Além de um exemplo de vida, da promessa de uma existência depois da morte, Cristo ensinou-nos a pensar. Fala-se pouco deste seu legado. Possivelmente por ser o mais perigoso, por legitimar o debate que leva à dúvida e pode conduzir ao fim de certas instituições. Se ainda há quem considere que as democracias ocidentais são mais fracas que certos regimes autocráticos é natural que o livre pensamento fosse questionado noutras épocas mais instáveis. Apesar de tudo, a mensagem passou. Escrevi sobre isso há dois anos, aquando do primeiro confinamento e quando estávamos apreensivos relativamente ao futuro. É bom relembrá-lo agora, por altura de uma guerra na Europa, apreensivos que continuamos relativamente ao futuro. Pior, num momento em que os regimes autoritários adquiriram uma confiança que a história julgava perdida para sempre.

Sou liberal e tenho alguma dificuldade em desassociar a liberdade da religião. Principalmente da cristã. Como referi há dois anos o Cristianismo vê no uso da razão uma faculdade indispensável para a salvação, o que explica a recuperação do pensamento filosófico. O Cristianismo (o católico e o protestante) exige adesão nas matérias religiosas, mas deixa de fora o pensamento na esfera política, social,  económica, tal como a biologia, a astronomia e outros campos científicos. Para o Cristianismo o mais importante é a vida espiritual e a salvação da alma; a política é um assunto secundário porque terreno. A política, a economia, a biologia, a astronomia e demais ciências não são mais que um meio para o tal fim maior que é o espiritual. O dever de estar à altura do desafio, de cada um cumprir o melhor possível o seu papel, pressupõe o uso da razão, implica pensar, o que torna a liberdade imprescindível.

Há quem reduza o liberalismo à economia e se refira aos mercados como algo etéreo e inacessível. Ora, não só o liberalismo é político, social, cultural e económico como os mercados são a mera soma das nossas decisões enquanto pessoas. Os mercados são as pessoas, somos nós, razão pela qual falham sempre que cada um de nós falha. A força dos mercados, a força de cada pessoa que escolhe livremente, é que aprende com os erros e estes não se propagam da mesma maneira que os cometidos pelos que detêm o poder centralizado. É assim também que o conceito de aprendizagem livre está intimamente relacionado com o cristianismo pois o caminho da salvação espiritual também se percorre através do erro. Mas não quero ir por aqui pois, como disse, o cristianismo preza a liberdade de pensamento, nomeadamente o económico e o político. É perfeitamente possível ser-se liberal, socialista ou conservador e ao mesmo tempo cristão.

A mensagem de Cristo foi inovadora até porque não revolucionária no sentido que lhe damos hoje de enorme convulsão social de massas. Este é o outro aspecto muito interessante e esquecido: a mensagem é individual, pois a salvação de que Cristo fala é para cada um e independentemente dos outros. O objectivo não é mudar o mundo, mas que cada um se decida aperfeiçoar e que daí nasça algo positivo. Ao estabelecer uma ligação directa de cada pessoa com Deus, Cristo diz que o caminho é para ser feito sozinho, em solidariedade com os demais, mas sozinho. Chama-se a isto responsabilidade individual.

A liberdade, como a felicidade, não devem ser procuradas apenas porque nos fazem sentir bem. Ser livre é um dever que deriva do sermos pessoas com capacidades cognitivas e de pensamento. Pessoas capazes de escolher, bem ou mal, e de corrigir e reparar as escolhas erradas. Tudo isto em consciência, que é a nossa e não a dos outros. Este é para mim um dos grandes legados de Cristo. É muito terreno, mas indispensável para tudo o resto.

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