Embora Putin, com ajuda de alguns idiotas úteis e cúmplices cínicos, nos queira fazer crer o contrário, com a invasão russa da Ucrânia estamos, pela primeira vez desde 1939, perante o trágico espetáculo de uma grande guerra de conquista e anexação imperial na Europa. O que fazer? Eu, entre outras coisas, leio. Gosto de uma história que me contaram num serão inglês, que não consegui documentar, mas em que quero acreditar. Há um século atrás um mandarim chinês, condenado à morte pelo seu alegado envolvimento na revolta nacionalista dos Boxers, estava a ler, à espera da sua execução. Um oficial britânico perguntou-lhe o que estava a fazer, respondeu que aproveitava o tempo o melhor possível. Aproveitemos também este verão em guerra. Eu leio muita História, uma obrigação profissional que é também um prazer de sempre.

Dos czares a Chernobyl

Gosto muito do trabalho de Dominic Lieven, um historiador britânico da Rússia, país ao qual tem uma forte ligação familiar, por via da aristocracia báltica que serviu os czares do grande Pedro I até ao pequeno Nicolau II. Tem uma série de obras indispensáveis para perceber a Rússia combinando cultura e política, geopolítica e guerra. Um bom exemplo é Russia Against Napoleon The True Story of the Campaigns of War and Peace, um complemento à obra-prima de Tolstoi. Estou a começar a ler a sua obra mais recente: In the Shadow of the Gods: The Emperor in World History que situa os czares russos numa história global dos impérios. Um dado essencial para perceber a Rússia de Putin é que se trata de um império mal disfarçado de Estado nação. Quem quiser uma síntese mais acessível tem sempre a história do “nosso” veterano da Rússia, José Milhazes.

Serhii Plokhy é um dos melhores historiadores da Ucrânia. É dele um grande livro sobre o desastre de Chernobyl como microcosmos da decadência terminal do sistema comunista soviético. Não recomendo para leitura de férias, para não estragar a paz de espírito, especialmente se forem para os lados de Almaraz. Dele acabou de ser traduzida – espero que bem – para o português: A Porta da Europa: Uma História da Ucrânia que nos traz da antiguidade até ao presente. Ajuda a perceber que a localização periférica da Ucrânia – cujo nome literalmente significa fronteira – não significa que seja irrelevante na história do continente ou que não tenha uma identidade específica, que se foi consolidando, em frequentes conflitos com as grandes monarquias que dominaram a região. A minha leitura mais recente de Plokhy é Lost Kingdom: The Quest for Empire and the Making of the Russian Nation que traça a história do imperialismo russo e da sua relação complexa com o nacionalismo russo e ucraniano. O modelo dos estados-nação é muito mais recente na Europa Central e de Leste do que na Europa Ocidental, região onde predominam vastas planícies, e onde predominaram vastos impérios multiétnicos até à Primeira Guerra Mundial. Desse ponto de vista, tomar a história de Portugal como ponto de referência, como naturalmente tendemos a fazer, é má ideia, pois é uma exceção precoce na história europeia da emergência do Estado-Nação. Lendo Plokhy não iremos ficar a concordar com a tese de Putin de que a Ucrânia não existe, mas ficaremos a perceber melhor de onde lhe vem a ideia e a sua problemática relação com os factos.

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Da cabeça de Putin ao futuro

E por falar no senhor do Kremlin, graças à Zigurate, nova editora de Carlos Vaz Marques, podemos entrar em português Na Cabeça de Putin, pela escrita de Michel Eltchaninoff. Provavelmente só ocorreria a um francês tentar responder à pergunta: Putin terá uma filosofia? Claro que ajuda Eltchaninoff ser ele próprio especialista em filosofia russa e diretor da ótima revista Philosophie, que ainda vai chegando às bancas portuguesas e trazendo a filosofia para as grandes e pequenas questões atuais. A resposta é que não sendo Putin um grande pensador, tem uns quantos pensadores de estimação de qualidade variável. Conhecê-los melhor revela muito sobre a mundividência do senhor do Kremlin, dominada pelo revivalismo de um nacionalismo ultraconservador essencialista, e por uma geopolítica determinista em torno de um suposto destino de dominação euroasiática. Mergulhar no cérebro de um autocrata agressivo nunca é uma perspetiva animadora, mas por vezes é indispensável. Devemos conhecer bem os amigos, mas melhor ainda os inimigos. E é evidente que para Putin o Ocidente pluralista e liberal é um inimigo existencial.

A recomendação final é Day of the Oprichnik de Vladimir Sorokin, uma distopia passada numa Rússia de 2028, transformada numa autocracia assumida, com direito a um grande muro, à restauração dos czares e dos oprichnik, a aterrorizadora polícia secreta de Ivan, o Temível. O protagonista é um oprichnik, cujo trabalho diário é violar, pilhar e matar alegremente ao serviço duma Santa Rússia que odeia o Ocidente. Tirando uns quantos exageros, essa Rússia de 2028 assemelha-se cada vez mais à realidade presente. Numa entrevista recente Sorokin lamentava, apenas, ter subestimado a grau de loucura de Putin e dos seus apaniguados. Criticou publicamente a invasão da Ucrânia e vive autoexilado na Alemanha. Mais um passo para o concretizar da sua profecia ficcionada de uma Rússia autocrática e violentamente fechada sobre si mesma. Para a semana há mais, mas deixaremos a Rússia e a Ucrânia em paz.