1 Amanhã, primeira terça-feira de Novembro, terão lugar as eleições presidenciais americanas. É certamente um evento importante. Mas algo seguramente tão ou mais importante teve lugar na terça-feira passada, última terça-feira de Outubro: passaram 233 anos sobre a publicação do primeiro Federalist Paper. (Viriam a ser 85, entre Outubro de 1787 e Agosto de 1788).

Um primeiro aspecto a salientar sobre os Federalist Papers é a sua profunda natureza democrática. A Constituição tinha sido aprovada na Convenção em Filadelfia. Mas tinha de ser ratificada pelos estados. E os defensores da Constituição, em vez de apostarem em jogos de bastidores e trocas de favores clientelares com os políticos de cada estado, dirigiram-se com argumentos directamente às pessoas comuns e aos eleitores.

E, em vez de apresentarem “twitters” com “soundbites”, Alexander Hamilton, James Madison e John Jay (sob o comum pseudónimo de Publius) elaboraram argumentos tranquilos e ponderados. De tal forma que, hoje, os Federalist Papers são uma obra clássica da Filosofia Política. E foram escritos como artigos de jornal dirigidos às pessoas comuns.

Dificilmente poderia ser encontrado um exemplo mais expressivo de exercício da cidadania democrática.

2 Só que, tratava-se de um entendimento muito especial de democracia — em vincado contraste com o populismo despótico e revolucionário do sr. Rousseau (um fanático que inspirou Robespierre, Karl Marx, Lenine e Mussolini, ainda hoje misteriosamente associado à ideia democrática).

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Sem sombra de dúvida, os Federalist Papers defenderam o governo fundado no consentimento popular, um governo democrático. Mas, ao mesmo tempo, sublinharam que um governo absoluto do povo seria tão despótico como o governo absoluto do Rei, ou o governo absoluto da aristocracia.

Por esse motivo, nenhuma maioria popular deveria ser autorizada a deter um poder absoluto. Um sistema de “checks and balances” [freios e contrapesos] deveria garantir a separação e controlo mútuo entre os diferentes poderes: executivo, legislativo e judicial. Além disso, dado que, num sistema democrático, o legislativo teria sempre mais poder, esta “inconveniência” [expressão de James Madison no ‘Federalist LI’] deveria ser remediada pela divisão do legislativo em duas Câmaras — o Senado e a Câmara dos Representantes — eleitas intencionalmente por processos diferentes. [Tratou-se, seguramente, da mais engenhosa tradução democrática da aristocrática separação britânica entre Casa dos Lordes a Casa dos Comuns].

Em suma, a Constituição democrática americana intencionalmente introduziu pluralismo e limitação de poderes — incluindo severa limitação de poderes às maiorias populares.

3 Este ponto traz-nos de volta às eleições presidenciais americanas de amanhã. E, em meu entender, à profunda dissonância cognitiva entre o pós-modernismo televisivo do sr. Trump, em contraste com a clássica compostura dos Federalist Papers.

A agressividade com que o sr. Trump trata os adversários é simplesmente chocante. E é contrária ao espírito moderado e pluralista dos Federalist Papers e às mais antigas conservadoras-liberais tradições americanas. Intencionalmente, a Constituição quis limitar e dividir os poderes das maiorias e criar coabitação entre partidos rivais. Isso necessariamente impõe respeito mútuo — na saudável, e intencionalmente desejada, concorrência democrática e pluralista.

4 O respeito mútuo entre partidos rivais supõe necessariamente respeito por regras gerais de boa conduta — ou de conduta “gentlemanly”, como ainda hoje se diz nos “Gentlemen’s Clubs” da América, bem como nos da antiga metrópole do Império (e, já agora, nos “Gentlemen’s Clubs” de Nova Deli, como tive o prazer de testemunhar recentemente) .

Quase não vejo televisão, mas fiquei simplesmente chocado quando há dias vi o Presidente Trump dizer num comício: “You are very lucky that I am your President!” Obviamente, um gentleman só poderia dizer: “I am very honoured and privileged to have been elected by you as your President”.

Por isso, sem surpresa, acabo de ler no conservador Telegraph de Londres que, segundo as mais recentes sondagens, apenas 15% dos britânicos são favoráveis ao candidato Trump. Convém talvez recordar que estes resultados nas sondagens ocorrem num país que acaba de dar uma maioria parlamentar histórica ao partido conservador. Por outras palavras, e apesar de todas as vulgares inovações pós-modernas, “old habits die hard”.

5 Uma última mas crucial pergunta deve ser dirigida ao candidato Joe Biden e ao partido democrático americano: como explicam o significativo apoio popular de que tem desfrutado o sr. Trump?

Sem querer parecer ‘colonialista’, sugeria aos Democratas americanos um olhar atento sobre o que se está a passar no partido Trabalhista britânico. Depois de uma derrota histórica dos trabalhistas nas últimas eleições, o novo líder trabalhista moderado, Sir Keir Starmer, está a enfrentar enfaticamente a ala esquerdista do ex-líder Jeremy Corbyn — cuja filiação no partido trabalhista acaba aliás de ser suspensa.

Talvez os democratas americanos pudessem tirar daqui alguma inspiração para derrotar enfaticamente a vasta e muito vocal ala esquerdista do seu partido — a qual, em bom rigor, é a grande responsável pela credibilidade popular do muito pouco credível George Trump (ou será Donald?, deve ser da idade, mas o nome exacto escapa-me de momento, tal como parece ter acontecido a Joe Biden…).

6 Resta-me terminar com uma clássica citação de Winston Churchill (cuja mãe era americana):

“Americans can always be trusted to do the right thing, once all other possibilities have been exhausted.”

Post Scriptom: Não gostaria de ser mal interpretado. Não faço parte da vasta coligação populista, esquerdista e politicamente correcta anti-Trump. Em rigor, penso que ambas se alimentam mutuamente. Pela minha parte, fico com a clássica compostura anti-revolucionária dos Federalist Papers. Por isso mesmo, felicito a candidata democrática à vice-presidência, Kamala Harris, por ter sido eleita pelo conservador Telegraph de Londres como a mulher mais bem vestida da semana passada. First things first.