É uma mentira desalmada dizer que a nova ex-secretária de Estado da Agricultura durou 24 horas no lugar. Durou 25. Alguns chegam a falar em 26. Em breve, isso parecerá uma eternidade. Não tarda, desata-se a cronometrar governantes a partir do momento em que tomam posse, de modo a celebrar, por antiguidade, os que chegarem ao fim da cerimónia ainda no cargo. E que só à saída se cruzam com os sucessores, acabados de entrar nos jardins de Belém. Lembram-se de quando, por causa da TAP, a rapaziada conseguia aguentar-se meses ou anos até se demitir? Foi há quinze dias. E a época em que carros oficiais atropelavam pessoas mortal e impunemente soa ao Paleolítico. Agora, ou desde que o dr. Costa cruzou as pernocas na capa da Visão e o “Pedro Nuno” decidiu incendiar o partido, os tempos são outros.
Foram as circunstâncias que se alteraram? Não exactamente: misturar socialismo com trafulhices é hábito velho. A novidade é haver investigação dos hábitos, das trafulhices e do socialismo. E quem diz investigação diz denúncias, que as facções do PS andam encarniçadas e em matéria de consequências a coisa vai dar ao mesmo. Ou seja, vai dar a uma vertigem de notícias acerca dos currículos dos senhores que chegam ao governo. E, pelos vistos, os únicos com um currículo limpo são os que literalmente não têm currículo nenhum, como a nova ministra da Habitação. E nem assim convém pôr as mãos no fogo: a sra. ministra também prometeu pôr todos os portugueses a viver no Chiado e suspeito que ficará desiludida.
Entretanto, as revelações sucedem-se. Poucas horas após a sra. secretária das 24 (ou das 25, ou das 26), o Sol chamou para a festa o igualmente fresquíssimo secretário do Ambiente, enfiado numa brincadeira que envolve empresas familiares, as irmãs do sujeito, vinhedo, tratamento de resíduos e lixo radioactivo. O ministro que o tutela não vê motivos para polémica, o que significa que por esta altura o sr. secretário deve estar por um fio, talvez em vias de susbtituição pelo autarca de Condeixa-a-Nova e chefe do PS/Coimbra, condenado ontem a quatro anos de cadeia. Aliás, enquanto escrevo é possível que se preparem mais cinco ou seis remodelações, sete ou oito manchetes e nove ou dez declarações do primeiro-ministro a dizer que confia inteiramente nas criaturas que convida, embora – ele fique ceguinho – não faça ideia do respectivo passado.
A propósito de confiança, na quinta-feira a derrocada em curso convenceu a vasta maioria dos deputados, mediante rejeição ou abstenção, a afirmar que o governo está impecável, sim senhor. Perante isto, a minha primeira reacção foi chamar os parlamentares de retardados para baixo. A segunda foi concordar com a votação deles.
Nunca, na história do regime iniciado em 1975, houve espectáculo comparável ao oferecido pela trupe actualmente no poder. É claro que a trupe se escangalha aos pedaços e ao vivo. É claro que a “estabilidade” perde vantagens se aquilo que se estabiliza é o caos absoluto. É claro que o “regular funcionamento das instituições”, cuja subversão seria critério constitucional para a mudança, é uma expressão que se deve acompanhar com 37 emojis a gargalhar: há muito que as instituições não funcionam regularmente, não funcionam de todo e já nem sequer são instituições.
A questão é que, provavelmente, não existe remédio. Os estragos provocados pelo PS, com e sem “geringonça”, são tantos e tão vastos que passaram o ponto de retorno. A oportunidade para impedir ou controlar os estragos disto foi desperdiçada. Não é de hoje que, na economia e na saúde, no ensino e na justiça, nas liberdades e na vergonha na cara, a sábia liderança do dr. Costa, amparada pelo prof. Marcelo e sufragada em Janeiro pelos eleitores, corroeu os fundamentos mínimos do que antigamente se designava por Estado de direito. A incompetência, a manha, o descaramento, a prepotência e a corrupção têm anos, e na melhor das hipóteses qualquer tentativa de reabilitação levará décadas. Em suma, e por duas, três ou quatro gerações, estamos desgraçados. E se a desgraça não tem solução, ao menos que a graça sirva de consolo.
Não sei o que sucede convosco. Depois de temporadas de sombras e angústia, eu comecei a saborear a prodigiosa rebaldaria a que diariamente assistimos. À semelhança daqueles filmes péssimos de que gostamos para efeitos de galhofa, confesso que aprendi a apreciar um governo medonho – por razões idênticas. É um raro caso, ou casinho, em que faz total sentido a expressão de cepticismo “mau demais para ser verdade”. É mau demais. E é verdade. E, se esquecermos o rasto de miséria que semeou, é um considerável gozo.
Na falta de pão, a gente entretém-se com circo. Ou com o “circuito”, que é a recente “punch line”, perdão, sugestão do dr. Costa para garantir a pureza jurídica e moral dos futuros – e previsivelmente incontáveis – nomeados. Tradução: dado o refugo que sobra para nomear, e a altíssima possibilidade de o refugo arrastar trapalhadas consigo, o dr. Costa, fartinho de saber das trapalhadas, queria fingir que a responsabilidade do escrutínio não é dele. Nem o prof. Marcelo cai nessa. E eu, confesso, caio a rir.
Só é triste que uma comédia de nível aconteça porque as comadres e os compadres socialistas se zangaram e não porque os cidadãos os despacharam a alcatrão e penas, de preferência pesadas. Mas não deixarei que as tristezas me murchem uma inesperada alegria. Já basta o que basta, excepto para os artistas do “governo”: não parem, por favor.