tempos. Aqueles em que a coabitação pacífica – para muitos, amigável em demasia, – entre Belém e São Bento cedeu lugar a uma crispação indisfarçável. Algo que não parece corresponder totalmente à realidade. Pelo menos a fazer fé no capítulo pré-publicado por um jornal. De facto, de nada vale a omissão dos nomes quando a opinião pública tem a certeza de saber identificar os visados.
No posfácio da obra mencionada, Thatcher afirma que o seu livro “focou especialmente as questões relacionadas com o poder, o que fez com que, em certa medida, não se concentrasse nas pessoas a fonte de onde todo o poder emana.”
O título do livro de Cavaco Silva aponta para que o seu objetivo seja ainda menos ambicioso no que ao elemento teórico diz respeito, parecendo mais propício a uma espécie de manual de aconselhamento sob a forma como o Primeiro-Ministro deve assumir a função executiva. Algo a lembrar o Príncipe de Maquiavel. Só que Maquiavel dava conselhos a quem nunca chegaria a Senhor de Itália e Cavaco Silva já foi príncipe, embora com duas designações diferentes. Um príncipe nunca consensual, mas suficientemente pragmático para lograr quatro maiorias absolutas: duas a título individual e duas na dimensão partidária.
Será que este livro vai além daquilo que o título deixa antever? Essa é uma dúvida a que só a leitura da obra poderá responder e, mesmo assim, sujeita à interpretação e à matriz ideológica e cada leitor.