Os acordos do PSD com o PS são um dos factos mais bizarros da política portuguesa, não em si, mas pelo realce que o PSD decidiu dar-lhes. Entendimento para subtrair dinheiro aos alemães e intenções sobre a “descentralização” sempre houve. Porquê esta encenação? Percebemos para que serviu ao PS, ao PCP, ao BE e até ao CDS. Mas para que serviu ao PSD? O PS, com acordos à direita e à esquerda, é agora a “força de equilíbrio”; o PCP e o BE provaram que só eles impedem uma recaída direitista no PS; o CDS, claro, é a única alternativa. E o PSD? Só estava a pensar em Portugal, como jurou Rui Rio?

Não, não estava. Para compreender isso, é preciso compreender a grande questão do regime. Chamemos-lhe a “questão da responsabilidade”. Há quase vinte anos que o país diverge da Europa, arrastando-se entre austeridades maiores e menores. De quem é a responsabilidade? O Partido Socialista é o suspeito mais evidente: governou a maior parte do tempo, e quando não governou, condicionou a governação, quer com as dificuldades que legou em 2002 e em 2011, quer com a oposição aos ajustamentos de Ferreira Leite e de Vítor Gaspar. Mas eis o mesmo pessoal político que chegou com Guterres e esteve com Sócrates outra vez no governo, e de que se fala? Do tamanho da sua maioria no próximo ano. Alguém lhes pergunta pelos PEC de 2010 e 2011? Não. Em contrapartida, toda a gente sabe que o PSD cortou pensões e aumentou impostos. O PS nunca deu “más notícias”: Guterres saiu antes de o país perceber o que se passava, e o memorando da troika, quando José Sócrates teve de o apresentar, era “um bom acordo”. Passos Coelho, pelo contrário, fez questão de não criar ilusões. Quis ser responsável – e foi responsabilizado. Porque houve austeridade em Portugal? Por causa do PSD.

A preocupação de Rui Rio não é recuperar a “social democracia”, que foi sempre o que pôde ser, ou fazer o Bloco Central, que ficará para o próximo resgate. É outra coisa: tal como o PS apagou as suas responsabilidades na bancarrota de 2011, o PSD pretende apagar as suas responsabilidades na saída limpa de 2014. Ter poupado o país ao fado da Grécia é bom, mas melhor ainda será fazer esquecer o que teve de ser feito para conseguir isso. E para mudar de marca, não haverá melhor truque do que tornar-se mais um conviva na comédia de “acordos” e de “distribuições” do actual governo. É preferível passar por “muleta do PS”, do que carregar o “odioso” das últimas décadas.

Mas Mário Centeno? Não está ele, com as suas resistências orçamentais, a dar um sinal de “responsabilidade”? Não, não se trata de responsabilidade, mas apenas de medo. Centeno, que teve esta semana o cuidado de se apresentar como um simples “agregador” das decisões dos outros,  sabe que a prosperidade, pelo que deve à conjuntura, não pode continuar a ser “distribuída”, sem o risco de catástrofes quando a conjuntura virar. Mas tendo medo, também Centeno não deseja ter responsabilidade. Daí a austeridade dissimulada e indirecta, aproveitando a hipocrisia de Catarina Martins e de Jerónimo de Sousa, decididos desta vez a não reparar na “destruição do Estado social”.

A economia portuguesa é uma das que menos cresce na Europa, apesar dos juros baixos, do petróleo barato e da enchente de turistas. Mas a oligarquia prefere fingir que “reformas” querem dizer “salários baixos”, e dar assim à inércia uma boa consciência (quando é precisamente a falta de reformas que obriga o país a competir com baixos salários). A lição foi sempre clara: nunca tomes para ti as responsabilidades que podes deixar para os outros. O PSD julga que já aprendeu.

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