Saiu a troika, ficou o Tribunal Constitucional. Acabaram os exames do BCE, do FMI e da Comissão Europeia, continuam os exames dos juízes do Palácio Ratton. Como é que se atreve a compará-los?, pergunta-me o leitor, constitucionalmente indignado. Por este ângulo, estimado leitor: os técnicos da troika pediam reformas estruturais, para agrado aparente do Governo, mas o resultado eram sempre impostos; e os juízes do tribunal zelam pela igualdade, para gáudio das oposições, mas o resultado são também – impostos. Troika e Tribunal Constitucional até podem ser, de vários pontos de vista, coisas muito diferentes. Mas o efeito para o contribuinte é o mesmo: mais impostos. Talvez nos convenha reflectir sobre este facto.

A troika e o Tribunal Constitucional ainda se equivalem de outra maneira. São duas entidades externas à vida partidária, às quais a oligarquia política trespassou a responsabilidade pelos custos do ajustamento. Em Portugal, o que não foi culpa da troika, é agora culpa do Tribunal Constitucional. Nada é culpa da classe política.

Os oligarcas portugueses acreditaram em tempos ter descoberto a chave da riqueza: era só gastar em auto-estradas e em doutoramentos. Se alguma coisa corresse mal, contavam com a protecção mágica da moeda única europeia. Em 2011 tropeçaram todos, os que estavam no governo e os que queriam para lá ir, numa verdade simples: todas as despesas acabam por ser pagas – ou com perdas de rendimento, ou com perdas de crédito. Nesse momento, tiveram de chamar a troika. A troika começou a pedir reformas. Foi então preciso chamar o Tribunal Constitucional.

O último acórdão do tribunal deixou o jogo a descoberto: “medidas de incidência universal – como são as de carácter tributário – oferecem melhores garantias de fugir, à partida, a uma censura decorrente da aplicação do principio da igualdade”. Era o que os oligarcas desejavam ouvir.

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Há ainda quem na nossa classe política invoque com uma saudade cínica as vantagens da desvalorização de moeda própria para fazer ajustamentos. A inflação esconderia os confiscos, através da “ilusão monetária”, e atingiria sobretudo os mais pobres, isto é, os menos capazes de protestar. Mas os méritos da actual “ilusão constitucional” não têm sido devidamente reconhecidos.

Tal como a inflação, o tribunal constitucional pune os mais fracos e poupa os mais fortes, neste caso os funcionários com emprego garantido do sector público, à custa de impostos lançados sobre toda a população, incluindo os pobres. Também tal como a inflação, o Tribunal Constitucional permite ao poder político esconder as suas opções: tudo o que se faz, é por imposição de uma entidade com que não é possível discutir — a constituição, misteriosamente interpretada pelos seus sumo sacerdotes. As oposições de esquerda podem assim invocar “o respeito da Constituição”, em vez de assumirem que o imposto é a única solução que têm para os desequilíbrios de um Estado cuja despesa se recusam a diminuir. O Governo pode consolidar as contas públicas por meio de expedientes fiscais, reclamando sempre que até preferia “reformas”, mas que, como se vê, não lhe deixam alternativa. E todos, caindo em cima do contribuinte, poupam a função pública, que é, historicamente, a base dos nossos partidos políticos.

A caridade manda-me acreditar que pouca gente no Tribunal Constitucional fará ideia do verdadeiro papel que está a desempenhar. Um dia, Chateaubriand viu Talleyrand chegar apoiado no braço de Fouché, e comentou: é o vício apoiado no crime. Aqui, vendo os políticos a dar o braço aos juízes, talvez nos fosse permitido dizer: é o cinismo apoiado na inconsciência.