Há poucos meses, depois das eleições de Outubro, alardeou-se profusamente a falsidade de ter sido pela primeira vez eleita para o parlamento português uma mulher negra. Esquecia-se ou ignorava-se Sinclética Torres, que o fora desde 1965 e tivera o seu terceiro mandato abruptamente interrompido a 25 de Abril de 1974. Aproveitando o embalo, a deputada recém-eleita achou por bem fazer-se fotografar na Assembleia da República, frente a uma pintura de Domingos Botelho, numa atitude de desafio àquilo a que chamava “lógica colonial”. Em vão alguns escreveram que, escolhendo a pintura, errara o alvo, pois confundia escravos submissos com mensageiros enviados a Vasco da Gama pelo Samorim de Calecute. Tal lapso era evidentemente, diante do carácter irrefutável da “lógica colonial”, uma minudência irrelevante. Por isso, como era previsível, não demorou muito para que começassem a surgir diligentes iniciativas para expurgar a “memória colectiva” dos portugueses (ou, for that matter, o seu património museológico) sob a generosa batuta de activistas e militantes “antirracistas”.

Para quem se interesse por verdadeiramente pensar e compreender o passado e a sua repercussão no presente, evitar anacronismos é um imperativo óbvio. A escravatura, o trabalho forçado, o tráfico humano são práticas cuja absoluta repugnância não deve impedir a compreensão do contexto histórico em que ocorreram. E vice-versa: compreender a história não pode conduzir à relativização de juízos morais. Por exemplo, dizer que a escravatura era uma prática corrente entre povos africanos, aproveitada por portugueses e outros europeus, em nada minimiza a imoralidade de tal prática. Contudo, mais importante do que estas óbvias ressalvas é a constatação, igualmente simples, de que o repúdio que a escravatura merece não autoriza manipulações que falseiem a história, submetendo-a à “lógica” linear de narrativas elaboradas por propósitos políticos. As mencionadas referências à “lógica colonial” que deveria ser desafiada é um exemplo eloquente desta atitude redutora.

Os quinhentos anos em que Portugal foi uma nação pluricontinental não podem ser compreendidos por dicotomias simples que tentem agrupar os homens entre bons e maus. E não o podem porque, como é natural, tratou-se de um processo multifacetado e dinâmico, perpassado por ambiguidades e mesmo contradições. Por estranho que possa parecer a um olhar contemporâneo, instituições como a escravatura coexistiram com políticas de integração de populações ultramarinas. Estas políticas permitiam que se escrevesse, no início do século XVII, que “a India e mais terras ultramarinas […] não são distintas nem separadas deste Reino, nem ainda lhe pertencem por modo de união, mas são membros deste Reino, como o he o do Algarve e qualquer das provincias de Alenteyo e Antre Douro e Minho, porque se governão com as mesmas leis e magistrados e gosão dos mesmos privilegios que os do mesmo Reino e assy tão portuguez he o que nasce e vive em Goa ou no Brasil ou em Angola, como o que vive e nasce em Lisboa”. Destas políticas surgiram a assimilação e os casamentos mistos que possibilitaram a Portugal ter nobreza, militares e clérigos negros e mestiços desde o século XV.

Naturalmente, a política portuguesa acabou por acompanhar as modernas tendências da colonização europeia. No fim do século XIX, quando as potências repartiram a África na Conferência de Berlim, Portugal substituiu a sua política ultramarina tradicional por aquilo a que – agora sim – com alguma propriedade se poderia apelidar de “lógica colonial”. Em vez da evocação cristã da irmandade universal entre os homens, impunha-se na época uma antropologia positivista interessada nas diferenças raciais e mentais dos europeus para com os indígenas. Procurava-se, por isso, em nome desse positivismo, corrigir as relações tradicionais, as quais seriam – para usar a expressão de Artur de Almeida Ribeiro, Ministro das Colónias no Governo de Afonso Costa (1913-14) – “dum descabido humanitarismo, deixando de ver as diferenças profundas da mentalidade dos diferentes povos e outorgando a todos os membros direitos civis e políticos”. Surgia, em pouco mais de uma década, o Estatuto do Indígena e o Acto Colonial.

