Antes, durante e depois do Conselho Europeu reunido para aprovar o Quadro Financeiro Plurianual (QFP) para o período 2021-27 e a Facilidade de Recuperação e Resiliência (FRR), politicamente traduzido no Next Generation Europe (NGEU), assistimos às encenações públicas de vários membros do Governo e de políticos-comentadores – Fernando Medina, por exemplo, chamou os “frugais” de “forretas” numa manifestação demagógica e infantil. Alguns jornalistas embarcaram no tom e alinharam jocosamente em explicações sobre as posições do “vilão” holandês – uma jornalista correspondente de um canal de TV mencionava as próximas eleições na Holanda e os “escândalos financeiros” do VVD, partido do PM holandês Mark Rutte, escandalosamente (supõe-se) no cargo desde 2007, como as razões para as reservas holandesas em relação à transformação do FFR num gigantesco subsídio a fundo perdido, sem controlo sobre os gastos de países com histórico de má gestão, corrupção, ineficiência e default.

Estas encenações de apelo “nacionalista” (só quando convém) tinham sido já ensaiadas por outros membros do Governo – destacando-se, ameaçador e justiceiro, o MNE Santos Silva – quando se assistia ao confinamento gradual de Portugal na Europa em virtude do descontrolo das taxas de contágio da Covid-19. O VVD holandês foi responsável por 11 condenações de políticos, na sua maior parte por questões éticas e fraude, num total de 39, no pior ano para a imagem da classe política holandesa (2017). Desde 2007, durante 13 anos, 25 membros do VVD a nível local e nacional, foram condenados pela justiça holandesa, um sistema considerado como dos mais inovadores e eficazes – exactamente ao contrário do sistema judicial português.

No ranking internacional sobre o Estado de Direito (Rule of Law Index 2020, organizado pelo World Justice Project), tantas vezes referido como condição para a cedência de fundos aos países do Sul pelos “vilões” do Norte, a Holanda está em 5º lugar do ranking mundial. Portugal está posicionado em 23º lugar, caindo um lugar em relação a 2019. Os restantes “frugal refuseniks” estão todos no grupo da frente: Dinamarca (1º), Suécia (4º), Áustria (8º) e, se quisermos incluir, a Alemanha (6º). Se atentarmos a sub-classificações como “eficácia da regulação”, um dos fracassos mais crassos do sistema político português, aliás interessantemente abordado na “Visão Estratégica para o Plano de Recuperação Económica e Social de Portugal” de António Costa Silva, Portugal passa para 28º (Holanda em 7º), situando-se no critério “ausência de corrupção” no 23º lugar (Holanda em 6º).

Continuando a não recorrer a indicadores económicos, voltemos a comparar os “frugais” e Portugal. O Índice de Desenvolvimento Humano 2019, elaborado pelo PNUD/ONU, apresenta a Islândia em 4º do ranking global, Suécia em 8º, Holanda em 10º, Dinamarca em 11º e Áustria em 20º. Portugal, que caiu 6 lugares, ocupa o 40º lugar.

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Ao nível do Estado e da qualidade da democracia, o “Democracy Index 2019”, produzido pela Economist Intelligence Unit, volta a ser “benevolente” para os “frugais” e “hostil” para Portugal e, naturalmente, para a hegemonia dos governos da esquerda socialista: Islândia, 2º lugar no ranking global; Suécia, 3º lugar; Dinamarca, 7º lugar; Holanda, 11º lugar; Áustria, 16º lugar. Portugal surge no 22º lugar no ranking global e em 15º no ranking regional (Europa). No sub-critério que avalia o funcionamento/eficácia do governo, todos os “frugais”, à excepção da Áustria, estão com pontuações iguais ou acima dos 9,2. Portugal está pontuado em 7,8, ao nível da Estónia, Malásia, ou Singapura.

Perante estes dados, aos quais se juntam a performance económica portuguesa, incapaz de convergir com a média europeia, explicam-se facilmente as reservas de países do Centro-Norte da Europa sobre a qualidade da governance do Sul e dos políticos portugueses em particular.

Aos parceiros de Portugal da UE não cabe ditar opções políticas ou económicas, mas é legítimo pretenderem regras de governance comuns e exigentes ao nível da definição e sustentabilidade das políticas nacionais, monitorização e fiscalização, por se tratarem de recursos colectivos, distribuídos entre os membros. É um facto, que o processo negocial produziu contrapartidas para a aceitação dos “frugais”, mas não se escondam as verdadeiras razões – incompetência do Estado português – atrás de argumentos demagógicos, alegados preconceitos Norte-Sul ou “forretices” que embaraçam todo um país. Há hábitos que a esquerda não perde e um deles é a desvalorização da capacidade de compreensão dos contribuintes e eleitores.

António Costa, seguido por Marcelo Rebelo de Sousa, podem, no dia seguinte à cimeira, celebrar a “vitória” com a dotação de 15,3 mil milhões de euros da FRR – no final do dia, todos ganharam obviamente. Porém, Portugal, embora acompanhado pelos vizinhos do Sul, está remetido, oficialmente, para a divisão dos regionais e para o clube do malcomportados, reflectindo-se na redução dos financiamentos a fundo perdido, no aumento do peso dos empréstimos e na assunção oficial de uma relação directa entre as políticas de financiamento de Bruxelas e a qualidade da governação económica. Portugal já passou para a última carruagem do comboio europeu e arrisca-se a não ser parte da “Próxima Geração Europeia”, cuja visão é transformar a UE de novo numa superpotência global. O acesso aos fundos, não só terá de passar pelo Parlamento Europeu, como ainda serão definidos os regulamentos de acesso e controlo sobre os financiamentos às entidades nacionais, agora aprovados. E, neste campo, tudo aponta para o reforço das práticas de controlo da burocracia europeia por pressão dos “frugais”, com o claro apoio do eixo franco-alemão.

Aquilo que o Estado português e a sua classe política não têm feito – oposição em lugar de destaque que nem os apelos do Tribunal de Contas tem sabido aproveitar -, i. é, a criação de mecanismos de vistos prévios, de controlo, de regulação e, finalmente, de punição sobre infractores nas matérias relativas a créditos e financiamentos públicos directos ou indirectos (veja-se a Caixa Geral de Depósitos), será agora executado pela Comissão Europeia, num atestado de incapacidade aos políticos portugueses.

Se o preço da menoridade da posição portuguesa for mais eficácia no relançamento da economia nacional, do emprego, das reformas económicas e da urgente transformação e redução do Estado, então “je suis Frugal”.