António Costa teve a infelicidade de ser meu monitor (um grau abaixo de assistente e outro ainda de professor) de Ciência Política na segunda metade dos anos oitenta, na Faculdade de Direito da Universidade de Lisboa.

Do pouquíssimo que retive das suas preleções, lembro-me de uma divagação sobre a tendência que o eleitorado inglês tinha para oscilar entre Trabalhistas e Conservadores sempre que um destes partidos no poder extremava as suas posições.

Como na dialética hegeliana, que era cara a Marx, os eleitores procuravam um contrapeso quando a balança se inclinava excessivamente para um dos lados. A dialética funciona através da contradição: uma proposição (tese) precisa do seu oposto (antítese), e desta interação nascerá um híbrido superior, que será a síntese.

Quando Costa deu poder à extrema-esquerda para conquistar, e manter, o seu próprio poder, senti algum desconforto. O desconforto resultou não tanto do oportunismo de Costa, mas mais de um aumento de arrogância das bancadas parlamentares do lado esquerdo da Assembleia da República (do lado esquerdo só quando vistas a partir da cadeira do Presidente da Assembleia; vistas do outro lado estão à direita).

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O paradigma dessa arrogância, quanto a mim, veio do comunista Miguel Tiago, quando em 2017 ameaçou veladamente de despedimento a Presidente do Conselho de Finanças Públicas – um órgão independente, recorde-se – por críticas desta última a um orçamento do Governo: “Milagre é Teodora Cardoso ainda ter salário e ocupar o lugar que ocupa”. (De facto, nem Miguel Tiago nem o Governo a podiam “despedir”, mas esse é um detalhe pouco relevante nesta análise.)

A arrogância irrita e faz ansiar por alguém que, do outro lado do espectro político, responda na mesma moeda, sem medo e com assertividade. Ventura fez esse papel e foi a antítese. Ventura é, de certa forma, um produto das opções de Costa.

Ventura é um líder populista, não é o líder populista.

Convém esclarecer o que se entende por populismo. O populista alega representar o povo comum. Na Rússia do final do século XIX eram populistas os que defendiam o socialismo agrário baseado na aldeia comunal. Nos Estados Unidos o movimento populista era composto por agricultores e organizações laborais que, em reação ao colapso dos preços agrícolas que se seguiu à Guerra Civil, defendiam a livre emissão de moeda para fazer subir os preços, a redistribuição da riqueza através do imposto sobre rendimentos, a jornada de trabalho de oito horas e a nacionalização dos caminhos de ferro para baixar os custos de transporte.

Hoje será populista aquele que propõe medidas que agradem a uma parte significativa da população, mas que não se preocupa com a exequibilidade dessas medidas, nem com o seu custo, nem com eventuais consequências nefastas que possam ter a médio prazo.

Tirando o PCP, que é um caso patológico, o populismo pré-Ventura foi maioritariamente assegurado nas últimas décadas pelo Bloco de Esquerda.

A particularidade mais interessante do populismo do Bloco é que se trata de um populismo adolescente, assente em mensagens e numa imagética que me teriam cativado quando eu tinha dezasseis anos (talvez por isso o Bloco defenda o direito de voto a partir dessa idade). Os cartazes do Bloco sempre me fascinaram e os mais recentes tornam-se particularmente atrativos quando se afastam da ingenuidade política e se aproximam do delírio ambiental: “Nem um grau a mais, nem uma espécie a menos” – sabendo que as espécies que existem hoje correspondem a 0,1% das que já existiram, e que diariamente se extinguem cerca de 150 espécies. “Nem uma espécie a menos” corresponde à ideia de que a evolução das espécies acaba agora. A partir daqui, a partir de hoje, portando, não haverá evolução, nem das moscas nem dos sapiens. Nem uma espécie a menos e nem uma espécie a mais.

Outro cartaz que me fascina é que o propõe “Mudar tudo menos o clima”. “Mudar tudo” era o que me diziam alguns colegas do secundário. Queriam “mudar tudo”, mas não sabiam o quê (era “tudo”) e, muito menos, para quê. Como acontece nas revoluções, a parte fácil é destruir; muitíssimo mais difícil é construir.