Mais um referendo, e mais um grande alarme sobre a revolta dos povos contra a “Europa”. Foi o Reino Unido, agora é a Itália. Os especialistas explicam, pondo um ar grave, que é o “populismo”. Deixemos os chavões mediáticos. O que esteve em jogo em Itália? A Europa, ou um primeiro-ministro que, tendo conquistado o poder com um golpe de bastidores, se preparava para usar um referendo constitucional como meio de plebiscitar a sua pessoa?

Matteo Renzi prometeu demitir-se caso não tivesse o resultado esperado. Ao criar tal expectativa, tal como David Cameron no Reino Unido, fez do seu governo a verdadeira questão do referendo. Porque correu um risco tão grande? Porque, como Cameron, julgou que não havia risco. O referendo italiano não era sobre a União Europeia. Mas toda a gente o tratou como tal. Estavam em causa, segundo os sábios, a paz e a prosperidade do continente. Quem é que, no seu são juízo, poderia votar contra a paz e a prosperidade? David Cameron teve a mesma convicção. Acontece que todos aqueles que no Reino Unido queriam ver-se livres de Cameron – trabalhistas ou conservadores – viram no referendo a sua oportunidade. O mesmo aconteceu em Itália. A campanha pela “saída” no Reino Unido e pelo “não” em Itália contou assim com muitos políticos cujas ideias não eram claras, mas cujos interesses eram óbvios: acabar com um rival.

Agora, as oligarquias ensinam que a culpa é do povinho. O povinho que não gosta de estrangeiros, o povinho que gostaria de fazer o tempo andar para trás, o povinho que não aprecia a integração europeia, o povinho que, quando vota, põe em causa as instituições, os processos, as boas vontades que desde há setenta anos impedem a III Guerra Mundial. Mas permitam-me que pergunte: quem é que põe realmente em causa essas instituições, esses processos, essas boas vontades? O povo, ao votar, ou as elites políticas, ao usarem constantemente a integração europeia para as suas especulações?

Porque é que a plebe não vota sempre pela Europa? Porque, como nos dizem os peritos do “populismo”, está cheia de vontade de marchar nas ruas com as botas fornecidas por algum ditador chaplinesco? Ou porque as elites políticas europeias se habituaram a fazer da “Europa” o bode expiatório de todas as dificuldades? Há décadas que na Europa tudo o que é reforma ou ajustamento é atribuído pelas elites de cada país a essa entidade externa e mítica chamada Europa – como se a “Europa” não fossem eles próprios, os políticos de cada Estado, reunidos em cimeira: é a Europa que exige, é a Europa que manda, é a Europa que é má. E depois, quando o povo vota contra a Europa, ei-los muito chocados, a discorrer sobre abertura e tolerância.

O que os políticos europeus não dizem aos seus eleitores é que a integração europeia tem sido o seu grande recurso para adiarem reformas, aliviarem ajustamentos, disfarçarem erros. Sem os juros baratos do Euro, muitos Estados nunca teriam conseguido financiar, através da dívida, o que já não conseguem pagar com a actividade económica. Sem as compras de dívida pelo BCE, já teriam sido confrontados pela repugnância dos investidores e aforradores. A Europa tem prolongado o modo de vida de um país como a Itália, com uma economia parada há quinze anos e uma dívida pública equivalente a 130% do PIB. A Europa tem permitido à maioria de governo, num Portugal igualmente estagnado e endividado, devolver rendimentos e repor regalias. Mas perguntem-lhes qual é o problema? Dirão logo: o Euro e o BCE. Na Europa, talvez os novos populismos sejam um problema, mas não são um problema tão grande como a demagogia das elites instaladas, que ao mesmo tempo usam a integração europeia e a expõem a todas as culpas.

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