Como todas as tragédias humanas, a guerra israelo-palestiniana também se torna uma farsa assim que atravessa a porta do edifício Berlaymont. O crédito vai para aquele grupo de comissários que corre para uma rede social (“X”) para anunciar decisões sem consultar os Estados-membros sobre políticas definidas pelo Conselho (ou seja, pelos Estados-membros), para depois as ver parcialmente anuladas e por fim corrigidas. É o chamado método Von der Leyen. Neste caso o método foi utilizado pelo comissário Oliver Varhelyi e Janez Lenaric.

Para compreender a confusão gerada no “X”, na passada segunda-feira, devemos começar pelo fim: há profundas divisões ideológicas no colégio dos comissários e nos Estados-membros sobre as decisões a tomar em relação à gestão do conflito no Médio Oriente. Von der Leyen lançou-se com uma atitude intervencionista no apoio a Israel e, não obstante a condenação unânime do ataque terrorista do Hamas, a verdade é que não falta quem critique duramente as políticas de Benjamin Netanyahu. Daí as dificuldades em decidir se e como suspender os fundos de assistências financeira à Palestina.

Então, temos o comissário Oliver Varhelyi a anunciar a suspensão imediata de todos os pagamentos e a revisão de todo o portefólio de ajuda ao desenvolvimento, no valor de 691 milhões de euros. A seguir, o comissário Janez Lenarcic a negar parcialmente o que o colega tinha anunciado. Horas depois, um comunicado da Comissão a dizer que seria feita uma “revisão urgente” da ajuda e que “não há suspensão de pagamentos porque não estão previstos pagamentos” no horizonte. E à noite, uma declaração de Josep Borrell a excluir categoricamente qualquer suspensão de pagamento, alegando que “prejudicaria os interesses da UE na região e só serviria para encorajar ainda mais os terroristas”. Pelo meio, os protestos por parte de alguns Estados-membros, que não concordaram nem com a forma nem com o conteúdo da decisão e os anúncios de outros Estados-membros de suspensão imediata bilateral.

Então, caso encerrado. Não. Na terça-feira, uma nova intervenção do chefe da diplomacia da União Europeia, cuja principal missão é dizer-nos quem é bom e quem é mau, esclarece que na origem das divergências internas está a pior das suspeitas: que os fundos têm sido usados para financiar o terrorismo. E, sem esperar pelo resultado da revisão anunciada pela Comissão, considerou por bem antecipar a sentença: “se descobrirmos que financiamos o Hamas, alguém terá de assumir a responsabilidade política por isso”. Uma intimidação que tem como alvo Oliver Varhelyi, responsável pela supervisão do desembolso dos fundos para a Palestina nos últimos quatro anos.

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O facto é que a UE não tem feito outra coisa senão defender-se e garantir que “o financiamento da UE nunca foi e nunca irá para o Hamas ou qualquer entidade terrorista” e que “tem controlos muito rigorosos para garantir que não haja financiamento directo ou indirecto ao Hamas”. De Eric Mamer a Ana Pisonero, de Von der Leyen a Josep Borrell.

Mas se todos garantem que os fundos, sob a forma de apoio ao desenvolvimento ou de ajuda humanitária, não vão parar às mãos do Hamas, porque devem, então, os fundos ser reavaliados ou suspensos? É um paradoxo, mas é assim que é.

Talvez a questão seja outra: para que servem os fundos que vão parar a Gaza? E quem os controla? De acordo com um porta-voz da Comissão, dos 691 milhões de euros citados por Oliver Varhelyi para apoiar a Cisjordânia e Gaza, previstos na Estratégia Conjunta Europeia de apoio à Palestina 2021-2024, foram atribuídos 224 milhões de euros à Autoridade Nacional da Palestina (ANP) em 2021; 186 milhões de euros em 2022. À Agência das Nações Unidas de Assistência aos Refugiados da Palestina (UNRWA) foram atribuídos 97 milhões de euros em 2021; 97 milhões de euros em 2022; 82 milhões de euros em 2023. Destes montantes, apenas 463 milhões foram efectivamente desembolsados. Não é, portanto, verdade, que “não há pagamentos previstos”, uma vez que, de acordo com o documento da Comissão que resume a distribuição do financiamento, são esperados 10 milhões de euros adicionais ainda este ano para a UNRWA e 168 milhões para a ANP.

