«Ele tinha os processos na prateleira mais alta do móvel do seu gabinete e era preciso subir umas escadinhas, daquelas de biblioteca, para chegar lá acima. Quando precisava, pedia às secretárias, todas senhoras mais velhas, para irem buscar determinado processo. Exceto quando me pedia a mim – do grupo de estagiários, os restantes homens, não pedia a mais nenhum, mas eu desvalorizava, achava que era por trabalhar com ele no contencioso. Eu tinha 23 anos e aquele foi dos meus primeiros empregos, numa sociedade de advogados portuguesa. Ele era um advogado mais velho, bastante conhecido da nossa praça. Houve um dia, eu já lá estava há uns três meses, que me apercebi de qual era o objetivo: ficava com uma perspetiva de baixo para cima do meu corpo, sobretudo pernas e rabo. Quando estava no cimo das escadas, olhei para trás e ele estava sentado na cadeira a masturbar-se. Entrei em pânico, desci e saí dali a correr, muito envergonhada. Nesse dia, efetivamente estava de saia, nunca me tinha preocupado com a roupa que levava. Ainda tive de trabalhar mais uns meses com ele até passar para outro departamento, mas comecei a pedir às secretárias que retirassem os processos por mim. Não contei a ninguém e esse advogado deu-me a entender que era melhor para mim não dizer nada. Do género: ‘Você gosta muito de contencioso e este meio é muito pequeno.’»

A Inês Melo Sampaio (declaração de interesses: foi minha colega de curso) fez este relato à revista Sábado, numa edição de há umas semanas que contou com outras dezenas de testemunhos impressionantes e que, noutras latitudes, teriam provocado um pequeno sobressalto na comunidade. Não conhecia a história concreta da Inês, que me despertou particular interesse por motivos que se compreendem, fiquei estarrecido quando a li dada a dimensão pessoal, mas confesso o meu cinismo: não me surpreendeu. No meio da advocacia lisboeta é comum ouvir falar-se de histórias parecidas, aqui e ali, neste ou naquele escritório, sempre entre dentes, sempre em regime de semi-confidência – confidência, porque quem as conta deixa sempre claro que não lhe ocorrerá falar do assunto publicamente, semi-confidência, porque mesmo quem conta as histórias sabe que meia cidade já ouviu falar do assunto. A pequena sugestão de progressão na carreira em troca de um favor sexual, uns apalpões a estagiárias nas festas do escritório, o advogado reputadíssimo que trata as secretárias por «ó minha puta» ou «ó sua gorda», já tinha ouvido muita coisa da boca de outras colegas e amigas.

Talvez me tenha causado mais surpresa o facto de nenhuma daquelas 17 histórias publicadas na Sábado ter feito o menor dos estragos. O #metoo, enquanto fenómeno global, teve, como tudo, o condão de se adaptar rapidamente às realidades nacionais. Começou, em Portugal, com uma vítima e um caso, da actriz Sofia Arruda, e um alegado agressor. Chegou, com ele, a solidariedade e histórias semelhantes em catadupa. Depois, pediram-se nomes. Discutiu-se com veemência se seria mesmo necessário trazer os nomes para a praça pública. Deram-se nomes. E quando chegaram os nomes, ninguém gostou do que leu. O #metoo lusitano parou aí e logo outra polémica, outro caso qualquer foi incendiar as redes sociais, os artigos de jornal e os comentários televisivos. E se, por algum infortúnio, tivéssemos continuado a falar sobre o tema, cá estaríamos para os famosos “ai, que ele até é casado”, “ai, que ele é tão sério”, “ai, que ele é tão ocupado que nem tem tempo para meter a mão nas cuecas da administrativa”, “olhe, nunca diria e até acho que isto é tudo inveja” até ao inevitável “ela também se não quisesse nem tinha falado com ele”.

Durante os poucos dias de debate que o tema do assédio mereceu na sociedade portuguesa, levantaram-se muitas questões interessantes, mas talvez a menos interessante. Falámos dos prazos legais de denúncia e prescrição de um crime deste género, da presunção de inocência, passando pela eterna questão da “mudança de mentalidades”, tivemos, enfim, direito a um pouco de tudo e ficámos, como sempre, com nada de nada.

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As mudanças legais não têm grande interesse mediático e o poder legislativo não trabalha sem apelo mediático. Discuti-las, entre nós, sem que o poder político sinta que tem mesmo de fazer alguma coisa para mostrar serviço, é interessante mas nada produtivo.

A presunção de inocência é, por outro lado, um clássico. Não há caso nenhum em que não esteja em causa alguém com relevância social que não tenha atrás de si uma legião de defensores da presunção de inocência. Curiosamente, nunca ninguém se levantou em defesa da presunção de inocência de Leonor Cipriano, de Rosa Grilo, do cabo Costa, de Pedro Dias ou de Carlos Silvino, o Bibi da Casa Pia. Quando se fala em presunção de inocência em Portugal, uma de duas é certa: ou o indivíduo em causa não tem qualquer interesse social ou político para que quem comenta a actualidade sinta que o deve defender seja do que for e, portanto, pode ser destratado à vontade; ou goza de um estatuto social, político, intelectual, desportivo ou outro que o colocam, desde logo, na categoria de inimputável e, assim, presumível inocente mesmo depois de prova em contrário – vide Carlos Cruz. Portanto, o #metoo à portuguesa só terá sucesso quando alguém apontar o dedo a um contínuo, um cantoneiro de limpeza, um trolha ou um mecânico de automóveis.

Por fim: sou pai de duas filhas e, portanto, ganhei com elas uma nova dimensão sobre o que é crescer e ser mulher num mundo como o nosso. Desde cedo que percebi que não quero que as minhas filhas tenham aquilo a que burguesmente chamamos “sucesso”; quero que sejam pessoas decentes e que se saibam impor pela força do que são, do que pensam e do que fazem. Não quero que vivam em permanente competição; quero que tenham vontade de saber mais por mera e individual curiosidade. Não quero que respeitem e aceitem tudo o que lhes impõem, todas as regras, todos os ‘podes’ e todos os ‘não podes’, incluindo os que os pais lhes impõem; quero que questionem primeiro, que duvidem do poder dos outros e que acreditem no seu próprio poder. Quero filhas livres, autónomas, responsáveis, curiosas, interessadas, que perguntem muito, que respeitem os outros, os diferentes e os iguais, que saibam que o mundo não acaba na sua bolha de privilégio, que façam o que bem entenderem pela sua felicidade e que não pisem os outros para a alcançar. Que sejam boas e dignas naquilo que fazem, seja lá o que for.

Se num tema que devia ser tão importante para a sociedade, o melhor que conseguimos é acabar na conversa da educação, então aqui fica a minha parte de educador de meninas. Não serve de nada para o debate, mas acho que dá para ir dormir de consciência tranquila, que isto cada um faz a sua parte. Não é assim que se termina um assunto sério em Portugal? Não foi assim que chegámos à conclusão, em meia dúzia de dias, que o assédio entre nós é um mito?