O especial de Natal da Porta dos Fundos sobre Jesus Cristo e o consequente (e intolerável) ataque à sua sede voltou a colocar a eterna questão em cima da mesa: onde paira, afinal, o limite à liberdade de expressão? Até onde pode a sátira ir? Como católico apostólico romano que sou, a sátira da Porta dos Fundos é-me altamente ofensiva – porque mexe, de forma abjeta e reles, em algo que reveste, para mim, caráter sagrado. Por isso, tomei a decisão (óbvia e natural) de não ver.

Daí a tentar proibir o filme vai uma longa distância. O meu pensamento nesta questão é profundamente marcado pelas ideias do aristocrata francês Alexis de Tocqueville (1805-1859), para quem a experiência demonstra que, face à imprensa, podemos adotar apenas uma de duas atitudes: a da sua independência total ou a da sua subjugação plena. Na verdade, também neste domínio existe uma rampa deslizante, que tende a alargar de forma gradual e desmesurada o controlo sobre o que pode ou não pode ser dito, pelo que a existência de uma censura controlada e limitada, para além de utópica, suscitará sempre grandes dúvidas relativamente aos limites traçados (sobretudo quando se recorre a conceitos tão indeterminados e subjetivos como “discurso de ódio” para determinar o que é ou não admissível).

Sendo claro: do mesmo modo que acho absurdo Ferro Rodrigues silenciar e repreender André Ventura por este utilizar a palavra “vergonha” no Parlamento, do mesmo modo que acho absurdo jornalistas falarem em “discurso de ódio” para silenciarem quem defende que rapazes têm pénis e raparigas vagina (como vi há semanas suceder no programa da TVI de Alexandra Borges), do mesmo modo que acho absurdo Bernardo Silva ser sujeito a um programa de reintegração por fazer uma piada inocente com um amigo africano, do mesmo modo que acho absurdo Jaime Nogueira Pinto ser impedido de falar na FCSH por um grupo de maoístas entender que a conferência seria fascista, reacionária e colonialista, também considero absurdo que se procure eliminar um programa ou um filme por este poder ofender um determinado grupo ou segmento da sociedade. Alguém consideraria legítimo que um grupo de coxos, marrecos ou manetas exigisse o fim dos Gato Fedorento por estes terem feito humor em torno da sua condição?

Em todos estes casos há um traço comum: alguém se sentiu profundamente ofendido e, como tal, sentiu-se no direito de silenciar outrem. É contra este policiamento da linguagem e de comportamentos que me oponho, venha ele donde vier e por muito que me possa ofender; não por nutrir uma paixão especial pelo direito ao disparate, à estupidez ou à ofensa, mas porque não suporto a alternativa de ter alguém a determinar o que podemos ou não dizer.

Esta posição é tanto mais importante num tempo caracterizado pela ditadura do politicamente correto. No caso dos católicos, exigir a supressão deste filme da Netflix é (ou pode ser) um verdadeiro tiro no pé, já que implica uma clara aceitação do princípio de que grupos de pressão podem determinar ou que é ou não admissível no espaço público. Compreendem o quão curta é a distância daqui até os (nos) impedirem de assumir posições contrárias às ditadas pelas maiorias, orquestradas pelas brigadas dos bons costumes?

Repito o que disse inicialmente: sou católico apostólico romano e a sátira da Porta dos Fundos é-me altamente ofensiva. Mas longe de mim querer proibi-la. Reservar-lhe-ia apenas e tão só aquilo que me mereceria (desprezo total e absoluto), não fosse a atenção – rectius, publicidade gratuita – que os próprios católicos lhe ofereceram. Não haverá outras formas de reagir? Certamente que sim: os mais ofendidos poderão sempre escrever à Netflix, deixar de subscrever a plataforma, desaconselhá-la a todos quantos conhecem. Essas serão formas legítimas de marcar uma posição e de exercer pressão social e mediática. Mas não se deixem cair na armadilha da proibição; mais cedo ou mais tarde, revelar-se-á um pau de dois bicos.

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