A ANP, que tem apenas um controlo limitado dentro da Palestina, conforme reconhece a Estratégia 2021-2024, e que não convoca eleições há 16 anos, por temer que o Hamas as vença, é quem controla e decide onde e como devem ser alocadas os fundos que lhe são destinados, se em salários e pensões, se em “deveres para com as famílias dos mártires e prisioneiros”[leia-se, terroristas], conforme sublinhou várias vezes Mahmoud Abbas, se em benefícios sociais, escolas, hospitais, empresas ou em ONGs sediadas em Gaza.

A UNRWA (única do género), criada em 1949 para apoiar apenas um tipo de refugiados, os palestinianos, gere, entre outros serviços, 700 escolas, cujos manuais escolares foram definidos segundo as normas da UNESCO. Em 2021, uma ONG, a IMPACT-SE, descobriu que os seus manuais não diferem dos do Hamas, uma vez que promovem o discurso de ódio e a violência, apelos à jihad, ao martírio e à negação da existência de Israel.

Não tendo como negar as provas apresentadas pela IMPACT-SE, o Parlamento Europeu aprovou várias resoluções a censurar a UNRWA, por ensinar “o discurso de ódio e violência” nas suas escolas e apelou à suspensão dos fundos à Palestina. Tal como hoje, Josep Borrell, opôs-se: “não há razão para bloquear a ajuda financeira (…) porque não só colocaria em risco a própria Autoridade Nacional da Palestina como prejudicaria os palestinianos. Como alto representante, não permitirei que isso aconteça”.

Já nesta altura, Borrell, ouvia vozes, como Joana D´Arc. Caso contrário não explicaria todos os dias a quem o ouve o que querem os palestinianos e até mesmo os terroristas. A verdade é que os fundos foram suspensos por Oliver Varhelyi, mas um ano depois fez saber que estava pronto para os libertar, para gáudio da ANP, que falou em “vitória política”, por não terem sido impostas condições.

Podemos, portanto, dizer que a UE contribuiu para a formação de uma geração que glorifica o terrorismo, ou que se prepara para entrar nele. Além disso, desde 2014 a UE financiou directamente a Universidade Islâmica de Gaza, com 1,7 milhões de euros. Não é uma universidade qualquer: foi fundada por Sheikh Yassin, fundador do Hamas e que teve como aluno Mohammed Deif, comandante militar do Hamas e mentor do ataque de extermínio indiscriminado sobre Israel no passado dia 7. Outros exemplos de financiamento que, muito provavelmente, acabaram nos bolsos do Hamas (dado que este governa Gaza desde 2007) constam no Relatório Especial n.º 14/2013 do Tribunal de Contas Europeu, intitulado “Apoio Financeiro Directo da UE à Autoridade Palestiniana”.

Dito isto, como pode a UE garantir que nem um cêntimo foi ou irá parar aos Hamas ou que tem “controlos muito rigorosos”? A verdade é que todos ali sabem que há uma probabilidade concreta de parte do dinheiro que chega à Palestina fluir para fins muito diferentes dos pretendidos, mas sempre foi considerada um risco calculado, tendo em conta custos e benefícios. O carrossel de contradições no “X” serviu apenas para confirmar esta consciência cínica e hipócrita e trazer à tona a desordem que por ali reina.

P.S. Segundo noticiou ontem, The Times of Israel, a UNRWA acusou o Hamas de roubar alimentos, equipamento médico e combustível das suas instalações em Gaza e depois desmentiu . Entretanto,  von der Leyen anunciou que triplicará o actual envelope de ajuda humanitária previsto para Gaza de 25 milhões de euros para 75 milhões de euros.