“É um fenómeno curioso: o país ergue-se indignado, moureja o dia inteiro indignado, come, bebe e diverte-se indignado, mas não passa disso. Falta-lhe o romantismo da agressão. Somos, socialmente, uma comunidade pacífica de revoltados”. Miguel Torga (Diário, IX) escreveu isto em 1961 e nessa altura bem precisávamos do romantismo da agressão para derrubar uma ditadura sufocante e obsoleta. Sessenta anos volvidos, temos uma democracia que vai fazendo o seu caminho, apesar de vulnerabilidades manifestas, e um sistema judicial incomparavelmente mais independente do poder político, mesmo que ineficiente. Como povo, continuamos uma comunidade pacífica, agora de insatisfeitos, alguns revoltados, com fortes estados de alma, mas pouco consequentes.

A decisão de Ivo Rosa de dar seguimento para julgamento a apenas 6 acusações de crime a José Sócrates, quando o Ministério Público sugeriu que deveriam ser 31, é motivo de perplexidade para muitos. As leis são o que são e quer juízes quer procuradores são humanos e interpretam os indícios de crime à sua maneira. Porém, esta relação de 5 para 1 parece excessiva e caberá ao Tribunal de Relação de Lisboa decidir sobre os recursos quer do Ministério Público, quer da defesa de Sócrates. Se a perplexidade e insatisfação dos cidadãos é perfeitamente natural, já não o é que subscrevam um abaixo assinado – com perto de 200.000 assinaturas – para o afastamento do juiz Ivo Rosa da magistratura. Em relação a este processo o papel do juiz, que se limita à fase instrutória, está concluído. Já tivemos farsas de julgamentos no tempo de Salazar, e julgamentos populares, no PREC, mas não cabe ao “povo” afastar ou nomear juízes.

É uma deriva populista perigosa, e não contribuirei para ela, colocar Ivo Rosa no pelourinho, e com ele a justiça, o Estado e em última análise a nossa democracia. Uma coisa é identificarmos os problemas da nossa democracia e os riscos do seu declínio como fiz no meu último livro, outra é colocarmos Portugal no grupo de Estados falhados.

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