Desde a queda da União Soviética, em 1991, que nunca se falou tanto de uma guerra nuclear. Será que é um risco real? E será que por isso devemos aceitar uma paz a qualquer preço na Ucrânia?

Alarmismo deliberado

É normal que haja muita gente assustada. A propaganda russa tem apostado em assustar os europeus e americanos, acenando repetidamente com o seu vasto arsenal nuclear para tentar forçar os aliados da Ucrânia a deixar de a ajudar a defender-se. E, sim, uma guerra nuclear total é o maior risco imediato para a sobrevivência da humanidade. Provavelmente provocaria um inverno nuclear de anos que destruiria toda ou quase toda a vida na terra. Isto para não falar da destruição direta que se estima poderia resultar na morte de centenas de milhões de pessoas. Até o imerecidamente famoso doomsday clock já estará só a cinco minutos para a meia-noite – a hora fatídica do fim do mundo. Embora se trate de uma avaliação muito subjetiva dum conjunto de cientistas norte-americanos, mostra bem que, mesmo a esse nível, há gente muito assustada. Não podemos estar certos de nada numa guerra, mas devemos ter o cuidado de não facilitar o trabalho intimidatório da Rússia.

As armas nucleares, a paz e o pseudopacifismo

Comecemos por um breve passeio pela história do armamento nuclear e da sua relação paradoxal com a paz. A arma nuclear não surgiu como parte de um projeto de destruição ou dominação, mas de defesa da liberdade. A primeira explosão de uma arma nuclear aconteceu nos EUA, no deserto profeticamente chamado de Jornada del Muerto, no Novo México, no campo de tiro de Alamo Gordo, no dia 16 de julho de 1945. Foi o culminar do primeiro grande projeto de investigação científica e de desenvolvimento tecnológico. Esta iniciativa dos EUA contou com colaboração britânica, canadiana e, até, do governo belga no exílio (para o fornecimento do urânio a partir do Congo). Envolveu mais de 150.000 pessoas em 30 locais, custando mais de 24 mil milhões de dólares. Tudo começou, em agosto de 1939, com uma carta de Albert Einstein, um dos muitos cientistas brilhantes forçados ao exílio pelo avanço do nazismo, que escreveu ao presidente dos EUA para o alertar para o risco dum novo tipo de arma, com um poder destrutivo sem paralelo, ir parar às mãos da Alemanha nazi. O projeto surgiu para evitar a possibilidade de uma superpotência nuclear nazi, praticamente invencível. Estas primeiras armas atómicas teriam sido usadas contra a Alemanha e não contra o Japão, se o regime nazi não se tivesse rendido, a 8 de maio de 1945. Acabaram por ser usadas, a 6 e 9 de agosto de 1945, contra Hiroshima e Nagasaki, para forçar a rendição do Japão, anunciada pelo imperador a 15 de agosto de 1945. Estimava-se que uma invasão convencional do Japão resultaria em milhões de mortos. O líder soviético, Estaline, quando foi oficialmente informado da existência da nova arma pelo novo presidente dos EUA, Harry Truman, na conferência de Potsdam, encorajou a sua rápida utilização contra o Japão.

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Depois disso assistimos, por parte da Rússia soviética, a uma corrida contra o tempo para obter a sua arma nuclear. Tiveram sucesso, em agosto de 1949, muito graças à sua vasta rede de espionagem. Mas, em 1950, no início da Guerra da Coreia, os EUA tinham 300 armas nucleares e a União Soviética apenas 6. Em 1962, aquando da Crise dos Mísseis de Cuba, os EUA tinham 23.000 ogivas face a 2.700 da União Soviética.

Conhecendo bem melhor esta sua desvantagem do que os serviços de informações ocidentais, a Rússia soviética dedicou-se durante toda a Guerra Fria, com a ajuda da rede internacional comunista, a criar uma vasta organização de propaganda pseudopacifista. Muitos intelectuais públicos, muitos artistas famosos, de Jorge Amado até Pablo Picasso (que desenhou uma bela pomba para servir de logotipo) associaram-se a sucessivos apelos à paz, culminando na criação do chamado Conselho Mundial da Paz, em Paris, em 1949. Esta rede continuou durante décadas a apelar ao desarmamento unilateral e sem condições do Ocidente. Fazia sentido, nesta doutrina comunista pseudopacifista, em que o bloco dito capitalista era intrinsecamente uma ameaça à paz e o bloco soviético era por definição um defensor da paz! O slogan que melhor caracteriza esse movimento (e até alguns pacifistas mais sinceros e radicais) era: “better red than dead” – melhor sob o domínio “vermelho” da União Soviética, do que arriscar fazer-lhe frente. Hoje voltamos a ouvir o mesmo tipo de vozes a fazer o mesmo tipo de apelos. Não aprenderam nada, o que é normal, o dogmatismo não é muito propício à aprendizagem.

Um risco sério deve ser estrategicamente gerido

Claro que devemos levar a sério o risco de a Rússia recorrer a armas nucleares. Mas isso não se faz cedendo ao pânico, seja ele da rua, de colunistas ou de apelos interesseiros de filo-putinistas. Como bem notou Constanze Stelzenmüller, da Brookings – numa conferência recente organizada pela FLAD que tive o gosto de moderar –, os mais altos responsáveis russos e muitos dos seus propagandistas usam, cada vez mais, uma linguagem genocida em particular em relação aos ucranianos, mas mesmo em relação a todos os europeus. Apesar disso, a verdade é que Putin e a elite que o rodeia parece minimamente racional e determinada a sobreviver para gozar os frutos de décadas de acumulação cleptocrática. Não se vê como é que alargar a guerra para atacar mais países, inclusive membros da NATO, arriscando uma guerra nuclear total, serviria os interesses do Kremlin. Tal como durante a Guerra Fria, não há nada pior do que o Ocidente mostrar fraqueza ou temor. Sim, a Rússia tem armas nucleares. Por isso, os EUA e os países europeus têm deixado muito claro que não irão intervir militarmente de forma direta no conflito. Por isso, também – por causa do chapéu de proteção dado pelo arsenal nuclear dos EUA, da França e da Grã-Bretanha – uma Rússia racional não deverá atacar países da NATO por fornecerem armamento à Ucrânia, algo que aconteceu centenas de vezes durante múltiplos conflitos da Guerra Fria sem que isso tivesse levado a uma Terceira Guerra Mundial. Honremos os enormes riscos que os ucranianos estão a correr, com grande coragem, empenhando-nos em ajudá-los a continuar a defender-se, sem complacências, mas também sem pânicos.