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No lugar de uma unidade integrada, consolidava-se, ao longo deste tempo, a separação clara entre metrópole e colónias. Estas reduziam-se a mercados regidos por leis especiais e expostos a exploração económica acelerada. Apesar destas transformações, foi contudo notável, ao longo do século XX, o desenvolvimento humano, social e económico de cidades como Luanda ou Lourenço Marques. E quando em 1961, depois da invasão de Goa e dos massacres em Angola, o Império português começava a colapsar, era também o desenvolvimento das províncias ultramarinas que entrava em colapso. Além das populações expostas a guerras civis e tiranias predatórias de inspiração soviética, entre as vítimas contar-se-iam também muitos milhares de outros portugueses a quem, embora vivendo em terra africana toda a sua vida, a “lógica colonial” impunha chamar “racistas” e gritar “vai para a tua terra”. “A África é dos africanos, já chega quinhentos anos” – como cantava pouco inspirado, em versos arrebanhados à pressa, Sérgio Godinho.

No século XX, as características da tradicional política ultramarina portuguesa, baseada na integração e na mestiçagem, suscitaram a curiosidade de estudos antropológicos que se libertavam dos dogmas positivistas típicos do princípio do século. O lusotropicalismo de Gilberto Freyre é disso o exemplo mais paradigmático. Em textos como O Mundo que o Português Criou e Uma Cultura Ameaçada: a Luso-Brasileira, de 1940, este evocava a miscigenação no momento em que o nazismo, com as suas teorias biologistas de supremacia racial, atingia o auge na Europa. Histórias como as deste contexto são frequentemente negligenciadas. E são-no porque encaixam mal no mundo a preto e branco de que precisam os fanatismos e puritanismos contemporâneos para a sua identidade política. Fala-se, por isso, numa “fábula freyriana”, como se o lusotropicalismo consistisse em simples serviço ao Estado Novo ou em mera estratégia defensiva de colonizadores envergonhados. Confunde-se a portugalidade presente na África, na América ou na Ásia – um património extraordinário em que se cruzam vários mundos, povos e até religiões – com o rasto de violências coloniais e opressões tenebrosas. Daí os convites à autoflagelação e ao cultivo de um imaginário formado por culpas passadas que se deveriam definitivamente expiar.

É indiscutível que as ciências sociais e humanas estão cada vez mais invadidas por um discurso híbrido que mistura ciência com activismo político. Por isso, quando se aborda o tema do nosso passado ultramarino, surgem os costumeiros apelos à purga do espaço público mediante a remoção e destruição de monumentos, como se estes não tivessem qualquer valor histórico, artístico, educativo e cultural. A tentativa recorrente de provocar polémica em torno da estátua do Pe. António Vieira em Lisboa é disso um exemplo manifesto. Partindo do pressuposto ideológico de que toda a história é a história da luta entre vítimas e algozes, os “radicais diplomados” – para evocar uma expressão de Roger Kimball – atribuem-se a missão de forjar um novo “senso comum”, encontrando nos monumentos que herdámos e erguemos apenas instrumentos e materializações de hegemonias que fabricam falsos consensos que as perpetuam.

Não deixa de ser irónico, porém, que seja esta visão distorcida da realidade o curioso testemunho de uma dupla colonização. Por um lado, a colonização do pensamento por uma linguagem forjada para limitá-lo, condicioná-lo e dirigi-lo (a recente expansão semântica do verbo “colonizar” é disso bom exemplo). Por outro, a colonização da linguagem por uma ideologia que encontra no uso da própria linguagem, e na conversão desta numa espécie de novilíngua orwelliana, a sua confirmação. A consequência está à vista: a proliferação de discursos em que, não raro, os argumentos se misturam com manifestações de ódio, silenciamentos, detracção e ataques ad hominem a não alinhados e dissidentes. Diante da crescente ocupação do espaço público por estes discursos, dir-se-ia que se impõe hoje descolonizar: descolonizar universidades, programas escolares e espaços mediáticos face às “lógicas” dogmáticas politicamente comprometidas que paulatinamente os ocupam.